Teologia

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

DECRETO DOMINICAL


 Flávio Pereira da Silva Filho*

O que levou o imperador romano Constantino a estabelecer oficialmente o domingo como dia de repouso há 1.700 anos   

Uma das perguntas da área de História que apareceram na prova da segunda fase do vestibular da Fuvest deste ano teve que ver com a transformação do cristianismo de religião perseguida em religião do Estado. O ponto em questão era o que levou o Império Romano a adotar o cristianismo como religião oficial.

Uma das possíveis respostas para essa pergunta está na busca do Império Romano por um ponto de apoio que contribuísse para a sua estabilização. E o cristianismo, que estava em franca expansão, apesar das perseguições, possuía características para potencializar essas aspirações. Com base nessa hipótese, O Livro da História (Editora Globo, 2017, p. 67) diz que o cristianismo se tornou uma ferramenta para a unidade e uma validação da autoridade imperial. Nesse sentido, em 313 d.C., o imperador Constantino concedeu liberdade religiosa em todo o Império Romano, por meio do Edito de Milão (Gilberto Cotrim, História Global [Saraiva, 2005], p. 93).

Por outro lado, em março de 321 ele promulgou um decreto estabelecendo o domingo como dia de repouso. Esse edito exigia que a população das cidades por ele dominadas suspendesse as atividades “no venerável dia do Sol” (venerabili die Solis), embora fosse mais flexível em relação aos camponeses.

O documento estabelecia o seguinte: “Que os magistrados e as pessoas que residem nas cidades, bem como os comerciantes, repousem no venerável dia do Sol. Aos moradores do campo, porém, conceda-se atender livre e desembaraçadamente aos cuidados de sua lavoura, visto suceder frequentemente não haver dia mais adequado à semeadura e ao plantio das vinhas, pelo que não convém deixar passar a ocasião oportuna e privar-se a gente das provisões oferecidas pelo Céu” (Codex Justinianus).

Na realidade, tratava-se de um estatuto pagão, mas que foi nominalmente aceito pelo cristianismo (Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church, v. 3 [C. Scribner’s, 1889], p. 380; Paul Krueger, Codex Justinianus [Weidmann, 1877], p. 248; Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 53, 574). Ao que se sabe, o chamado Edito de Constantino foi o primeiro registro de lei, de natureza eclesiástica ou civil, em que a observância sabática (no sentido de cessar o trabalho) do domingo foi ordenada (Joseph Harvey Waggoner, The Origin and Growth of Sunday Observance in the Christian Church [Pacific Press, 1889], p. 21).

Esse decreto foi uma lei dominical matricial. Ou seja, dele surgiu uma série de editos sobre a observância do domingo que influenciaram profundamente os europeus e a sociedade americana. Se no período de domínio do Império Romano a observância do domingo foi reforçada por estatutos civis, mais tarde, a igreja, sob a autoridade papal, impôs esse decreto por meio de editos eclesiásticos e civis (ver Walter W. Hyde, Paganism to Christianity in the Roman Empire [Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1946], p. 261).

O decreto de Constantino fazia parte de uma pauta de trabalho imperial que tinha como fundamento a promoção de um amálgama entre o paganismo e o cristianismo. Nesse sentido, o “dia do Sol”, que corresponde ao domingo do calendário atual, deveria ser um dia de descanso geral para cristãos e pagãos (Christian Edwardson, Facts of Faith [Southern Publishing Association, 1943], p. 109). Dentro dessa perspectiva, a etimologia da palavra inglesa sunday, que corresponde ao termo domingo em alguns idiomas latinos, tem exatamente o sentido de “dia do Sol”, reforçando a influência que essa pauta mantém dezessete séculos depois sobre a sociedade ocidental.

Em uma via de mão dupla, para dar uma sanção teológica à legislação imperial que exigia a cessação de trabalho no domingo, as hierarquias eclesiásticas apelaram frequentemente ao preceito criacionista do quarto mandamento, mas adaptando-o à observância do domingo (Samuele Bacchiocchi, Divine Rest for Human Restlessness [The Pontifical Gregorian University Press, 1980], p. 35).

E o que esse fato histórico tem que ver com o nosso futuro? Sob a perspectiva bíblico-profética adventista, a aproximação entre Igreja e Estado, dentro do contexto do capítulo 13 do livro de Apocalipse, demonstra que uma lei universal, à semelhança do Edito de Constantino, terá interferência direta sobre o arbítrio de todos os seres humanos da face da Terra (v. 16). E que, sob a boa intencionalidade de um objetivo comum, haverá uma crise que dividirá todos os cristãos do planeta.

 

*FLÁVIO PEREIRA DA SILVA FILHO, mestre em Teologia Bíblica, é pastor jornalista

 

FONTE: Revista Adventista

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

DESFECHO INESPERADO


 Bruno de Azevedo Lourenço

O que fez do adventismo o maior movimento protestante doutrinariamente unificado ao redor do mundo

“Nossas expectativas foram elevadas e esperamos pela vinda de nosso Senhor até que o relógio apontou meia-noite. O dia se passou, e nosso desapontamento se tornou uma certeza. Nossas maiores esperanças e expectativas foram destroçadas e um espírito deprimente tomou conta de nós como nunca antes. Parecia que a perda de todos os amigos terrenos não poderia se comparar com essa dor. Nós choramos e choramos até o dia amanhecer” (Review and Herald, 23/6/1921, p. 4-5). Foi assim que Hiram Edson definiu a tristeza daquele grupo. Sermões e mais sermões sobre a segunda vinda de Cristo haviam sido proferidos. O 22 de outubro de 1844 havia chegado, mas o dia terminou e Ele não veio.

Um grupo que passou por um desapontamento tão grande como esse simplesmente poderia enfraquecer até a completa extinção. No entanto, a menor porção daquele pesaroso movimento perseverou e tornou-se uma igreja com mais de 20 milhões de membros. Qual foi o segredo para um desfecho tão inesperado? Embora pareça não fazer sentido à primeira vista, a mensagem do sábado estudada por José Bates, a doutrina do santuário e as três mensagens angélicas tiveram um papel primordial nesse processo.

Reerguendo-se

Logo após o grande desapontamento, a grande maioria dos mais de 200 mil mileritas abandonou a fé ou continuou estudando para marcar novas datas para o retorno de Cristo. Porém, um pequeno grupo enxugou as lágrimas e retornou para as Escrituras a fim de entender o que de fato aconteceu e para buscar mais revelações divinas. A descoberta da centralidade da doutrina do santuário em correlação às três mensagens angélicas de Apocalipse 14 foi uma das principais chaves para o próximo passo. Inicialmente, eles criam que o cumprimento da mensagem do primeiro anjo teve início em 1798 com a pregação da volta de Jesus (Ap 14:6-7). Por sua vez, relacionavam a segunda mensagem a 1844, com a proclamação do Clamor da Meia-Noite e o chamado para sair de Babilônia (14:8). E acreditavam que a terceira mensagem enfatizava a santidade e validade dos mandamentos de Deus (14:9-12).

Em 1845, muitas pessoas começaram a guardar o sábado devido à influência dos batistas do sétimo dia. Pouco tempo depois, José Bates começou a pregar mais enfaticamente sobre a importância desse dia, afirmando que este mandamento precisaria ser restaurado para que então Jesus pudesse retornar (Gerard P. Damsteegt, Foundations of the Seventh-day Adventist Message and Mission [Grand Rapids: Eerdmans, 1977], p. 136-142). A princípio Ellen G. White não entendeu o motivo de enfatizar tanto o quarto mandamento em relação aos outros nove (Testemunhos Para a Igreja [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), v. 1, p. 72, 73). Mas, depois de ter acesso a um folheto escrito por Bates em 1846, Ellen e Tiago White aceitaram esta verdade. O trio, então, começou a pregar com maior ênfase sobre a santidade do sábado. Naquele momento, Deus usou José Bates para protagonizar uma das mais cruciais descobertas da história da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Bates teve um insight enquanto dedicava-se a um estudo mais profundo a respeito do significado da terceira mensagem angélica: o sábado estava inteiramente ligado à mensagem do terceiro anjo. “Abriu-se, então, o santuário de Deus, que se acha no céu, e foi vista a arca da Aliança no seu santuário, e sobrevieram relâmpagos, vozes, trovões, terremoto e grande saraivada” (Apocalipse 11:19). Ele percebeu que os Dez Mandamentos tinham um papel especial naquele período e, assim, conectou o sétimo dia com a mensagem do terceiro anjo. Alguns meses depois, Ellen White teve uma visão em que Deus a levou para um passeio no santuário celestial. Quando o véu que havia entre os dois compartimentos foi levantado, ela contemplou a Arca do Concerto. Dentro da arca ela reparou num detalhe interessante: “Vi os Dez Mandamentos nelas [nas tábuas] escritos com o dedo de Deus. […] Mas o quarto, o mandamento do sábado, brilhava mais que os outros; pois o sábado foi separado para ser guardado em honra do santo nome de Deus. O santo sábado tinha aparência gloriosa – um halo de glória o circundava. Vi que o mandamento do sábado não fora pregado na cruz. Se tivesse sido, os outros nove mandamentos também o teriam, e estaríamos na liberdade de transgredi-los a todos, bem como o quarto mandamento. Vi que Deus não havia mudado o sábado, pois Ele jamais muda” (Ellen G. White, Primeiros Escritos [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1991], p. 32-33).

A sugestão de Bates de conectar os três temas foi confirmada com a visão de Ellen White. Logo, a última mensagem de exortação e salvação deveria incluir a restauração do sábado como o dia genuíno de descanso, o único mandamento esquecido pela grande maioria dos cristãos.

A conexão entre o sábado, o santuário e as três mensagens angélicas deu a eles uma identidade profética. Logo após o grande desapontamento profetizado em Apocalipse 10:8-10, Jesus afirma que eles ainda precisariam profetizar “a respeito de muitos povos, nações, línguas e reis” (v. 11). As mesmas palavras são usadas para introduzir as três mensagens angélicas em Apocalipse 14:6-12, deixando claro o que Ele esperava deles. Ademais, as palavras usadas pelo primeiro anjo em sua mensagem para adorar “aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas” também não são novas nas Escrituras. “Essa linguagem faz uma alusão inequívoca ao mandamento do SÁBADO, com referência à CRIAÇÃO (Êx 20:8-11), indicando, portanto, que o sétimo dia tem relevância especial na proclamação do evangelho no tempo do fim. […] As admoestações a ‘temer’ e ‘adorar’ neste versículo se encaixam diretamente no contexto imediato mais amplo de guardar os mandamentos de Deus (ver Ap 12:17; 14:12), com referências óbvias ao decálogo” (Bíblia de Estudo Andrews, p. 1667; nota sobre Apocalipse 14:7).

Os pioneiros adventistas do sétimo dia não criam nestes preceitos apenas porque eles estavam embasados na Bíblia e, por isso, deveriam ser pregados. Ia muito além disso. Eles encontraram a si mesmos naquela profecia. Perceberam Deus delegando a eles a missão de espalhar uma mensagem específica à sua geração. Inicialmente, a crença de José Bates na santidade do sétimo dia apresentada em seu livro The Seventh-day Sabbath: A Perpetual Sign refletia essencialmente o que os batistas do sétimo dia criam: que o sábado era o dia correto a ser guardado e que o dia de guarda nunca deveria ter sido mudado. Porém, a crença nesse dia foi fortalecida pela mensagem profética de que Deus restauraria este selo entre Ele e Seu povo. Tiago White declarou: “Nossa experiência adventista passada, presente posição e trabalho futuro estão demarcados em Apocalipse 14 da forma mais clara que a pena profética poderia escrever” (James White to Brother Bowles, 8 de novembro de 1849 [Silver Spring, MD: Ellen G. White Estate]). A identidade profética resultou em urgência de pregar aquela mensagem ao mundo. Um espírito missionário envolveu seu coração, e daquele momento em diante nenhuma barreira seria grande demais para aquele valente grupo. O pequeno grupo passou por um grande desapontamento, mas agora estava revigorado para espalhar o evangelho a todo o mundo.

Missão urgente

A diferença que esta identidade profética e chamado à pregação provocou no movimento adventista do sétimo dia se torna mais clara quando comparada a outros grupos similares daquele período. Os batistas do sétimo dia tiveram um crescimento de aproximadamente 6 mil membros na década de 1840 para 50 mil na década de 2010, e estão representados em 22 países. Por outro lado, de acordo com o primeiro censo realizado pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, o número de membros adventistas totalizava 3,5 mil em 1863. Em 2020, este número já se aproximava de 22 milhões de adventistas, espalhados por 213 dos 235 países e regiões do mundo reconhecidos pela ONU.

Como Clyde Hewitt afirmou: “O menor dos braços do grupo milerita [Adventistas do Sétimo Dia e Cristãos do Advento] foi o que se tornaria de longe o maior” (George R. Knight, If I Were The Devil [Hagerstown, MD: Review and Herald, 2010], p. 142). A diferença no crescimento entre essas denominações foi a compreensão profética desta mensagem como parte de um plano maior, com um chamado urgente a que fosse pregada por todo o mundo. O adventismo sabatista compreendeu que a guarda do sábado não era um meio para a salvação, mas era parte de uma identidade profética a ser compartilhada com “muitos povos, nações, línguas e reis” (Apocalipse 10:11; veja também Mateus 28:18-20; Apocalipse 5:9-10; 7:9).

O adventismo do sétimo dia é o maior movimento protestante doutrinariamente unificado ao redor do mundo. Por quê? Porque cremos que Deus tem uma mensagem profética a ser pregada e que ninguém está pregando. Esta mensagem deu ao Seu povo liberalidade ao doar seu dinheiro e sua própria vida em favor da pregação do evangelho. Como membros e herdeiros de tão grande legado, precisamos levar avante esta mensagem que nos conferiu uma identidade e uma missão. Devemos ir e pregar a “cada nação, e tribo, e língua, e povo” (Apocalipse 14:6). A missão está em nosso DNA, e esse foi claramente o segredo para o crescimento do adventismo no mundo. Agora a tocha da verdade está em nossas mãos e podemos ouvir uma voz do Céu apelando direta e claramente: Pregue! Pregue!

 

*BRUNO DE AZEVEDO LOURENÇO, mestre em Divindade pela Universidade Andrews, é pastor na Igreja Adventista Highland View, em Hagerstown, Maryland (EUA)

 

FONTE: Revista Adventista

domingo, 10 de outubro de 2021

AS ESCRITURAS E A EXPERIÊNCIA


Alberto R. Timm*

A Reforma Protestante do décimo sexto século foi originalmente baseada no princípio hermenêutico de sola Scriptura (a exclusividade das Escrituras). Muita ênfase foi colocada sobre o significado gramático histórico do texto bíblico. Outras fontes de conhecimento religioso, tais como tradição, razão, e experiência, eram consideradas como aceitáveis somente se estivessem em harmonia com aquilo que era entendido como os ensinos da Palavra de Deus. Mas este tipo de aproximação tem perdido seu poder sob a influência do existencialismo filosófico, teologia do encontro, Pentecostalismo, e pós modernismo. Hoje, muitos Cristãos confiam mais em sua própria experiência subjetiva do que nos ensinos objetivos das Escrituras.

Por contraste, os Adventistas do Sétimo Dia vêm a si mesmos como um movimento profético especial do tempo do fim levantado por Deus para manter “a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas base de todas as reformas.”1 Contudo, se a verdadeira religião Cristã consiste de uma experiência viva com Deus, que papéis específicos as Escrituras e a experiência desempenham na vida Cristã? Como podem elas ser integradas a fim de se evitar o risco de superestimar uma em detrimento da outra?

O presente artigo discute brevemente quatro tentativas distintivas para integrar Escrituras e experiência na vida Cristã. O propósito principal é avaliar criticamente cada uma dessas tentativas à luz da Palavra de Deus, tentando identificar o modelo que reflete melhor o ponto de vista bíblico do assunto.

1. As Escrituras Dominando a Experiência

As denominações Cristãs tendem com o tempo substituir os ensinos das Escrituras pelos componentes antibíblicos da cultura contemporânea.2 Tentando reverter esse processo, algumas pessoas terminam dominando a experiência pessoal com uma forte ênfase sobre os ensinos das Escrituras. Sob este modelo, a dimensão objetiva da religião fala muito mais alto do que a subjetiva, e a obediência a um dado corpo de regras ofusca um relacionamento vivo com Deus. O resultado natural deste tipo de aproximação pode ser formalismo e legalismo.

Indubitavelmente, o conteúdo cognitivo das Escrituras desempenha um papel fundamental dentro da vida Cristã. O apóstolo Paulo argumenta que, para alguém crer em Deus, ele ou ela precisa ter um conhecimento objetivo de Deus (Rom 10:13-15). De acordo com Alister McGrath, “nós não apenas cremos em Deus, cremos em certas coisas totalmente definidas a respeito de Ele. Em outras palavras, a fé possui um conteúdo bem como um objeto.”3

Cristo definiu Seus verdadeiros seguidores como aqueles que vivem “de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4:4),4 e que ouvem Suas “palavras” e as colocam “em prática” (Mt 7:24). No Apocalipse de João somos admoestados que “se alguém adicionar alguma coisa” às palavras da profecia desse livro, “Deus adicionará a ele as pragas descritas” nele; e “se alguém tirar as palavras desse” livro, “Deus tirará dele sua participação na árvore da vida e na cidade santa” (Ap 22:18, 19). E Pedro acrescenta, “temos ainda mais firme a palavra dos profetas, e vocês farão bem se a elas prestarem atenção, como uma candeia que brilha em lugar escuro, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça no coração de vocês” (2 Pe 1:19). Desse modo, não nos é permitido desconsiderar o teor das Escrituras, porque ela é verdadeiramente a Palavra de Deus na linguagem humana.

Entretanto, tão significativas quanto as doutrinas bíblicas possam ser, a verdadeira religião é muito mais do que apenas convicções intelectuais. Ela significa uma conversão espiritual que opera de dentro para fora da pessoa (veja Jo 3:1-21), de modo que ele ou ela se torna uma “nova criação” (2 Co 5:17). Nem o racionalismo nem o ativismo social podem gerar tal experiência salvífica.

2. A Experiência Dominando as Escrituras

Partindo do formalismo frio de uma religião meramente intelectual, muitos Cristãos têm dominado o componente cognitivo das Escrituras com alguma forma de religião existencial ou charismática.5 Influente neste processo foi o Eu Tu de Martin Buber, sugerindo que nosso relacionamento formal “Eu-Coisa” deveria ser substituído pelo mais pessoal “Eu-Tu”, isto é, tratando as pessoas (e Deus) como indivíduos com quem relacionamentos plenos podem ser formados em vez de como objetos para satisfazerem nossas necessidades.6 Este modo de aproximação ajudou a dar forma a assim chamada “teologia do encontro”7 através da qual conhecer a Deus pessoal e individualmente é o alvo em vez de saber a respeito de Ele.8

Muitos Cristãos modernos, que confiam na suposta “voz do Espírito” falando às suas próprias mentes mais do que o texto da Bíblia, tentam justificar tal atitude com a declaração de Paulo que “a letra [gramma] mata, mas o Espírito [pneuma] dá vida” (2 Co 3:6). Porém, o contexto da declaração revela que Paulo está simplesmente contrastando o velho e o novo concerto. O velho (referido como “a letra”) realmente era uma sombra limitada do novo (veja Hb 8). Contudo, se assumirmos que o velho era defeituoso em sua própria essência, então temos que assumir também que Deus estabeleceu um modo errôneo de salvação para Israel. O problema não estava apenas com o concerto em si mesmo, mas com a sua interpretação errada, primeiro, pelo antigo Israel, e, mais tarde, pela igreja em Corinto. Ralph Martin sugere que a “letra” aqui se refere a “uma certa interpretação da Torá que prevalecia em Corinto” ou, em outras palavras, “um uso errado da lei de Moisés como um fim em si mesma que falhava em apreciar seu verdadeiro propósito (Rm 10:4: telos) como conduzindo a Cristo, seu cumprimento.”9 Apesar das distorções propostas tanto pela teologia do encontro como pela teologia carismática, a experiência pessoal com Deus é básica para a religião Cristã. Em contraste com a ênfase Grega do conhecimento em si mesmo, a Bíblia coloca o relacionamento com Deus como a base do verdadeiro conhecimento. Isaías convida Israel, “Busque o Senhor enquanto ele pode ser encontrado; chame-o enquanto ele está próximo” (Isa 55:7). Oséias adiciona, “Conheçamos, esforcemo-nos para conhecer o Senhor” (Os 6:3, NASB). Jesus declarou que “a vida eterna” significa conhecer a Deus o Pai bem como ao Próprio Cristo (Jo 17:3). Tal conhecimento inclui um aspecto relacional profundo, bem expresso na própria analogia de Cristo da videira e os ramos (Jo 15:1-17), na expressão de Paulo “em Cristo” (Rm 8:1, 39; 16:3, 7, 9, 10; 1 Co 1:30; 2 Co 5:17; Gl 1:22; 5:6; Ef 1:13), e na menção de João “o Filho de Deus” (1 Jo 5:12).

Reconhecendo que as Escrituras bem como a experiência desempenham um papel fundamental dentro da religião Cristã, permanece ainda a necessidade de considerar mais detalhadamente como elas se relacionam dentro da vida Cristã.

3. A Experiência Igualada Com as Escrituras

Vendo a necessidade de manter unidas as Escrituras e a experiência, alguns Cristãos são tentados a igualar a experiência com as Escrituras. Um exemplo clássico disto é o assim chamado “quadrilátero Wesleyano,” no qual Escrituras, tradição, razão, e experiência são colocadas no mesmo nível de autoridade. Entretanto, Donald A. D. Thorsen afirma que a imagem de um quadrilátero pode não ser a melhor representação da teologia de John Wesley: Se alguém insiste em escolher uma figura geométrica como um paradigma para Wesley, um tetraedro – uma pirâmide tetraedral – seria mais apropriada. As Escrituras serviriam como a base da pirâmide, com os três lados rotulados tradição, razão, e experiência como complementárias mas não como fontes de autoridade religiosa.10

Qualquer tentativa para elevar a experiência ao mesmo nível das Escrituras cria uma certa espécie de lealdade dividida, na qual algumas vezes as Escrituras dominam a experiência e outras vezes a experiência toma o lugar das Escrituras. Muitas vezes a razão humana e o gosto pessoal decidem quais destes elementos deveriam ter primazia. Desse modo, estes ensinos da Bíblia com os quais alguém concorda e que estão ligados a alguém são normativos. Por um lado, essas porções escriturísticas que ele ou ela considera sem sentido ou insípidas são consideradas como condicionadas culturalmente e obsoletas. Mesmo embora a autoridade das Escrituras seja reconhecida, essa autoridade é frequentemente obscurecida pela experiência.

Em contraste com a teologia do encontro e a teologia carismática, que tendem a substituir as Escrituras pela experiência, o próprio texto bíblico parece ser considerado mais seriamente nas hermenêuticas pós modernistas. Mas, por empregar uma “leitura orientada pelo criticismo” em conexão com as Escrituras,11 o método de aproximação pós moderno está preocupado não tanto com o que o texto bíblico diz ou como ele foi entendido por seus leitores originais mas com como as pessoas de hoje entendem o texto e que significado ele realmente tem para elas. Movendo o foco da autoridade das Escrituras para seus leitores, os pós modernistas abrem o texto bíblico para uma variedade de interpretações subjetivas, considerando todas elas igualmente válidas. Consequentemente, não existe mais uma Palavra de Deus clara e consistente, mas sim muitas palavras conflitantes atribuídas supostamente a Deus.

Tratando o assunto da “relevância e ambiguidade da experiência”, Anthony C. Thiselton admoesta que se a experiência “for separada das Escrituras, tradição, e razão, ela é notoriamente capaz de interpretação desestabilizadora ou diversa.”12 Por isto, a fim de evitar este perigo, temos de levar mais seriamente em consideração o que a Bíblia tem a dizer a respeito de si mesma e seu relacionamento com a experiência.

4. As Escrituras Mediando a Experiência

A Bíblia declara claramente que nossa experiência salvífica com Deus deve ser instruída e mediada pela palavra escrita de Deus. No livro dos Salmos a palavra de Deus é metaforicamente chamada de “uma lâmpada” para nossos pés e de “uma luz” para nosso caminho (Sl 119:105). Cristo declarou que Seus seguidores deveriam viver “de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4:4). Paulo explica, “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não houver quem pregue? E como pregarão se não forem enviados?” (Rm 10:13-15). Esses e outros convites bíblicos para viver fielmente pela Palavra de Deus implicam que a Palavra precede a experiência. De acordo com Arthur Weiser, “a fé é sempre a reação do homem à ação primária de Deus.”13

Evidências escriturísticas indicam que a “palavra” pela qual os Cristãos deveriam viver não é impressões subjetivas do Espírito Santo sobre a consciência do Cristão. Essa “palavra” se refere às vozes proféticas objetivas registradas nas Escrituras. Isaías aconselha, “À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, nunca verão a alva” (Is 8:20). O apóstolo Pedro explica, “Assim, temos ainda mais firme a palavra dos profetas, e vocês farão bem se a ela prestarem atenção, como a uma candeia que brilha em lugar escuro, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça no coração de vocês. Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” (2 Pe 1:19-21).

Mesmo aceitando a primazia das Escrituras sobre a experiência, muitos Cristãos hoje leem a Bíblia não mais para aprender a verdade, mas apenas para nutrir seu relacionamento místico com Cristo.14 A obediência aos valiosos componentes da ética bíblica é considerada como derivando espontaneamente de um relacionamento pessoal com Cristo. Aqueles componentes que não derivam dessa maneira são considerados sem sentido e irrelevantes. Tão atrativa como essa noção possa ser, temos que aprender que a aceitação de Cristo como Salvador pessoal não leva automaticamente à obediência concreta aos componentes de um estilo de vida tais como a observância do Sábado, a devolução do dízimo, e reforma de saúde. Quando alguém aceita a Cristo, o princípio e motivação para a obediência são implantados em sua vida (veja Fp 2:13), não deixando lugar para qualquer mérito humano na salvação; mas a obediência em termos concretos tem que ser aprendida das Escrituras.

Falando da própria obediência de Cristo, a Bíblia declara que “ele crescia em sabedoria” (Lc 2:52). Ellen G. White adiciona que dos “lábios” de Maria “e dos rolos dos profetas, Ele [Jesus] aprendeu as coisas celestiais. As próprias palavras por Ele ditas a Moisés para Israel, eram-Lhes agora ensinadas aos joelhos de Sua mãe.”15 E o apóstolo Paulo aconselhou Timóteo a permanecer “nas coisas que aprendeu e das quais tem convicção, pois você sabe de quem o aprendeu. Porque desde criança você conhece as Sagradas Letras, que são capazes de torna-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus” (2 Tm 3:14, 15). Isto significa que o conhecimento salvífico de Deus deve ser aprendido das Escrituras e praticada na vida diária.

Observações Conclusivas

Visto que a religião Cristã é uma experiência pessoal com Deus e com os seres humanos (Mt 22:34-40), não podemos descartar seu elemento experiencial sem arruinar toda a nossa religião. Mas muitos Cristãos hoje estão aceitando um modo de aproximação centralizado na experiência que deixa as Escrituras abertas a uma vasta variedade de interpretações subjetivas. Aqueles que apoiam o princípio sola Scriptura nunca considerarão a experiência como possuindo o mesmo valor ou valor mais elevado do que as Escrituras. O mesmo Espírito Santo que inspirou os profetas canônicos guiará os crentes em plena conformidade com a palavra de Deus. De acordo com as próprias palavras de Cristo, “Mas quando o Espírito da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade” (Jo 16:13). “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (Jo 17:17). Em outras palavras, nossa experiência deveria ser mediada e guiada pelas Escrituras. Isto significa que nossa experiência pessoal com Deus, em vez de nos afastar de Sua Palavra, deveria nos aproximar mais e mais de ela.

Pensar de modo independente é considerado como a característica básica de uma pessoa madura. Indubitavelmente, os Cristãos deveriam ser “pensantes e não meros refletores do pensamento de outrem.”16 Mas, ao mesmo tempo, maturidade Cristã também significa tornar-se cada vez mais dependente de Deus e de Sua Palavra. Na verdade, “Toda a humanidade é como a relva, e toda a sua glória como as flores do campo. A relva murcha e cai a sua flor, quando o vento do Senhor sopra sobre eles (sic); o povo não passa de relva. A relva murcha, e as flores caem, mas a palavra de nosso Deus permanece para sempre” (Is 40:6-8).

*Alberto R. Timm é o Reitor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia e Coordenador do Espírito de Profecia para a Divisão Sul Americana dos Adventistas do Sétimo Dia.

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1. Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP, Casa Publicadora Brasileira, 2008), 595.

2. Um excelente método de aproximação desse processo é fornecido por Jacques Ellul em seu livro The Subversion of Christianity (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986). 3 Alister McGrath, Understanding Doctrine: Its Relevance and Purpose for Today (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), 39. 4. A menos que indicado de outro modo, todas as citações das Escrituras são da Nova Versão Internacional (NVI).

5. Uma avaliação útil deste fenômeno pode ser encontrada em Vanderlei Dorneles, Cristãos em Busca do Êxtase, 2ª ed. (Engenheiro Coelho, SP, Brasil: Unaspress, 2003).

6. Veja Martin Buber, I and Thou, traduzido por Walter Kaufmann (New York: Charles Scribner’s Sons, 1970).

7. Este modo de aproximação permeia todo o livro de Charles B. Ketcham, A Theology of Encounter: The Ontological Ground for a New Christology (University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1978).

8. Um exemplo negativo de tal teologia sobre a autoridade e função da Bíblia pode ser encontrado em Herold Weiss, “Revelation and the Bible: Beyond Verbal Inspiration,” Spectrum 7, nº 3 (1975): 53.

9. Ralph P. Martin, 2 Corinthians (Word Biblical Commentary; 52 vols.; Waco, TX: Word Books, 1986), 40:55.

10. Donald A. D. Thorsen, The Wesleyan Quadrilateral: Scripture, Tradition, Reason & Experience as a Model of Evangelical Theology (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), 71.

11. Para exposissões não-Adventistas da hermenêutica pós modernista, veja, e.g., Edgar V. McKnight, Postmodern Use of the Bible: The Emergence of Reader-oriented Criticism (Nashville, TN: Abingdon, 1988);

12. Anthony C. Thiselton, New Horizons in Hermeneutics (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992); George Aichele et al.,The Postmodern Bible: The Bible and Culture Collective (New Haven, CT: Yale University Press, 1995). 12 Anthony C. Thiselton, The Hermeneutics of Doctrine (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007), 451, 453. 5.

13 Artur Weiser, “pisteuō,” in Gerhard Friedrich, ed., Theological Dictionary of the New Testament, traduzido por Geoffrey W. Bromiley (10 vols.; Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1968), 6:182.

14. Veja Morris Venden, Love God and Do as You Please: A New Look at the Old Rules (Nampa, ID: Pacific Press, 1992).

15. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), 70. 16 Ellen G. White, Educação (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), 17.

FONTE: Centro de Pesquisas Ellen G. White

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O ÚNICO DEUS VERDADEIRO


 Cristhian Alvarez Zaldúa*

O significado de João 17:3 e suas implicações no debate sobre a Trindade

Um dos textos bíblicos utilizados por adeptos do antitrinitarianismo para negar a divindade de Cristo é João 17:3: “A vida eterna é esta: que Te conheçam a Ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” Segundo eles, essas palavras proferidas por Jesus aos discípulos, antes da Sua morte, são evidência de que para Ele somente o Pai é Deus, porque, se para Cristo o Pai é o “único Deus verdadeiro”, evidentemente que Ele, Jesus, não pode ser Deus igual ao Pai.1 Deve-se notar que, para os antitrinitarianos, esse é um argumento irrefutável que anula completamente a doutrina da Trindade. Portanto, é preciso analisar o assunto com cuidado.

Problemas de interpretação

Antes de analisar o texto de João 17:3, dois problemas que impedem os antitrinitarianos de entender corretamente a doutrina da Trindade devem ser destacados: (1) confusão em relação aos conceitos e (2) desconsideração ao contexto amplo da Bíblia.

Confusão dos conceitos. Um dos erros mais óbvios nas publicações antitrinitarianas, por exemplo, é que confundem Trindade com modalismo (sabelianismo). A doutrina bíblica da Trindade ensina que há três Pessoas divinas que são uma unidade, enquanto o modalismo fala de uma pessoa divina que adotou três maneiras diferentes de Se apresentar. Portanto, as diferenças entre os dois conceitos são evidentes.

Assim, nessas publicações podemos encontrar perguntas como: “Ao se aproximar o tempo da morte de Jesus, a quem Ele orou? A quem clamou? Para Si mesmo ou para uma parte de Si mesmo? [...] E se Jesus é Deus, então quem O abandonou? Ele abandonou a Si mesmo?”2

Sem dúvida, essas são boas perguntas para os modalistas que não veem nenhuma diferença entre as Pessoas da Divindade, e que precisam recorrer a malabarismos interpretativos complexos para tentar explicar como uma única Pessoa pode Se apresentar como três em toda a Bíblia.

Entretanto, esse não é um problema para os trinitarianos que acreditam na distinção de personalidade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Mt 28:19; 2Co 13:14).3

Para os que creem na doutrina bíblica da Trindade é muito simples responder que durante Seu ministério, Jesus orou e clamou ao Pai que “está nos Céus” (Mt 5:45, 48, NAA; 7:11; 10:32).

Em um exemplo de argumento antitrinitariano, encontramos o seguinte texto: “Jesus também mostrou que Ele e Deus eram seres diferentes [...]. Quando Seus inimigos questionaram Sua autoridade, Ele lhes disse: ‘Em sua lei está escrito: O testemunho de dois homens é verdadeiro’. [...] Para considerar seu testemunho e o de Jeová como dois testemunhos, é óbvio que eles não poderiam ser o mesmo ser.”4 Outro texto ilustrativo dedica grande parte do seu conteúdo para apresentar o Pai e o Filho como duas Pessoas diferentes. Nele pode-se ler declarações como: “Visto que Jesus orou para estar ao lado de Deus, como poderia Ele ser ao mesmo tempo ‘o único Deus verdadeiro’? [...] Poderia ser ‘o Cordeiro’ o mesmo ‘que Seu Pai’? (Ap 14:1, 3). Obviamente que não. A Bíblia descreve Deus e Jesus como dois Seres distintos e dá nomes diferentes a cada um Deles.”5

É evidente que os antitrinitarianos entendem que, ao afirmar que Jesus é Deus, estamos dizendo que Jesus e o Pai são a mesma pessoa. Entretanto, sem dúvida, eles interpretam erroneamente, porque, concordamos em declarar que o Pai e o Filho são duas Pessoas distintas, porém o Filho possui a mesma natureza divina do Pai (Jo 1:1).

Desconsideração ao contexto. Outro grande problema que os antitrinitarianos enfrentam ao refutar a doutrinada Trindade é se apegarem a certos textos preferidos, que parecem favorecer sua posição doutrinária, e ignorar o amplo contexto da Bíblia. Para argumentar em favor de que somente o Pai é Deus, e o Filho sempre é subordinado a Ele, reconhecendo-O como superior, eles citam várias afirmações de Jesus, por exemplo: “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no Céu, nem o Filho, senão o Pai” (Mc 13:32); “Pai [...] não se faça a Minha vontade, e sim a Tua” (Lc 22:42); “Eu nada posso fazer de Mim mesmo [...] porque não procuro a Minha própria vontade, e sim a Daquele que Me enviou” (Jo 5:30); “Assim como o Pai, que vive, Me enviou, [...] igualmente Eu vivo pelo Pai” (Jo 6:57); “Se vocês Me amassem, ficariam alegres com a Minha ida para o Pai, porque o Pai é maior do que Eu” (Jo 14:28, NAA).

Tomar essas declarações de maneira isolada para apoiar a inferioridade ontológica de Cristo em relação a Seu Pai não é apenas ignorar o contexto em que foram ditas, mas contradizer outra quantidade de textos bíblicos que, sem deixar lugar para dúvida, mostram claramente que Jesus é Deus (por exemplo, Jo 1:1, Tt 2:13, Hb 1:8).

O amplo contexto das Escrituras revela que Jesus pronunciou essas palavras enquanto estava encarnado, isto é, depois de ter Se despojado de Sua glória, igual à de Seu Pai. “A Si mesmo Se esvaziou, assumindo a forma de Servo, tornando-Se em semelhança de homens”, assim Ele “a Si mesmo Se humilhou, tornando-Se obediente até à morte” (Fp 2:7, 8). Nesse estado de autolimitação, como qualquer ser humano, Cristo dependia inteiramente de Seu Pai e esteve completamente sujeito à vontade Dele. Foi nessa condição que Jesus afirmou que Seu Pai tinha conhecimentos que Ele não tinha, ou que Sua vida dependia do Pai. Quando esse estado de humilhação terminou, o Pai “O exaltou sobremaneira e Lhe deu o nome que está acima de todo nome” (Fp 2:9). Dessa forma, embora o Filho mantenha uma natureza humana glorificada (Cl 2:9) e continue a exercer funções dentro da Divindade, Suas limitações autoimpostas terminaram (Hb 1:6, 8).

Uma regra básica para não gerar contradições quando se interpreta a Bíblia é não construir uma doutrina fundamentada somente em um único texto, especialmente quando a interpretação deste conflita com outras partes das Escrituras. Portanto, qualquer interpretação de João 17:3 deve estar em harmonia com o restante da Bíblia.

Interpretação correta

A expressão “o único Deus verdadeiro” (Jo 17:3) no grego koinê é ton monon alethinon Theon. Se essa frase é tão restritiva que exclui Jesus da Sua divindade e alude que somente o Pai seja “Deus (Theos) verdadeiro (alethinos)”, então Cristo deve ser “um deus falso”,6 porque, no grego, o mesmo livro de João usa Theos (Deus) várias vezes para Ele, além das vezes em que o fez no restante da Bíblia. João 1:1 diz: “E o Verbo era Deus (Theos)”; 1:18 diz: “o Deus (Theos) unigênito, que está no seio do Pai, é quem O revelou”;7 20:28 diz: “Senhor meu e Deus (Theos) meu!”

Os antitrinitarianos não aceitam chamar Jesus de “falso Deus”, somente um deus menor. Mas o texto diz “o único Deus verdadeiro”, e se a frase é total e absolutamente exclusiva como eles afirmam, e o único “verdadeiro Theos” é o Pai, não há outra conclusão além de pensar em Cristo como algum tipo de “falso deus”.

Na tentativa de não colocar Jesus na categoria de “falso Deus”, algumas denominações afirmam que os termos “Deus” e “deus” também foram atribuídos a seres humanos como Moisés (Êx 7:1), aos anjos (Sl 82:1, 6) e até mesmo ao próprio Satanás (2Co 4:4).8 O argumento é que, se eles receberam esses títulos sem ser “deuses verdadeiros”, então Cristo também pode aceitá-lo sem a necessidade de ser verdadeiro.

Contudo, é preciso esclarecer que em nenhum dos três casos mencionados (Moisés, anjos e Satanás), o termo “deus” é atribuído em sentido absoluto, mas apenas em sentido relativo, a fim de designar alguém que recebeu autoridade e poder, como no caso de Moisés diante do faraó; ou para alguém sobrenatural, como Satanás, a quem o mundo rebelde serve (1Jo 5:19).

Nos três casos, eles sempre foram e serão seres criados que dependem do verdadeiro Deus para existir. No entanto, Jesus está em um plano totalmente diferente de todas as criaturas finitas. A Bíblia revela que Cristo possui a mesma natureza divina do Pai (Jo 1:1); Ele foi o Agente ativo da Criação (Jo 1:3; Cl 1:16); tem os títulos divinos do Pai “o primeiro e o último”, “o princípio e o fim”, “o Alfa e o Ômega” (Ap 22:12-16); o Pai O chama Deus (Hb 1:8) e ordena aos anjos que adorem o Filho (Hb 1:6).9

O apóstolo João, ao escrever “o único Deus verdadeiro” (Jo 17:3), não estava excluindo Jesus, que é divino e da mesma natureza do Pai. Na Bíblia, o termo “único” é mais abrangente quando aplicado às pessoas da Divindade. Em Judas 1:4, a tradução literal do grego ton monon despoten kai kyrion hemon Iesou Christon é “nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo”.10 De acordo com essa passagem, Jesus é “o único Senhor”, o que significa que, se aplicarmos a interpretação antitrinitariana, o Pai seria excluído de ser chamado “Senhor”. No entanto, Cristo chama o Pai de “Senhor do Céu e da Terra” (Mt 11:25). Isso significa que, embora Jesus seja “o único Senhor”, também não exclui o Pai de ser chamado de “Senhor”.

Em 1 Coríntios 8:6, lemos: “Para nós há um só Deus, o Pai [...]; e um só Senhor, Jesus Cristo.” Se a expressão “um só Deus” exclui Jesus de ser Deus, então a expressão “um só Senhor” também deve excluir o Pai de ser Senhor, como já foi mencionado. Em Judas 1:25 a expressão grega mono Theo soteri hemon dia Iesou Christou é traduzida da seguinte forma: “Ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso.” Aqui o Pai é o “único Deus”, e também é chamado de “Salvador”, no entanto, isso não exclui que Jesus seja chamado Salvador (Lc 2:11; 2Pe 3:18; Tt 3:6; Fp 3:20).

Curiosamente, as denominações antitrinitarianas reconhecem que a palavra “único” não é exclusiva quando se trata de aplicar atributos às três Pessoas da Divindade. Por exemplo, 1 Timóteo 6:15 e 16, que diz: “Único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade.” Para alguns antitrinitarianos, esse texto se aplica a Jesus. Entretanto, observe que o texto fala do “único (monos) que tem imortalidade”. Será então que, ao dizer que Jesus é o “único que tem imortalidade”, a Bíblia exclui o Pai de ser imortal? Obviamente, não!

Eles têm tentado explicar que Jesus Se tornou imortal somente após Sua ressurreição, que Ele “não possuía imortalidade antes que Deus O ressuscitasse. Por essa razão [...] [Jesus] difere de todos os outros reis e senhores no sentido de que Ele é ‘o único que tem imortalidade’. Por serem mortais, os outros reis e senhores morrem [...]. No entanto, o Jesus glorificado, [...] tem ‘vida indestrutível’ (Hb 7:15-17, 23-25).”11 Além dessa interpretação questionável, é inegável que o texto diz “o único que tem imortalidade”, e se eles consideram que aqui se fala de Cristo, então é impossível negar o fato de que “único” não seja tão restritivo a ponto de excluir Deus, o Pai, dessa prerrogativa.

Os exemplos acima revelam que a expressão “único Deus verdadeiro” em João 17:3 não exclui que Jesus seja Deus porque, quando Ele orou ao Pai e disse essas palavras, Ele não estava Se eximindo da Sua unidade em natureza com o Pai (Jo 17:5), mas exaltando o Pai acima de todos os deuses inventados pelo homem, isto é, os falsos deuses. Além disso, deve ser lembrado que, no livro de João, a unidade entre o Pai e o Filho é tão estreita que a única maneira de conhecer o Pai é por meio do conhecimento do Filho (Jo 1:18; 14:6-11; 5:22, 23).

Conclusão

Portanto, à luz dos argumentos desse artigo, fica claro que João 17:3 confirma a divindade do Pai, mas não descarta a divindade plena e absoluta do Filho (cf. Jo 1:1), a qual está em total harmonia com a Bíblia.

Como ministros do evangelho, devemos estar conscientes de que a verdadeira mensagem de salvação deve ser levada “a cada nação, e tribo, e língua, e povo” (Ap 14:6). No entanto, na tentativa de alcançar todos, encontraremos pessoas que talvez não estejam ensinando em conformidade com as Escrituras. Por essa razão, é nossa responsabilidade preparar o rebanho não apenas para defender a fé, mas para alcançar aqueles sinceros que, vendo a verdade, desejem abandonar o erro.

Referências

1. La Atalaya, 1º/4/2012.

2. ¿Debería Creer Usted en la Trinidad? (Brooklyn, NY: Watch Tower Bible and Tract Society, 1989), p. 18.

3. Cristhian Alvarez Zaldúa, ¿Doctrina Bíblica o Invento Humano? (Lima: Universidad Peruana Unión, 2012), p. 79-96.

4 Jesus Cristo: preguntas y respuestas”, La Atalaya, 1º/4/2012, p. 5.

5. “¿Quién es ‘el único Dios verdadero’?”, ¡Despertad!, 22/4/2005, p. 6.

6. Razonamiento a partir de las Escrituras (Brooklyn, NY: Watch Tower Bible and Tract Society of New York, 1989), p. 404.

7. Reina-Valera (1995): “el unigénito Hijo”, mas no original, monogenés Theos (Deus unigênito).

8. “¿Hay un solo Dios verdadero?”, ¡Despertad!, fev. 2006, p. 29.

9. “Adora a Jesus”, as Testemunhas de Jeová, em sua versão da Bíblia, traduzem “render homenagem”.

10. Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek NT, 2ª ed. (Stuttgart: German Bible Soc., 1994), p. 169.

11. Perspicacia para Comprender las Escrituras, v. 1 (Brooklyn, NY: Watch Tower and Tract Soc. Of Pennsylvania, 1991), p. 1229.

 

*Cristhian Alvarez Zaldúa, doutor em Teologia, é professor de Teologia Sistemática na Universidade Adventista da Bolívia.

 

FONTE: Revista Ministério, Jul-Ago de 2018, p. 19-21