Teologia

terça-feira, 7 de abril de 2020

A PESSOA DE CRISTO: A TEORIA KENÓTICA


Ricardo André

“Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” Filipenses 2:5-11, NVI).

Introdução

Este é um dos textos mais significativos e profundos das Sagradas Escrituras. São considerados pelos teólogos como dos mais preciosos da Bíblia. Esses versos têm recebido dos comentaristas títulos diversos tais como o Hino de Kenosis, ou o Hino do Esvaziamento, da Humilhação, do Autoaniquilamento, do Despojamento de Cristo. Esse extrato maravilhoso da Palavra de Deus fala do Cristo que deixou as cortes celestiais, veio a nosso mundo de pecado e assumiu nossa natureza humana. Foi rejeitado por muitos daqueles a quem veio salvar.

O apóstolo Paulo não apenas escreveu uma das mais belas passagens bíblicas sobre Jesus, mas nesta passagem, mostrou aqueles irmãos o exemplo de Cristo. Assim, não basta apenas conhecer Jesus, é preciso imitá-lo.

Mas qual a razão do apóstolo Paulo apresentar esse exemplo de Cristo à Igreja de Filipos? Estudo mais acurado da epístola mostrará que os filipenses enfrentavam o mesmo perigo que seria enfrentado pelas congregações cristãs no decorrer da história: o perigo de rivalidades espirituais (desunião) e a exaltação própria (v. 2 e 3).

Paulo sabia que tais contendas não procediam do Espírito Santo e poderiam destruir a credulidade do cristianismo. Ele procurava, portanto, elevar os seus leitores num sublime e quádruplo apelo (v. 1, 2) para unidade, humildade, prestimosidade e semelhança com Cristo.

A intenção paulina era persuadir os filipenses a viverem uma vida livre de desunião, falta de harmonia e ambição pessoal. Se as grandes características da vida de Jesus foram humilhação, obediência e renúncia de Si mesmo, essas virtudes devem caracterizar os cristãos, porque eles devem ser como seu Mestre.

A mente de Cristo (v. 5-7)

O apóstolo Paulo exorta: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus [...]”. A exortação do apóstolo é que tenhamos a mesma “atitude”, a mesma “mentalidade”, a mesma “disposição mental”, o mesmo “pensamento de Cristo.  Ou seja, uma disposição de altruísmo, de interesse pelo ser humano, ao ponto mesmo de sofrer, a fim de tornar possível servir a outros. O contexto mostra que Paulo conclamava seus leitores a que seguissem o exemplo de Cristo, isto é, Sua humildade.

Em 1847, um médico de Edimburgo, Dr. James Simpson, descobriu que o clorofórmio podia ser usado para anestesiar pessoas durante as cirurgias. A descoberta tornou-o famoso. Ano mais tarde, um de seus alunos na Universidade de Edimburgo lhe perguntou: “O que considera como a mais valiosa descoberta de sua vida?”

Em vez de referir-se ao clorofórmio, o Dr. Simpson respondeu: “Minha mais valiosa descoberta ocorreu quando descobri que sou um pecador e que Jesus Cristo é meu Salvador”.

Esta é a atitude de uma pessoa humilde. O seu pensamento não se concentra na ambição egoísta e na presunção, mas dedica atenção e energia à obra do Senhor. Mas, como é possível ter a mente de Cristo?

Comunhão diária com Jesus. Preciso envolver-me tanto com Ele que minha mente se confunda com a dEle. Como resultado, devo pensar como Ele pensa. Praticar a bondade como ele fazia, perdoar as pessoas tal como Ele fazia.

Divindade Renunciada (v. 6, 7)

O versículo 6 nos apresenta o Logos ou o Verbo antes de Se ausentar dos “palácios de marfim” (Sl 45:8), para entrar em nosso poluído e perturbado planeta. Diz-nos o texto: “[...]Embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se” (NVI). Queremos destacar a expressão “embora sendo Deus” ou “em forma de Deus” (ALA).

Segundo o Comentário Bíblico Adventista, v. 7, p. 139 e 140, a palavra grega traduzida como “forma” é morphê, que indica aqui todas as características e os atributos essenciais de Deus. Nesse sentido, o termo morphê se refere ao modo pelo qual as qualidades eternas e as características de Deus se manifestaram. Independentemente da forma que essa manifestação assumiu, foi por meio de Cristo, que já existia como Deus”. Portanto, para o apóstolo Paulo, Cristo não era apenas aparência de Deus, mas possuía as características essenciais e os atributos de Deus. Ele era Deus em forma essencial, inalterável e imutável. Era o Deus encarnado (Jo 1:1-4, 14).

Então, o que Paulo tinha em mente, ao fazer tal declaração, é que embora Cristo fosse indiscutivelmente igual a Deus. Ele esvaziou-se de todas as prerrogativas divinas e se fez carne (homem). Em outras palavras, não pensou que que a igualdade com Deus fosse algo de que não devesse abrir mão, mas voluntariamente, a deixou por amor da humanidade. Ele revestiu-se da humanidade para salvar os perdidos. Aqui, Paulo nos ensina que Jesus não pensou mais em si mesmo. Ele pensou nos outros. Ele pensou em mim e em você. Enquanto Satanás e o homem pecador quer ser igual a Deus, Jesus abriu mão desse privilégio para usá-lo em nosso favor. Nos garantir a salvação e as bênçãos da vida eterna.

Embora fosse Deus, Jesus tomou sobre Si as desvantagens e as debilidades da natureza humana para demonstrar que seres humanos dependentes podem refletir o sentimento de Deus. Graças a Deus por esse desprendimento altruísta de Cristo!

O Servo voluntário (v. 7)

No versículo 7 nos deparamos com o fenômeno mais impressionante do plano da salvação. Lemos que Cristo “esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens”. Eu diria que esta é a frase mais significativa desses versos. Do que Jesus Se esvaziou, de acordo com o versículo 7? De acordo o a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, p. 2207, a expressão original traduzida por “esvaziou-Se” é o termo grego kénosis, cujo sentido é que Cristo despojou-se livremente não da Sua natureza divina, “mas a glória que por direito ela lhe conferia, glória que ele possuía na sua preexistência (Jo 17:5) e que deveria normalmente resplandecer sobre a sua humanidade (Mt 17:1-8). Ele preferiu privar-se dela para recebe-la apenas do Pai (Jo 8:50, 54), como preço do seu sacrifício (vv. 9-11)”.

Já a Bíblia de Estudo Andrews, p. 1545 e 1546, afirma que a expressão “se esvaziou” significa que “Cristo abriu mão da igualdade com o Pai, deixando de lado seus poderes divinos durante a encarnação, sem nunca deixar de ser Deus”.

Em artigo na Review and Herald, de 15 de junho de 1905, Ellen G. White afirmou: “Pondo de lado Suas vestes e coroa reais, Cristo vestiu Sua divindade com a humanidade, para que os seres humanos pudessem erguer-se de sua degradação e ser colocados em posição de superioridade. Cristo não podia ter vindo à Terra com a glória que possuía nas cortes celestes. Seres humanos pecadores não suportáveis ​​vê-Lo. Ele velou Sua divindade com a roupagem da humanidade; porém, não Se desfez de Sua divindade. Salvador divino-humano, Ele veio para colocar-Se à frente dos seres caídos, e compartilhar a experiência deles desde um meninice até uma varonilidade. Para que os seres humanos puderam participar da natureza divina, Ele veio à Terra e vive em perfeita obediência” (citado em Questões Sobre Doutrinas, p. 76).

Ellen White, ainda escreveu: “Cristo tomou sobre Si a humanidade, a fim de alcançar a humanidade. [...] Eram necessários tanto o divino como o humano para trazer a salvação para o mundo” (O Desejado de Todas as Nações, p. 296)”.

Portanto, ao assumir a natureza humana, Cristo deixou de lado Seus atributos e de certas prerrogativas divinas. Ele privou-se de Sua glória, se Sua coroa e trono, de agir como Deus, o que está longe de significar que em algum momento Ele tenha deixado de ser Deus. Afinal, não poderia perder aquilo que Ele é em essência. No entanto, a fim de submeter-se a todas as condições da vida humana, ele privou-se temporariamente de Seus atributos divinos. Não se despojou de Sua divindade; apenas decidiu não utilizá-la.

Isso não é tão simples como pode parecer, pois existe algo mais incrível por trás deste gesto de esvaziamento, que é a intencionalidade do processo. Ele foi voluntário. Essa autolimitação do Deus criador foi uma decisão Sua. Algo de iniciativa própria. Deus escolheu voluntariamente ignorar Suas qualidades celestiais criadoras. Recusou a utilização do Seu próprio poder intrínseco, Sua glória, para que pudesse ser como nós.

Na realidade, encontramo-nos diante de um grande mistério que ocupará o nosso pensamento e suscitará a nossa gratidão por toda a eternidade.

Para o cumprimento do plano da salvação, o Messias, que resgataria o homem do pecado, teria de vir como o homem antes do pecado, isto é, como Adão. Essa identificação de Cristo com o homem nos ajuda a entender a sinceridade das Suas palavras, segundo João 5:30, quando disse: “Eu nada posso fazer de Mim mesmo”. A vida de Jesus aqui na Terra foi uma vida de dependência do Pai. Cristo “não veio para viver como Deus, mas para viver em obediência a Deus como ser humano e vencer onde Adão e Eva caíram”.

“O apóstolo afirma que Cristo Se esvaziou e tomou os atributos básicos de um escravo. Uma característica externa do escravo é prestar obediência inquestionável. Como ser humano, o Filho decidiu obedecer ao Pai (Hb 5:8)” (Comentário Bíblico Adventista, v. 7, p. 140). Esta obediência livre o levou à morte de cruz.

Cristo desceu muito baixo para tomar a forma de escravo separado do lar celestial, veio a um mundo hostil para ser vendido por trinta moedas de prata e para morrer sobre a cruz infamante – punição reservada para os piores criminosos e considerada tão bárbara que nenhum cidadão romano podia ser crucificado sem a ordem direta do imperador. Jesus Se tornou menos para que nós pudéssemos se tronar mais. Esvaziou-se para encher sua vida. 

Sobre isso, Ellen G. White escreveu: “Cristo foi tratado como nós merecíamos, para que pudéssemos receber o tratamento a que Ele tinha direito. Foi condenado pelos nossos pecados, nos quais não tinha participação, para que fôssemos justificados por Sua justiça, na qual não tínhamos parte. Sofreu a morte que nos cabia, para que recebêssemos a vida que a Ele pertencia. "Pelas Suas pisaduras fomos sarados." Isa. 53:5” (O Desejado de todas as Nações, p. 25).

Quando Adão cedeu à tentação, vendeu-se a Satanás, que o enganara, tornando-se escravo seu. Rendera a sua liberdade, e coisa alguma podia fazer para se libertar. Satanás aqui colocou seu trono e instalou-se como governador deste planeta. Mas a Divindade idealizou um plano para redimir o mundo. Cristo desceria e tomaria a posição de escravo, salvando assim o homem.

Onde Satanás estabelecera seu trono, Cristo ergueu Sua cruz. Trouxe a luta para o território ocupado pelo inimigo e salvou o homem das garras deste mortal adversário. Readquiriu-nos a liberdade tornando-se Ele mesmo escravo e demonstrou ao Universo o Seu imensurável amor.

Vale ressaltar que a comunhão que Jesus manteve com Deus serve de exemplo para todos nós e nos mostra que é possível obter o mesmo poder. Foi assim com os discípulos que, após a ascensão, cheios do Espírito Santo, curavam doentes e ressuscitavam mortos, como Jesus fazia.

Ellen G. White declarou: “A humanidade do Filho de Deus é tudo para nós. É a corrente de ouro que liga nossa alma a Cristo, e por meio de Cristo a Deus. Isto deve constituir nosso estudo. Cristo foi um homem real; deu prova de Sua humildade, tornando-Se homem. Entretanto, era Ele Deus na carne. Quando abordamos este assunto, bem faremos em levar a sério as palavras dirigidas por Cristo a Moisés, junto à sarça ardente: "Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa." Êxo. 3:5. Devemos aproximar-nos deste estudo com a humildade de um discípulo, de coração contrito. E o estudo da encarnação de Cristo é campo frutífero, que recompensará o pesquisador que cave fundo em busca de verdades ocultas” (Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 244).

Conclusão

Encontramos o clímax do ministério de obediência de Jesus à Deus o Pai, quando Ele foi pregado numa cruz. Com esse ato de amor, Jesus conseguiu o que queria – nossa salvação. Por causa de Sua voluntária humilhação, “Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (v. 10, 11).

O que mais impressiona é que a vida de Jesus não foi como a dos perseguidos cristãos primitivos. Sua morte foi, à semelhança dos mártires, como a de uma vítima indefesa. Esses não tinham condições de lutar nem poder para evitar a dor. Mas com Jesus foi diferente. Ele poderia ter escapado. Desde as pedras do deserto até à montanha do Calvário. Ele poderia agir poderosamente. Poderia ter matado a fome, assim como poderia ter descido da cruz. Mas esse não era o plano do Pai. Essa não era a condição do nosso resgate.

Impressiona-nos tamanho espetáculo de amor e submissão. Quando observamos esta realidade de limites práticos na vida de Cristo Jesus, somos levados a aceitar Seu imenso exemplo de autocontrole e humildade.

A vida de sacrifício que Jesus viveu na Terra não pode ser tomada como exemplo a ser aclamado. Mais do que isso. Seu exemplo precisa ser imitado. Diante do esvaziamento divino, somos impulsionados a reagir e viver como Ele viveu. A maior luta de Cristo tem de ser a nossa luta: permanecer rendidos aos propósitos divinos. Aceitar os planos de Deus e jamais buscar independência dEle. O abandona de si mesmo, exemplificado por Jesus, deve ser o modelo para o abandono do nosso próprio eu.

Diante da humilde obediência vivida por nosso Salvador, devemos permitir despertar em nós um sentimento de entrega total e absoluta. É a realidade de uma vida dependente de Deus. Um ser humano que vê sua própria vontade ser dissolvida perante o divino Salvador. Como cristãos, não podemos permanecer iludidos de que estamos crescendo espiritualmente, enquanto continuamos satisfazendo nossos impulsos naturais.

Caro amigo leitor, o que Deus requer de nós é a mesma atitude de Cristo quando trilhou o mesmo caminho pelo qual passamos agora. O Senhor requer uma entrega total e uma renúncia de nosso próprio eu. Enquanto permanecermos confiantes, nos braços divinos, vazios de nossa autossuficiência egoísta, o Senhor cumprirá em nós e através de nós, Seu plano salvador.





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