Teologia

domingo, 22 de fevereiro de 2015

O CULTO A MARIA: UMA CRIAÇÃO DO PAPADO



José Miranda Rocha, D.Min.
Professor de Teologia Pastoral no SALT, Unasp, Campus Engenheiro Coelho, São Paulo

Resumo: O presente trabalho focaliza a maneira como o culto à pessoa de Maria, mãe de Jesus, tornou-se uma das características marcantes do catolicismo romano. Além de investigar as raízes históricas dessa forma de culto, o autor compara-a com o testemunho das Sagradas Escrituras. O artigo conclui com uma apreciação bíblica dos dogmas católicos relacionados a Maria: a maternidade divina, a virgindade perpétua, a imaculada concepção e a assunção corporal.

Introdução

Em matéria publicada no jornal O Globo, Leneide Duarte observou, em 1998, que “a Santíssima Trindade pode estar com os dias contados”. Sua afirmação baseava-se em um estudo da Igreja Católica prestes, então, a proclamar um novo dogma sobre a virgem Maria, elevando a mãe de Jesus à posição de quarta pessoa da divindade, em “pé de igualdade com o Pai, o Filho e o Espírito Santo”, com papéis múltiplos, pois seria venerada como “filha do Pai, mãe do Filho e esposa do Espírito Santo”.1 A possibilidade de uma decisão como aquela resultava de um pedido formulado pelas assinaturas de mais de quatro milhões de pessoas, representando católicos de 157 países, dentre os quais figuravam nomes famosos, como o de Madre Teresa de Calcutá, aproximadamente 500 bispos e 42 cardeais, incluindo o famoso John O’Connor de Nova Iorque, o polonês Joseph Glemp e 18 cardeais do próprio Vaticano.2

O líder da petição, o teólogo Mark Miravalle, professor da Franciscan University em Steubenville, Ohio, mostrava-se à época muito confiante de que João Paulo II decretasse o novo dogma, por meio de sua autoridade papal, aceita como infalível e irrevogável pelos católicos romanos. Tal decreto elevaria essa doutrina ao mais alto nível de verdade revelada.3 A petição de Miravalle e de mais de quatro milhões de católicos ao redor do mundo representava o anseio de uma vitória da teologia católica na comemoração do jubileu do ano 2000, mas provou ser um obstáculo para as pretensões papais de unir os cristãos de diferentes denominações sob sua liderança. Houve reação contrária mesmo entre os católicos de outros segmentos, como os ortodoxos e anglicanos, provocando a formação de uma comissão de 23 teólogos mariologistas, que, por unanimidade, desaconselharam a promulgação do novo dogma.4

A expectativa dos católicos romanos que almejavam ver promulgada por decreto papal a divinização de Maria convida o mundo cristão não apenas a oferecer oposição a uma tal investida de natureza teológica, mas, sobretudo, a questionar se existe base bíblica para o culto à Virgem de Nazaré, visto que a Bíblia é a única regra de fé e prática para o cristão. O presente artigo tem como objetivo responder a tal questionamento. Primeiramente, será traçado o perfil bíblico de Maria, de acordo com o testemunho da igreja apostólica. Em seguida, serão focalizadas tradições pós-apostólicas referentes a Maria e as implicações que geraram para o culto à mãe terrena de Jesus. Finalmente, a questão será analisada em termos teológicos à luz dos postulados bíblicos da doutrina da salvação.

O perfil bíblico de Maria
Nos quatro evangelhos

Maria é apresentada pelos evangelistas Mateus e Lucas como  a “virgem desposada com José” (Mt 1:18; Lc 1:27). O texto bíblico é silente quanto aos pais da virgem, mas informa que ela habitava em uma cidade da Galiléia chamada Nazaré, na época com uma pequena população entre 500 a 600 habitantes. Segundo Davis, com base na opinião de eruditos do Novo Testamento, a genealogia de Cristo como aparece no Evangelho de Lucas mostra a sua linhagem materna supondo, neste caso, que Heli teria sido o pai de Maria (Lc 3:23-38).5 O Evangelho de Marcos passa por alto a história natalina e apresenta o Messias como adulto, sem, contudo, desconhecer o fato da encarnação. Ao referir-se à rejeição de Jesus pelos habitantes de Nazaré, Marcos registra as palavras dos habitantes daquela vila da Galiléia, como testemunho da historicidade de Maria: “Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? E não vivem aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se nele” (Mc 6:3).

Os documentos lucanos, o Evangelho e Atos, apresentam Maria como uma figura bem presente na história de Cristo, desde a Sua infância até ao período pós-ressurreição, quando aparece em oração entre os apóstolos e discípulos: “Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele” (At 1:14). Não é difícil enxergar Maria como uma das fontes às quais Lucas recorreu para compor os quadros de “uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra”. (Lc 1:1-2). Afinal, quem poderia contar com tantos detalhes de intimidade acerca da visita de Maria a Isabel e do diálogo entre as duas mulheres grávidas, senão uma delas ou ambas?

Certamente o evangelista Lucas foi inspirado por Deus ao registrar as palavras do anjo dirigidas a Maria: “Alegra-te, muito favorecida! O Senhor é contigo… não temas; porque achaste graça diante de Deus… Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus” (Lc 1:28,30,35).  Em casa de Isabel, sua prima, Maria é destacada novamente como “bendita…entre as mulheres” (Lc 1:42), em vista de ter o Messias como o fruto do seu ventre. Maior bem-aventurança não poderia haver para uma virgem de Judá do que o fato de ter sido escolhida para ser a mãe do Salvador da humanidade.  Em Maria se cumpriam as mais anelantes expectativas proféticas. A promessa pronunciada junto ao portal do Éden anunciava que no decurso dos séculos  o “descendente” da mulher esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3:15). Paulo reconheceu o cumprimento desta profecia no nascimento do Filho de Maria.  O apóstolo registrou que, ao nascer Jesus, chegara o advento da “plenitude do tempo…para resgatar os que estavam sob a [condenação da] lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4:4,5). Devemos ainda lembrar que Lucas encerra o seu evangelho chamando a atenção dos leitores para o perfil de Maria como judia fiel, obediente aos Dez Mandamentos, com destaque, na ocasião, ao quarto mandamento e o sábado bíblico. Embora Lucas 23:54-56 não seja explícito em mencionar o nome de Maria, pode-se supor que ela fazia parte das santas mulheres, vindas da Galiléia e que acompanharam a crucifixão e o sepultamento de Jesus.

O apóstolo João abre o relato dos sinais operados por Cristo na Galiléia dando destaque à presença de Maria na bodas de Caná (Jo 2:1-5). Passada a festa nupcial, “desceu  ele para Cafarnaum, com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias” (Jo 2:12). A presença de Maria na vida do Messias, de acordo com João, estende-se desde o início até ao final do Seu ministério. Ao pé da cruz, ali se encontra a mulher que trouxera à luz da vida o Verbo Divino manifestado como ser humano. Para ela são dirigidas palavras de atenção especial, como se Jesus desejasse circundá-la com a mesma segurança da qual uma vez fora objeto em Sua vida terrena: “Vendo Jesus sua mãe e junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. Desta hora em diante, o discípulo a tomou para casa” (Jo 19:25-27).

Entre cristãos, não há discordância acerca destes conceitos sobre a pessoa de Maria.  Em todas as denominações cristãs, Maria é reconhecida como uma pessoa especial, escolhida por Deus pela sua vida santa e devotada à prática da religião.  Segundo Cáio Fábio D’ Araújo Filho, “a mãe de Jesus é vista nos evangelhos como uma bem-aventurada, eleita pela graça de Deus para a mais sublime de todas as missões que um mortal já recebeu”.6  Paulo Pinheiro, editor de Sinais dos Tempos, afirma: “Maria, a mãe de Jesus, foi uma pessoa formidável”.  Ao escrever o seu Comentário ao Magnificat, Martinho Lutero declarou que “Maria é a mulher mais sublime da Terra”.7 Ellen G. White apresenta-a como uma fonte de sabedoria e instrução para Jesus, “sua mãe foi-lhe a primeira professora humana”.8 Para White, “as próprias palavras por Ele [Jesus] ditas a Moisés para Israel, eram-lhe agora ensinadas aos joelhos de Sua mãe”.9  Augustin George, professor de Novo Testamento da Faculté Catholique de Théologie de Lyon, França, declara que, “por sua fé, seu amor e sua humildade, [Maria] é a bela flor de seu povo e toda a raça humana”.10

Na igreja apostólica

Além da unanimidade quanto à santidade e piedade de Maria enquanto pessoa humana e mãe de Jesus, quase todas as denominações cristãs, à exceção dos católicos, também concordam em afirmar que na igreja apostólica não havia nenhuma veneração ou culto a Maria.  A primeira razão pode ser encontrada na própria religião professada pela Virgem e seu povo.  O judaísmo baseava-se nas Escrituras do Antigo Testamento, cujas prescrições apontavam para Deus Criador como o Único merecedor de honra e adoração por parte dos homens.  Os dois primeiros mandamentos do Decálogo eram explícitas proibições de idolatria e a constante lembrança de que unicamente Deus deveria ser adorado ou venerado. (Êx 20:3-6; Dt 6:1-4).

Um segundo argumento assegura que a própria virgem Maria expressa sua fé nos moldes bíblicos, ao entoar as estrofes de seu cântico de louvor, o “Magnificat”, em Lucas 1:46-47.  Para Maria, não havia lugar para outro Deus a quem ela chama de “Senhor” e “meu Salvador”.  Ainda que não compreendesse completamente o mistério da encarnação de Cristo, ela tinha a certeza de que “o Ente santo” nascido de seu ventre era o Filho de Deus prometido pelas antigas profecias (Lc 1:35).  Com base nessa confiança, ela “guardava todas estas palavras [ditas pelo anjo], meditando-as no coração” (Lc 2:19). A compreensão de seu papel na história da salvação pode ser entendida pelo conselho dado por ela aos serventes da festa de Caná: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2:5).  Deus não Se contradiz.  Tomando como ponto de partida que Jesus é Deus, seria incoerente pensar que Ele ordenaria cultuar um ser criado, ainda que fosse o mais santo e sublime entre os seres humanos, como era o caso de Sua mãe.

A despeito dos mais exaltados conceitos de piedade expressos em sua vida, Maria revela, pelo menos em duas ocasiões, traços da humanidade pecadora.  A primeira, ao perder Jesus durante as comemorações da Páscoa (Lc 2:48-51); a segunda, ao tentar, com o auxílio dos irmãos de Jesus, retirá-Lo do ministério público (Mc 3:31-35). Em todo o Novo Testamento não há nenhuma motivação para que Maria fosse venerada ou adorada.  Pelo contrário, dos lábios de Jesus saiu uma séria reprovação para uma mulher que parecia insinuar qualquer atitude nessa direção (Lc 11:27-28). Quase quatro décadas após a morte e ascensão de Jesus, ao escrever o livro de Atos, Lucas registra que “Todos estes [os apóstolos] perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, estando entre elas Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele” (At 1:13-14). Ela era uma discípula como todos os que perseveram na fé, sem qualquer menção de status espiritual diferenciado em relação aos demais.  Não havia qualquer indício de reconhecimento da superioridade de Maria por parte dos outros seguidores de Cristo. O relato é coerente com os quatro evangelhos, nos quais se percebe que tanto a mãe como o próprio Filho nunca incentivaram qualquer atitude de veneração ou adoração à sua pessoa.  Ela era uma crente em Cristo que demonstrava tanta necessidade de Deus como todos os outros pecadores. Assim, se não foram os cristãos primitivos que iniciaram o culto a Maria, quando e como tal prática começou a ter lugar?

Tradições pós-apostólicas

É difícil precisar quando o culto à mãe de Jesus emergiu na igreja cristã.  Não há documentos que comprovem atos de adoração a Maria até o final do quarto século.11  “Se nós nos aproximarmos dos textos marianos do segundo século com a esperança de que eles possam refletir fontes adicionais independentes para a questão sobre Maria, o resultado é desapontador.”12 Entre os Pais da Igreja havia dissensões acerca da pessoa da Virgem. Atanásio a enaltecia em seus escritos, mas Crisóstomo mostrava-a falível como qualquer pecador, chegando mesmo a ressaltar seus momentos de descrença e vanglória.13 “Justino Martir, Irineu e Tertuliano sugeriram que, como Eva havia sido a fonte do pecado e da morte, Maria trouxe a bênção da redenção ao mundo.”14

Mas, apesar de não haver qualquer evidência bíblica que ofereça suporte ao culto a Maria, em sua decisão de afirmar e reafirmar a veneração da mãe de Jesus na teologia e liturgia católica, o papado promulgou e tem sustentado quatro principais conceitos dogmáticos15:

1. O dogma da maternidade divina

Em 431 d.C., no Concílio Geral de Éfeso, a controvérsia sobre as naturezas divina e humana de Jesus levou a Igreja Católica a dar os primeiros passos para o estabelecimento do dogma de Maria como “Mãe de Deus”. O argumento para se chegar a tal consenso encontrava sua força na filosofia grega, que postulava a impossibilidade de Deus entrar em contato com o universo material e ainda permanecer como Deus.  Assim, para que o nascimento do Deus-homem, Cristo Jesus, se tornasse logicamente viável, haveria de ser imprescindível que Maria fosse divina tanto quanto o seu Filho. Através deste dogma, Cristo é uma pessoa divina e Maria é sua mãe. Argumentam os defensores do culto mariano que “Maria é mãe de Jesus Cristo; ora, Jesus Cristo é Deus.  Logo, Maria é mãe de Deus”.16

As circunstâncias que implicaram na promulgação desse dogma lembram a acirrada discussão teológica na qual a igreja de Alexandria e seu bispo Cirilo se empenharam para defender a divindade de Cristo contra o nestorianismo. Nestório, Patriarca de Constantinopla em 428 d.C., representando a escola antioquiana de Cristologia, defendia a tese de que “a criatura não deu à luz o incriável”, “o Verbo saiu dela, mas não nasceu dela”. Em seus sermões, Nestório fazia declarações do tipo: “Não digo que Deus tem dois ou três meses de idade”.17

Certamente nessa época, a polêmica nestoriana causou grande abalo na Igreja. Em agosto de 430, o papa Celestino condenou Nestório e deixou que Cirilo pronunciasse doze anátemas sobre ele em novembro do mesmo ano. Infelizmente, na tentativa de superar a polêmica gerada pelos nestorianos, a decisão do Concílio de Éfeso foi depor Nestório do bispado, enviando-o à reclusão da vida monástica em Antioquia, de onde cinco anos mais tarde viu-se banido para o norte do Egito. Provavelmente morreu ali em 451. O Concílio de Éfeso, cujas decisões foram oficializadas pelo Concílio de Calcedônia, não somente livrou-se de Nestório como líder em oposição a Cirilo de Alexandria e ao bispo de Roma, mas também dogmatizou a posição cristã sobre as duas naturezas de Cristo pela declaração de que ambas coexistem nEle por meio de uma união hipostática, isto é, distinguíveis entre si, mas unidas numa só pessoa. Éfeso aplicou a Maria o termo grego Theótokos (“Mãe de Deus”), com a intenção de reafirmar a plena deidade de Cristo, procurando anular a tese nestoriana que se difundia pelo título de Christótokos (“Mãe de Cristo”). Com a aplicação do termo Theótokos a Maria, a Igreja alegava não declará-la como mãe da natureza divina de Cristo.  Mas, por força da filosofia grega, a Igreja dizia que a única maneira de dar à luz o imaculado Cristo seria através da perfeição de sua própria natureza feminina.

Pelo século nono da era cristã, a influência grega tornou-se marcante na mariologia ocidental, como se conhece do hino Ave Maris Stella, o qual enaltece Maria como a “Estrela do Mar”.18  Na teologia Católica Romana, é como a “mãe de Deus” que Maria assume a função de mediadora, não para tomar o lugar de Cristo como o único mediador entre Deus e os seres humanos (1Tm 2:5), mas para intermediar entre Cristo e a humanidade, como fez nas bodas de Caná (Jo 2:3).19  Concernentemente a esta declaração teológica acerca do status de Maria, todo cristão deve lembrar, porém, que a humanidade de Jesus tinha de vir da mulher em cujo seio foi gerado. Mas a Sua divindade não podia proceder da mulher que não é divina. O efeito se prende à causa. Humano gera Humano. Jesus Cristo é Deus com todos os atributos que O caracterizam. Como Deus, não teve princípio nem fim, pois é co-eterno com a mesma Divindade. Maria, porém, era somente humana porque a divindade é atributo imanente da Trindade. Divindade só entra no sagrado patrimônio de cada uma das três pessoas divinas.20

O dogma da maternidade divina vem sendo defendido através dos séculos por católicos orientais (coptas), ortodoxos e gregos, mas principalmente pelos teólogos católicos romanos. Um desses renomados teólogos da Igreja Católica Apostólica Romana, o brasileiro Clodovis Boff, referindo-se ao culto de Maria entre os ortodoxos, afirma: “Em vez de crucifixo, os bispos ortodoxos carregam consigo um retrato de Maria. Isso significa que eles trazem a sua igreja junto do coração”. Boff ainda informa que, entre os cristãos coptas (Etiópia e sul do Egito), um meio de saber se um viajante desconhecido pertence à fé católica é perceber como ele ou ela se comporta diante das imagens da Virgem. “Se não mostra afeição, é considerado inimigo do povo”, afirma Boff.21 O dogma de Maria como mãe de Deus é reafirmado pela Igreja Católica Romana nos seguintes termos: Denominada nos Evangelhos ‘a Mãe de Jesus’ (João 2,1; 19:25), Maria é aclamada, sob o impulso do Espírito, desde antes do nascimento de seu Filho, como ‘a Mãe de meu Senhor’ (Lucas 1:43). Com efeito, Aquele que ela concebeu do Espírito Santo como homem e que se tornou verdadeiramente seu Filho segundo a carne não é outro que o Filho eterno do Pai, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. A Igreja confessa que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus (Theótokos).22

2. O dogma da perpétua virgindade

Maria é celebrada na liturgia da Igreja Católica Romana como a “Aeiparthenos”, isto é, a “sempre virgem”. A declaração oficial da Igreja sobre este pilar do culto mariano reza que o aprofundamento de sua [da Igreja] fé na maternidade virginal levou a Igreja a confessar a virgindade real e perpétua de Maria, mesmo no parto do Filho de Deus feito homem. Com efeito, o nascimento de Cristo ‘não lhe diminuiu, mas sagrou a integridade virginal’ de sua mãe.23

Esta posição vem sendo sustentada oficialmente pelos católicos desde o Segundo Concílio de Constantinopla, em 553 d.C. O documento de Constantinopla declarou que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto. Este concílio, tido como o 5º Concílio Ecumênico, considerou como anátema quem confessasse posição contrária à decisão oficial: Se alguém  não confessa que há dois nascimentos de Deus Verbo, um, do Pai, antes de todos os séculos, sem tempo e incorporalmente; outro nos últimos dias, quando Ele mesmo baixou dos céus, se encarnou da santa gloriosa mãe de Deus e sempre Virgem Maria, e nasceu dela; esse tal seja anátema.24

Contudo, um estudo das declarações dos Pais da Igreja, no segundo século de nossa era, mostra que havia muita polêmica sobre a “virgindade pós-parto”, o que deixa espaço apenas para se pensar no fato de que Maria foi vista pelos primeiros cristãos como virgem antes de conhecer José, como seu marido. Um exemplo disso é a posição de Tertuliano (160-220 d.C.), que em seu tempo rejeitava o ensino da perpétua virgindade. Na esperança de combater o erro doutrinário, Tertuliano cunhou a frase: Virgo quantum a viro, non virgo quantum a partu (Virgem em termos de um marido, não-virgem em termos de dar à luz).25  Mas o dogma encontrou em Jerônimo (345-420 d.C.) um ardoroso advogado. Ele passou a defender a perpétua virgindade de Maria com tal erudição e poder que logo este conceito não poderia ser mais desafiado.26  Os defensores do dogma afirmam que “nascido da Virgem Maria”, declaração usada no Credo Apostólico, indicava doravante que Maria não apenas era virgem quando concebeu, mas que permaneceu virgem após o nascimento de Jesus.  Ensina-se que suas palavras endereçadas ao anjo Gabriel –  “Como será isto, pois não tenho relação com homem algum?” (Lc 1:34) – eram a expressão de um voto de perpétua virgindade.  A dificuldade em explicar este voto acha-se no fato de que Maria desposou José, conforme os Evangelhos, com todos os privilégios de conjunção carnal que tinham direito os casais judeus.

3. O dogma da imaculada concepção

Agostinho foi o primeiro notável teólogo a declarar que Maria viveu livre da prática do pecado.  Mais tarde surgiu a discussão sobre se ela teria sido também livre do pecado original, como Eva em sua inocência.  Tomás de Aquino (c. 1225-1274 d.C.) argumentava veementemente contra a afirmação de que a popular “Nossa Senhora” houvesse sido concebida sem a mancha do pecado original, porém admitia que entre a concepção e o nascimento de Cristo a contaminação fora completamente removida por milagre divino para dar ocasião ao nascimento do Ente Santo.

Durante o século 12 d.C. as influências começaram a dar suporte a mariolatria, dentre as quais podem ser identificados o escolasticismo, as cruzadas, o feudalismo e o conceito espiritual de amor. Anselmo de Cantuária (1033-1109), conhecido como o pai do escolasticismo, exerceu grande influência em benefício do culto a Maria, insistindo que ela partilhava na redenção. Eadmer (c.1060-1124), um monge e historiador inglês, discípulo de Anselmo, produziu a primeira detalhada exposição da doutrina da imaculada concepção de Maria. Ele advogava a tese da imaculada concepção passiva de Maria, ou seja, sua concepção teria sido isenta do pecado original, isto é sem a sua participação como ser moral livre. Ele ligou a liberação de Maria do pecado original não apenas com sua dignidade como a mãe do Redentor, mas também com a exaltada posição de regente e imperatriz do universo.27 Dentre os que discordavam da tese defendida por Eadmer, Bernard de Clairvaux destacou-se ao advertir aos católicos de Lyon, na França, em 1140 d.C., que a doutrina não passava de um erro, visto que Maria foi santificada apenas depois de sua concepção no útero de Ana. Clairvaux influenciou grandes teólogos, como Petrus Lombardus, Alexandre Hales e Tomás de Aquino, os quais rejeitaram a tese da imaculada concepção. O ponto em questão para esses lumens da teologia católica era a dificuldade de isentar Maria do pecado original em comparação com a consequente necessidade que toda a humanidade tem de redenção.

O crédito da solução do impasse teológico tem sido atribuído ao teólogo franciscano William de Ware, posição que foi aperfeiçoada pelo seu brilhante aluno John Duns Scotus (1308). Scotus ensinou que Maria foi redimida pelo Seu Filho antes de seu próprio nascimento (dela), e, portanto, não esteve sob o efeito do pecado original, tendo sido preservada deste pelo mais perfeito tipo de redenção. Em 1476, motivado pelos ensinos do franciscano Scotus, o Papa Sixto IV (1471-1484), aprovou a festa da “imaculada concepção”, defendida e amplamente difundida pelos padres da Ordem de São Francisco.

No dia 8 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX, através da Bula “Ineffabilis”, promulgou esta última posição como dogma.28 A proclamação foi assim redigida: A beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha do pecado original.29

Na verdade, Pio IX, por meio da Bula “Ineffabilis”, aprovava a interpretação messiânica-mariana que busca base na distorcida interpretação de Gênesis 3:15, Lucas 1:28 e 1:41. Os construtores dessa interpretação teológica veem Maria como “a semente” da primeira mulher (Eva) em luta contra a semente da serpente. Nesse caso, como afirmam, “a vitória de Maria sobre Satanás não poderia ser completa e perfeita, se por algum momento ela tivesse estado sob seu domínio”. Tal argumento abre espaço para deduzir que Maria, em consequência de sua íntima associação com Cristo, “com Ele e por Ele manteve uma eterna inimizade pela venenosa serpente, triunfou do mais admirável modo sobre ela [a serpente], esmagando-lhe a cabeça com seu pé imaculado [de Maria]”. A Bula dogmatizou essa interpretação sem levar em consideração o real significado da passagem bíblica como um anúncio do protoevangelho destinado a antecipar aos nossos primeiros pais e a seus descendentes de todas as eras, a vitória de Deus sobre Satanás por intermédio do Messias, o Único Ser em condições de vencer o grande conflito.30 Em Lucas 1:28, os mariólatras forçam as palavras do anjo Gabriel dirigidas a Maria – “Ave Cheia de Graça” – como se graça fosse a declaração de uma qualidade intrínseca que caracterizava a Virgem de Nazaré em sua perfeição ímpar. Tratando-se de Lucas 1:41, os defensores da interpretação messiânica-mariana afirmam que a bênção de Deus, declarada na saudação inspirada de Isabel à sua bendita prima, é um paralelo sugestivo da equiparação de Maria ao próprio Filho, pois ambos teriam sido, assim, isentos de todo pecado.31
4. O dogma da assunção corporal

As mais primitivas versões desta lenda vêm do final do quarto século de nossa era e retratam Maria sendo transportada, em corpo e alma, para estar no céu com Jesus.  A lenda não tem evidência histórica e é estranha às Escrituras Sagradas, bem como contrária a todos os escritos dos três primeiros séculos.  A “festa da assunção” tem sido comemorada desde há muito tempo no dia 15 de agosto, dentro do calendário cristão, mas somente foi proclamada como dogma do catolicismo romano pelo Papa Pio XII, em 1950, nos seguintes termos: “Finalmente, a Imaculada Virgem, preservada imune de toda mancha da culpa original, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celeste. E para que mais plenamente estivesse conforme a seu Filho, Senhor dos senhores e vencedor do pecado e da morte, foi exaltada pelo Senhor como Rainha do universo.”32

Alexander Hislop, em sua obra The Two Babylons, publicada em 1917, rastreia o significado do título de “Rainha do Universo” aplicado a Maria pelo papa Pio XII, em comparação com a mesma designação à “Rainha dos Céus”, adorada pelos babilônios. Este culto, mais copiado pelos habitantes de Judá, é denunciado em Jeremias 7:18 como uma das causas da decadência moral do povo de Deus e sua consequente queda diante dos Babilônios. No caso, há estreita semelhança entre o pensamento babilônio e o católico. Para os babilônios, Semírames, mãe de Ninrode, divinizado após sua morte, torna-se a Rainha dos Céus, retendo o poder e as riquezas do filho. “No longo prazo”, porém, “a adoração à mãe praticamente ofuscou a adoração ao filho.”33

Embora o Concílio Vaticano II houvesse se posicionado com muita cautela em relação ao culto à “virgem de Nazaré”, na tentativa de motivar e apressar o diálogo para a unidade dos cristãos, a figura de Maria assumiu o papel de ícone escatológico da Igreja sob o primado do Papa João Paulo II. A mais recente edição do catecismo romano assim expressa essa posição:

Depois de termos falado da Igreja, de sua origem, de sua missão e de seu destino, a melhor maneira de concluir é voltar a olhar para Maria, a fim de contemplar nela (Maria) o que é a Igreja em seu mistério, em sua ‘peregrinação da fé’, e o que ela (Igreja) será na pátria ao termo final de sua caminhada, onde a espera na ‘glória da Santíssima e indivisível Trindade’, na ‘comunhão de todos os santos’, aquela que a Igreja venera como a Mãe de seu Senhor e como sua própria Mãe.34

Em sua luta para dirigir-se ao mundo contemporâneo, marcado pelo individualismo e pluralismo, João Paulo II fez de cada viagem, encontro e discurso um esforço para restaurar o culto da Virgem. Como exemplo motivador do mundo católico, o falecido pontífice visitou os grandes centros de adoração a Maria, tais como Guadalupe no México, o santuário da Black Madonna, na Polônia, Knock, na Irlanda, entre outros. A estratégia seria fortalecer a família, a castidade, o papel da mulher na igreja e, em contrapartida, reforçar o domínio masculino. Esta ideia é explicada pela historiadora Claudete Araújo, ao afirmar: na medida que Nossa Senhora é a representante da mulher que se submete a Deus… Maria é encarada como divina, e o feminino divino está abaixo do masculino divino… É o Deus masculino que concede poder a essa mulher-deusa. Isso é representativo da hierarquia eclesiástica, bem como de uma certa ‘ordem natural’ das coisas na sociedade”.35

Escolhendo a verdade

Qualquer estudante consciencioso das Escrituras Sagradas terá de admitir que tanto o Antigo como o Novo Testamento rejeitam a idéia de que haja um outro mediador entre Deus e os homens que não seja Jesus Cristo (1Tm 2:5).  Até os santos e imaculados anjos recusaram assumir esta posição ao rejeitarem a adoração de homens (Ap 19:9-10). Evidências bíblicas e históricas apontam para o fato de que Maria nunca aceitou este papel, o qual também foi explicitamente reprovado por Cristo.  Por outro lado, Jesus não necessita, como querem os defensores do culto mariano, de intermediários entre Ele e os homens, pois o próprio Deus Pai O constituiu nosso único intercessor.  Cristo “pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7:26).  Conhecendo Sua natureza divina igual à do Pai e à do Espírito Santo, Jesus nunca rejeitou a adoração dos seres humanos (Mt 2:11; Mc 5:32; Jo 9:37; 20:28).

Como Paulo, Maria sabia perfeitamente que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3:23). Ela entendeu que apesar da “humildade de sua serva” (Lc 1:48), Deus a escolhera para por meio dela operar a salvação da humanidade com o advento do Redentor. Para os filósofos gregos era impossível Deus entrar em contato com a humanidade pecadora e continuar sendo Deus. Mas o anjo assegurou a Maria que até esta e todas as outras impossibilidades diante da lógica humana seriam vencidas, “porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas” (Lc 1:38). Na mentalidade da Grécia, somente é possível aquilo que pode ser compreendido e explicado pela mente humana. Mas o Senhor, assim como seus planos, embora esteja ao alcance da lógica humana, transcende em muito todo o conhecimento de nossa mente. Por isso, podemos, baseados na Bíblia, afirmar Maria semelhante a nós pecadores, mas eleita por Deus para ser a mãe do exaltado Salvador. Mistério? Sim, mas que o Senhor nos revelará na eternidade. O perigo de idolatrar pessoas, ainda que santos pela graça divina, reside em dois pontos, sendo o primeiro o risco de contrariarmos a Palavra de Deus que estabelece nos dois primeiros mandamentos do Decálogo a adoração como devida unicamente a Deus. Em segundo lugar, vem o risco de removermos de Jesus Cristo a glória da salvação, transferindo-a parcial ou totalmente a seres humanos pecadores. Em nossos dias, há notícia de que não somente os católicos cometem esse erro fatal, mas até evangélicos se sentem atraídos pela nova moda de cultuar os santos, revitalizada pela cruzada mariana de João Paulo II, o pontífice que canonizou 482 santos durante o seu primado. Ivan Padilla e Frederico Mengozzi dão notícia de que “determinados setores do protestantismo revalorizam a imagem de Nossa Senhora; seguidores de outros credos [a umbanda, por exemplo] também cultuam os mártires da igreja”. A antropóloga Renata Menezes reconhece o fenômeno dizendo: “Os santos estão na moda, viraram fashion.”36

Em conclusão, podemos declarar que não há base bíblica para o culto a Maria. Se tal prática surgiu entre os cristãos, a razão principal deve ser encontrada primeiramente no racionalismo grego que afetou negativamente a interpretação da Palavra de Deus e, em segundo lugar, nas declarações dogmáticas dos papas, em sua arrogância de infalibilidade presumida ao se pronunciarem sobre os assuntos da fé cristã. Contudo, pode-se ainda perceber que, apesar de tanto conhecimento advindo da difusão e estudo das Sagradas Escrituras, o culto a Maria continua a sobreviver no mundo católico em virtude do apego e defesa dos dogmas sustentadores desse erro doutrinário e blasfema prática litúrgica defendida e amplamente incentivada pelo Papa João Paulo II.37O risco agora ameaça a salvação de todos (sejam cristãos católicos ou não) que vivem, por força de variadas circunstâncias no ambiente de idolatria.

Referências

1 Leneide Duarte, “A mulher na Igreja, de Eva à Virgem Maria”, O Globo, 28 de agosto de 1998, 7.

2 Kenneth L. Woodward, “Hail Mary”, Newsweek, 25 de agosto de 1997, 41. ↑

3 Ibid.

4 Ibid. ↑

5 John D. Davis,  Dicionário da Bíblia, 2ª ed. (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960), 379. A tradição identifica os pais de Maria com o nome de Joaquim e Ana. Ver “Concepção da Santa Mãe de Deus, por Sant’Ana, a Avó do Senhor”, disponível no site: www.eclesia.com.br/sinaxe/concepcao_sant_ana.htm ↑

6 Rev. Cáio Fábio D’ Araújo Filho, “Maria, Maria! Uma espada fere o teu coração”, Vinde, outubro de 1997, 58. ↑

7 Camila Artoni e Pablo Nogueira, “A face feminina de Deus”, Galileu, dezembro de 2003, 20. ↑

8 Ellen G. White, Orientação da Criança (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1962), 19. ↑

9 Idem, Desejado de Todas as Nações, 23ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003),  70. ↑

10 Augustin George, “Maria”, em Enciclopedia de la Bíblia, (Barcelona: Ediciones Garriga, 1963), 4:1134.

11 D. G. Stewart, “Mary, Mother of Jesus”, em The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1975), 4: 111. ↑

12 Raymond E. Brown, Karl P. Donfried, Joseph A. Fitzmeyer e John Reumann, eds. Mary in the New Testament (Philadelphia, PA: Fortress Press, 1978), p. 257.  Esta é uma obra publicada com a colaboração de eruditos protestantes e católicos, tendo em vista o diálogo ecumênico.

13 Thomas Bokenkotter, Essential Catholicism: Dynamics of Faith and Belief (Nova York: Doublebay, 1986),  127.

14 Alberto R. Timm, “Veneração de Maria: Como surgiu o dogma católico da veneração de Maria?” Sinais dos Tempos, setembro-outubro de 2003, 30. ↑

15 Ibid. ↑

16 Rosalino da Costa Lima, O Culto da Virgem Maria (Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1954), 30. ↑

17 H. Grifftith, “Nestório, Nestorianismo”, em Walter A. Elwell, Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo: Vida Nova, 1990), 3:18. ↑

18 Ibid. ↑

19 Stewart, 111. ↑

20 Lima, 30. ↑

21 Camila Artoni e Paulo Nogueira, “A face feminina de Deus: o Culto a Maria muda o perfil da espiritualidade cristã e reforça o misticismo”, Galileu, dezembro de 2003, 20. ↑

22 Catecismo da Igreja Católica, ed. rev. (Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998), 140. ↑

23 Ibid, 141. ↑

24 www.mercaba.org, “Segundo Concílio de Constantinopla”, ano 553, canon 2, (grifo acrescentado).

25 Brown, ed. Mary in the New Testament, 271. ↑

26 Bokenkotter, 127. ↑

27 Ibid, 128. ↑

28 Stewart, 111.

29 Catecismo da Igreja Católica, 139. ↑

30 Atos 4:12; Apocalipse 12:7-12. ↑

31 Gercione Lima, “A imaculada conceição da Virgem Maria”, artigo baseado no livro do Dr. Ludwig Ott, Fundamentos do Dogma Católico, disponível no site www.milicia.org.br/index.asp?=imac/dogma2.asp ↑

32 Catecismo da Igreja Católica, 273. ↑

33 David Bay, “Adoração à Virgem Maria e às Deusas Pagãs”, artigo sem autor, disponível no site: http://www.espada.eti.br/ce1008.asp ↑

34 Catecismo da Igreja Católica, 275. ↑

35 Camila Artoni e Paulo Nogueira, “A face feminina de Deus”, Galileu, 26. ↑

36 Ivan Padilla e Frederico Mengozzi, “A força dos santos”, Época, 28 de março de 2005, 61-67.

37 Winthrop S. Hudson, Religion  in America, 4ª edição (Nova York: MacMillan Publishing Company, 1988), 397.

Fonte: Revista Parousia, 1° Semestre de 2005, UNASPRESS

TRINDADE: UM DOGMA DE CONSTANTINO?



Rodrigo P. Silva, doutor em Teologia
Professor de Novo Testamento no Salt, Unasp, Campus Engenheiro Coelho, SP

Resumo: Grupos antitrinitarianos dissidentes do adventismo têm alegado que a doutrina da Trindade foi formulada no Concílio de Nicéia (325 d.C.), sob a influência do imperador romano Constantino. O presente artigo demonstra a existência de várias alusões à Trindade já nos escritos dos Pais da Igreja pré-nicenos. O autor analisa o significado histórico daquele evento e seus antecedentes teológicos, bem como o real papel de Constantino no processo.

Introdução

Entre os vários ataques produzidos por movimentos antitrinitarianos está o argumento histórico de que a Trindade é fruto do Concílio de Nicéia e constitui, portanto, um dogma de Constantino. Tal alegação pode ser encontrada tanto em sites da Internet quanto nos materiais publicados por grupos dissidentes do adventismo.

Em matéria veiculada pelo site www.adventistas.com, Ennis Meier declarou que “o Concílio de Nicéia deu origem à crença em três deuses. A crença na trindade de pessoas Divinas não teve origem na Bíblia, mas no Concílio ou Sínodo de Nicéia, o primeiro concílio ecumênico da história, no qual participaram 318 bispos, no ano 325 da era cristã”.1.

Suas considerações acerca do encontro chegam ao ponto de sustentar que “a formulação do dogma contra Ário marcou oficialmente o surgimento da Besta do Apocalipse”.2 Tal afirmação destoa fortemente de todas as interpretações do adventismo histórico,3 inclusive de Ellen White,4 que viam nesta besta uma alusão não a Constantino, mas ao papado, especialmente a partir do quarto século.

Embora com Constantino a Igreja enfrente um profundo processo de apostasia, é importante lembrar que as nuances proféticas de Apocalipse 13 aludem a um período posterior que se inicia com a supremacia papal e o início dos 1.260 anos em 538 d.C. Constantino não foi um papa. Mesmo que tenha agido como líder da Igreja nalgum momento, nunca arvorou para si o título de Pontifex Maximus do cristianismo.  Ademais, o bispo de Roma não possuía no quarto século o poder político-absolutista que faria do papado a maior autoridade no mundo ocidental. Logo, seria estranho vincular Constantino à imagem da Besta de Apocalipse 13.5

Munido da referência a um site que promove o ateísmo, outro escritor que se denomina “irmão X” também se valeu da contundente afirmação de que “com Constantino começa a criação da Trindade”.6 Ele ainda acrescenta que o voto dos bispos a favor da posição trinitariana se deu por pressão do imperador, que precisava do respaldo conciliar. Ora, o estranho é que Constantino não se valia de “votos” para fazer cumprir seus desígnios. Apenas expedia um decreto (como o fez no edito de Milão e no decreto dominical) e todos se sujeitavam. Por que, então, no caso da Trindade, dependeria do apoio episcopal da Igreja? Bastava-lhe um anúncio imperial e o dogma estaria oficializado. Esta questão não parece ter sido avaliada por nenhum dos artigos até agora apresentados.

Seguindo no mesmo viés de Meier e do “irmão X”, Ricardo Nicotra também advoga que este período de “paganização” [sic] do cristianismo foi o berço da trindade, e ainda acentua que é “importante lembrar que o Concílio de Nicéia não estabeleceu apenas os fundamentos para a doutrina da Trindade. Outras decisões foram tomadas pelos bispos da igreja católica em 325.”7 Estas decisões, conforme exemplifica o autor, envolviam a transferência do dia de descanso semanal do sábado para o domingo.

Embora este último autor, citando uma fonte da Internet (Wikipedia), cometa um erro de natureza histórica ao vincular o domingo a Nicéia – pois é sabido que o decreto dominical de Constantino data de quatro anos antes do Concílio (321 d.C.)8 – sua conclusão deve ser analisada para ser bem compreendida. Para ele, uma vez que Constantino convocou a reunião, conclui-se que o mesmo homem que promulgou a primeira lei dominical foi o “pai do dogma da Trindade”. Isto, é claro, deduzindo como certa a idéia de que tal doutrina teria seu início em Nicéia. Se for assim, a crença em um Deus Triúno seria tão herética quanto a guarda do domingo, pois viriam da mesma fonte apóstata.

O objetivo, portanto, deste artigo é avaliar a procedência histórica de tal afirmação. Ou seja, seria a Trindade um dogma de Constantino? Suas origens se devem ao Concílio de Nicéia?

Para responder a estas perguntas, é necessário que recorramos aos escritos dos primeiros pensadores cristãos que viveram entre o segundo e o terceiro século, isto é, imediatamente depois do período apostólico e antes do Concílio. A lógica é simples: se o argumento antitrinitariano estiver certo, ou seja, se a Trindade é mesmo uma doutrina constantiniana, não devemos encontrar neste período inicial nenhuma defesa à ideia de um Deus Triúno. Pelo contrário, o ensinamento da época deverá ser bem diferente, afirmando que Cristo é apenas um segundo ser existente depois do Pai, e o Espírito Santo uma emanação impessoal de ambos.

Em seguida a este excurso pelos Pais da Igreja, apresentaremos brevemente uma análise dos elementos que motivaram o Sínodo Niceno. É importante verificar qual a real atuação de Constantino em todo o processo. Ademais, um balanço desapaixonado do evento revelará que consequências, de fato, Nicéia trouxe para a Igreja, pois, pelo que se percebe nalguns autores, há a tendência de se atribuir ao encontro elementos de apostasia que não fizeram parte de sua pauta.9

Não se trata, portanto, de um artigo bíblico-exegético, mas de uma pesquisa de cunho histórico. Logo, não se deve estranhar a ausência de textos bíblicos neste estudo. As bases bíblicas da Trindade são apresentadas noutros artigos e se mostram excelentes. A discordância de alguns não autoriza concluir que tais bases não existam. Afinal, muitos também negam a validade do sábado no Novo Testamento, embora os adventistas há mais de um século venham evidenciando a solidez bíblica deste ensinamento.

Pais da Igreja

Em relação ao recurso que se faz aos Pais da Igreja que viveram antes de Nicéia,10 percebe-se que existe uma aproximação por demais piedosa por parte de autores católicos e outra mais cautelosa por parte de autores protestantes. É que o catolicismo sempre aceitou a tradição pós-bíblica como legítima fonte de doutrinas,11 o que eleva os Pais da Igreja à categoria de “ autores inspirados”, cuja função norteadora era a mesma atribuída aos escritores bíblicos.12 Já o protestantismo com seu ideal de sola scriptura preferiu ver nos escritos dos Pais apenas uma loca probantia da teologia sistemática, ou seja, estudá-los como testemunhas históricas do comportamento progressivo de uma doutrina através dos tempos e não como fonte autoritativa de uma crença.13

Com estes elementos em mente, é importante desdobrar alguns esclarecimentos em relação às citações patrísticas que, a seguir, serão feitas. Uma abordagem adventista destes escritores compreenderá que:

1) Os Pais da Igreja testemunham o modo como o cristianismo primitivo, antes de sofrer qualquer influência do catolicismo medieval, entendia certas passagens das Escrituras. Assim, podem oferecer uma visão mais desanuviada das doutrinas apostólicas, pois alguns deles, como Clemente de Roma e Policarpo, conheceram pessoalmente os apóstolos e receberam aprovação destes como líderes da Igreja.

2) Embora não se possa dizer que houvesse uma perfeita “unanimidade de pensamento” neste período, é possível afirmar que eles já tinham bem nítida a diferença entre ensino apostólico (ortodoxia)14 e os movimentos heréticos, especialmente aqueles oriundos de Marcion e do gnosticismo.15 Elementos básicos da fé como a filiação divina de Cristo, sua encarnação, o juízo final e outros já estavam firmemente estabelecidos desde os tempos antigos.

3) Devido ao caráter historicamente inicial de seus tratados, é importante que o leitor não busque em seus argumentos a nomenclatura teológica própria dos tempos pós-nicenos. Termos que mais tarde passaram a ser técnicos na teologia não possuíam ainda aquele tratamento unânime e cuidadoso que se exigirá de um tratado teológico contemporâneo. Hypostasis, por exemplo, era um termo usado por alguns escritores para referir-se à pessoa, enquanto outros o empregavam como sinônimo de substância.16  O mesmo se dá com seus conceitos que por estarem numa sistematização inicial não abarcarão todos os detalhes de uma discussão que lhes é posterior.

4) A despeito de seu grande valor testemunhal, os Pais da Igreja não devem ser usados como fonte de doutrina. Na verdade nenhum deles reclamou para si inspiração divina ou se declarou profeta. A fonte básica e única da fé cristã era e continua sendo a Bíblia. Quaisquer escritos posteriores servirão apenas para facilitar a compreensão do que está no Santo Livro e não para produzir novas crenças.

5) O valor testemunhal destes escritores está representado profeticamente na carta apocalíptica à Igreja de Esmirna (Ap 2:8-11), pois foi neste período que eles viveram. Note que nenhuma repreensão é apresentada em relação aos cristãos daquele tempo. Pelo contrário, sua fé é elogiada com muito vigor, pois muitos deles tiveram que assinar seu testemunho com o próprio sangue de seu martírio.

6) É importante repetir que o proposto neste artigo não é endossar indiscriminadamente toda doutrina dos Pais da Igreja, mas verificar, pelo seu testemunho, se a Trindade era crida na Igreja pré-nicena ou se, como dizem alguns, seria fruto apenas do Concílio ocorrido no quarto século.

Trindade antes de Nicéia
Uso do termo “Trindade”

Uma verificação no index geral da Ante-Nicene Fathers e da Sources Chrétiennes17 que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais antigos (inclusive os anteriores a Nicéia) nos mostra que muito antes do Concílio, a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os cristãos. Aliás, o próprio termo latino “Trindade” foi usado em 212 d.C. por Tertuliano, 113 anos antes de Nicéia! Falando da Igreja de Deus, ele menciona o Espírito “no qual está a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo” (in quo est trinitas unius diuinitatis, Pater et Filius et Spiritus sanctus)18.

A tradução latina da obra de Orígenes também menciona o termo ao considerar que “o batismo de salvação não está completo a não ser [que seja exercido] pela autoridade da excelentíssima Trindade de todos eles, que é constituída do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim, temos ajuntado o nome do Espírito Santo ao Deus eterno e ao seu único Filho”.19  Tal comentário torna-se relevante se entendermos que, talvez já nesse tempo, houvesse alguma controvérsia quanto à fórmula batismal e a genuinidade de Mateus 28:19.

Teófilo, escrevendo quase meio século antes de Tertuliano e Orígenes, usa a expressão Triados, que certamente seria uma equivalência semântica de trinitas ou seu original em grego. Note a comparação poética que ele usa ao relacionar a Trindade ao primeiro capítulo de Gênesis: “os três dias que estão antes dos três luminares [da Criação] são tipos da Trindade (Triados) de Deus”.20

Levando-se em consideração que Teófilo fala de “tipos da Trindade”, é razoável supor que ele não esteja falando de algo novo ou criando um neologismo. A expressão textual supõe o uso de um termo já conhecido entre os leitores. Logo, não seria estranho imaginar que o mesmo vocábulo aparecesse em outros escritos do mesmo período que se encontram perdidos em nossos dias.

Assim, retrocede para cerca de um século e meio antes de Nicéia o uso técnico do termo Trindade, legitimamente reconhecido na literatura cristã. Mas talvez alguém pergunte: por que este termo não aparece na Bíblia? Para responder a esta questão é preciso compreender que, a partir do século segundo, o centro missiológico da Igreja transferiu-se em definitivo do ambiente judeu-palestino para o mundo greco-romano. O trabalho iniciado por Paulo entre os gentios vê-se finalmente estabilizado no ambiente gentílico e começa a gravitar em torno de questões que não haviam sido levantadas no ambiente judaico.

A Igreja viu-se, então, obrigada a expressar sua fé de um modo compreensível para aqueles que não vinham de uma cultura vétero-testamentária, mas tinham seu pensamento regido pelos conceitos da filosofia grega. Questões ontológicas antes não sistematizadas começaram a invadir os círculos cristãos e, deste modo, os escritores tiveram de cunhar termos helenísticos para tornar inteligível a fé do Novo Testamento. Contudo, tal exercício não significava de modo nenhum uma apostasia do ensino apostólico. O próprio João usou o conceito filosófico do logos para expressar com continuidades e diferenças a doutrina da encarnação numa linguagem compreensível aos efésios influenciados pela doutrina de Heráclito.

Conceitos patrísticos sobre a Trindade

Clemente de Roma, que viveu no fim do primeiro século, escreveu por volta do ano 96 uma carta de conforto aos cristãos de Corinto, que estavam sendo perseguidos por Domiciano (o mesmo imperador que deportou João para a ilha de Patmos). Ao falar da união da Igreja ele diz: “Não temos nós [todos] um único Deus e um único Cristo? E não há um único Espírito da Graça derramado sobre nós?”21 Embora este não seja um texto de “defesa” da Trindade, chama-nos a atenção sua “linguagem trinitariana” que subentende uma ideia triúna de Deus. Outros autores são ainda mais claros em sua exposição.

Inácio († 105 d.C.), que foi o segundo sucessor de Pedro como pastor em Antioquia,22 também ensinava a doutrina da Trindade. Mártir durante o reinado de Trajano, ele escreveu uma epístola aos cristãos da Trália, dizendo-lhes que, a despeito do sofrimento, continuassem “em íntima união com Jesus Cristo, o nosso Deus”23 – o que acentua a ideia da divindade de Cristo. Num outro manuscrito, onde uma versão mais longa é preservada, o mesmo autor adverte os irmãos contra aqueles que ensinavam doutrinas contrárias à fé dos apóstolos. Entre seus ensinos equivocados estaria a ideia de que “o Espírito Santo não existe” e que “o Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam a mesma pessoa”.24

Justino, cognominado “o Mártir”, foi outro que escreveu várias apologias em favor do Cristianismo e contra a supremacia da filosofia grega. Num de seus textos, concluído por volta de 160 d.C., ele diz: “Já que somos considerados ateus, nós admitimos nosso ateísmo em relação a estes [vários] tipos de deuses [do politeísmo]. Mas, no que diz respeito ao verdadeiro Deus, o Pai da justiça e temperança …, ao Filho, … e ao Espírito Profético, [saibam que] nós os adoramos e reverenciamos.”25

Atenágoras, também respondendo à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não aceitarem o politeísmo pagão, escreveu em 175 d.C.: “Ora, quem não ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai, de Deus o Filho e do Espírito Santo e que declaram serem um no poder, mas distintos na ordem?”26 Noutra passagem ele ainda diz:  “Os cristãos reconhecem a Deus e a seu Logos. Eles também reconhecem o tipo de unicidade que o Filho tem com o Pai e que tipo de comunhão o Pai tem com o Filho. Ademais, eles sabem o que é o Espírito e que a unidade é [formada] destes três: O Espírito, o Filho e o Pai”.27 “Nós reconhecemos um Deus, um Filho e um Espírito Santo, os quais são unidos na essência.”28

Ireneu de Lion é outro importante autor deste período. Convertido na adolescência, ele foi discípulo de Policarpo que, por sua vez, foi discípulo do apóstolo João. Sua principal obra, intitulada Contra heresias, dispõe de cinco volumes e foi escrita por volta de 177 d.C. Respondendo às idéias gnósticas de seu tempo, ele toma o cuidado de diferenciar, por exemplo, o “fôlego [espírito] de vida” dados às criaturas em geral, do “Espírito Santo”, que é Deus habitando com o crente.29

Explicando ainda que Deus é diferente dos homens, Ireneu fala da Palavra e da Sabedoria do Criador como sendo duas pessoas divinas unidas a uma terceira (o Pai) numa única divindade.30

Hipólito (c. 205 d.C.), autor do mais antigo comentário de Daniel de que dispomos, disse que “a Terra é movida por estes três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.31 Noutra passagem, após citar a fórmula batismal em nome do Pai, do Filho e do Espírito, ele demonstra que já no seu tempo havia os que negavam esta doutrina, pois diz: “qualquer um que omitir um destes três, falha em glorificar a Deus de um modo perfeito. Pois é por meio desta Trindade (Triados) que o Pai é glorificado.”32

Sendo o último teólogo de peso a escrever em grego e não em latim, Hipólito merece um destaque por ter sido, nas palavras de W. Walker, “um dos primeiros antipapas” da história.33 Ele foi veemente em sua oposição a Calixto, bispo de Roma, que já naqueles idos pretendia a centralização do poder. Calixto chegou a disciplinar Hipólito por sua teologia acerca do Logos divino, o que demonstra que seus conceitos trinitarianos provinham de sua consciência, e não de uma imposição arbitrária do bispo de Roma.

Cipriano ( † 250 d.C.), que também cita como válida a fórmula batismal mateana,34 explicando que “ele [o evangelista] sugere aqui a Trindade, na qual as nações foram batizadas”.35

Embora a crítica textual coloque como espúrio o texto de 1 João 5:7,36  é digno de nota que Cipriano parece fazer referência a esta interpolação quando diz: “O Senhor disse: ‘Eu e o Pai somos um’  e novamente está escrito acerca do pai do Filho e do Espírito Santo: ‘e estes três são um’”.37 É claro que tal citação, indireta, não é suficiente para qualificar como digna a interpolação da comma joanina. Não obstante, é possível assumir que esta interpolação ou parte dela já fosse conhecida pelos pais latinos bem antes de Nicéia.

O que aconteceu em Nicéia?
Antecedentes teológicos

Por volta de 325 d.C. a igreja estava dividida por uma polêmica teológica iniciada no Egito. Um grupo liderado por Ário e Eusébio de Nicomédia, ensinava que Cristo era um semi-deus “semelhante”, porém não totalmente igual, ao Pai. Outro, liderado por Alexandre, ex-bispo de Ário, e por Atanásio, via nisto uma aproximação muito perigosa com o gnosticismo divulgado no Egito. Eles lembravam que a confissão mais antiga dos cristãos dizia que Cristo está em pé de igualdade com Pai. Já um terceiro grupo liderado por Eusébio de Cesaréia (um adulador de Constantino, segundo Ellen White38), via com neutralidade a questão e preferia propor com urgência uma declaração que abarcasse os dois lados.

Para entender as bases do ensino ariano e da preocupação de Atanásio quanto a este tipo de abordagem, é importante compreender a sedução intelectual da filosofia grega sobre a teologia do quarto século. Ellen White comenta de modo muito apropriado que “mesmo antes do estabelecimento do papado, os ensinos filosóficos pagãos haviam recebido atenção e exercido influência na igreja”.39

O que era para ser apenas uma abordagem da fé para o mundo greco-romano tornou-se uma sobreposição do helenismo sobre a teologia cristã. Embevecidos pela cultura grega, Ário e seus discípulos não conseguiram escapar à sedução da filosofia gnóstica tão disseminada entre os alexandrinos. Para estes, o maior problema da existência humana estava no dualismo idealizado por Platão e aprofundado por correntes posteriores. Era um pressuposto inquestionável acreditar que o espírito (naturalmente bom) e a matéria (naturalmente má) jamais coexistiam em sintonia. Se assim o fosse, o primeiro seria contaminado pelo último.

Portanto, o desafio agora era adequar doutrinas judaico-cristãs a este universo de idéias que não admitia a matéria como criação direta de um Deus-Espírito, nem a encarnação como uma realidade tangível. Se Deus houvesse criado o mundo ou se encarnado de verdade, sua divindade estaria seriamente comprometida – pensavam os gnósticos.

Assim, modelos alternativos foram criados para acomodar a doutrina cristã a este padrão filosófico. Um destes pode ser visto nos manuscritos coptas (sahidico) encontrados por James Bruce, em 1769. Para resolver o problema da existência da matéria que não poderia ser atribuída a um Deus-Espírito, eles diziam que o Altíssimo criou um deus menor que exerceu o papel de artífice (demiurgo) para a criação do mundo. Assim, a matéria veio à existência sem que Deus se contaminasse criando-a diretamente com as mãos. Cristo era este artífice que hoje se faz presente no mundo através do espírito (pneuma) que é sua energia impessoal. O conhecimento disto (gnosis) é o que salva a humanidade.

Convocação conciliar

Enquanto o cristianismo apostólico era a democratização do mistério de Deus – conceito herdado do judaísmo – o gnosticismo era a sofisticação do mistério, pois o seu entendimento não advinha de uma revelação mas da compreensão racional dos iniciados que não tinham dificuldades intelectuais para explicá-lo. Para eles, o que fugia à compreensão racional não era doutrina de Deus e isso estava causando uma preocupante divisão no cristianismo do Egito e de Antioquia (cidade natal de Ário). Por isso, Alexandre e Atanásio escreveram cartas a Roma pedindo um encontro que pusesse termo à questão.

Eusébio e seus seguidores também queriam a todo custo pôr fim à disputa, não porque estivessem preocupados com a ortodoxia da doutrina, mas porque temiam que uma divisão, àquela altura dos acontecimentos, fizesse a Igreja perder os privilégios que Constantino estava promovendo.

O próprio imperador, ao contrário do que muitos pensam, não tinha interesse algum em “promulgar” uma doutrina trinitária para a Igreja. Já fizemos menção no início de que, se este fosse o seu intento, não precisaria convocar um Concílio para endossar o seu desejo. Bastava-lhe repetir o ato de quatro anos antes, quando promulgou o decreto dominical, e assinar um edito ordenando a todos que adorassem ao Deus-Triúno.

Ademais, Constantino nem possuía conhecimento suficiente para se posicionar diante da controvérsia que ocupava a teologia grega.40 Uma carta por ele enviada por meio do bispo Hósio de Córdova confirma seu desconhecimento doutrinário a este respeito. Ali ele afirma que o problema que os bispos estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era “uma questão sem proveito”.41

Foram os próprios bispos que o convenceram a convocar o Concílio para resolver a questão e o partido trinitariano de Alexandre era, sem dúvida, o mais fraco de todos. Chega a ser um milagre que o texto de Nicéia não tenha favorecido o arianismo porque estes, certamente, tinham mais recursos políticos que Atanásio e Alexandre. Tanto o é que, embora os arianos fossem derrotados no Concílio, os partidários de Eusébio de Nicomédia empreenderam uma verdadeira campanha, após Nicéia, para derrotar Atanásio e restaurar Ário ao poder.

O mais surpreendente é que, protegido pelo imperador, Ário começou, de fato, a reconquistar seu poder que perdera e a influenciar a política da igreja. Eusébio, por sua vez, convenceu Constantino a enviar Atanásio para o desterro e recolocar Ário em seu lugar como bispo de Alexandria – o que quase aconteceu, não fosse o falecimento de Ário na noite anterior à cerimônia de sua investidura, em 336 d.C. Assim, o plano era que o imperador convocasse um novo Concílio corrigindo Nicéia e desse ganho de causa aos arianos.

Sob tais circunstâncias, a fé trinitária parecia, se não oficialmente renegada, praticamente condenada, principalmente depois que Constantino declarou seu desejo de ser batizado por Eusébio de Nicomédia num ritual antitrinitariano. A chamada fé nicena só não chegou ao fim, porque Constantino acabou morrendo em 22 de maio de 337, poucos dias depois de ser batizado.

Dois últimos aspectos ainda precisam ser esclarecidos: a grande discussão do Concílio de Nicéia não era a Trindade em primeiro lugar, mas a natureza de Cristo em relação ao Pai. Foi somente no credo de Atanásio, produzido posteriormente, que o assunto “Trindade” apareceu de modo mais claro. Além disto, é importante notar que o credo niceno não diz nada quanto ao Espírito Santo ser ou não uma pessoa. A literatura antitrinitária se confunde na seqüência histórica apresentando como “Credo Ciceno” o que na verdade seria o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381, proclamado depois da morte de Constantino.42

A Confissão Nicena de 325 se apresenta da seguinte maneira:

Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus cristo, o Filho de Deus gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na Terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, e se encarnou e se fez homem e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir e no Espírito Santo.

Segue-se a esta confissão os juízos emitidos em relação a alguns ensinos heréticos:

E a quantos dizem: “Ele era quando não era” e “antes de nascer, Ele não era” ou que “foi feito do não existente”; bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência” ou “feito” ou “mutável” ou “alterável” a todos estes a igreja católica e apostólica anatematiza.43

Conclusão

Como se vê, a despeito das insatisfações de alguns, prevaleceu em Nicéia a idéia de formular um texto enxuto, sem muitas explicações e que agradasse ao máximo a todas as correntes. Se houve, portanto, uma atmosfera política por detrás do documento conciliar, esta foi a da neutralidade – desviar a questão para evitar mais divisões. Constantino, é bom lembrar, havia acabado de vencer Licínio na luta pelo poder e sua prioridade era manter o império unido. Um cisma no cristianismo não seria bem-vindo naquele contexto. Daí o tom neutro sobre um assunto que, em princípio, geraria muitas controvérsias.

No fim das reuniões, restou aos arianos o incômodo maior, pois, apesar das tentativas de neutralidade, o documento acabou ecoando uma antiga tradição apostólica que apresentava a Cristo como consubstancial ao Pai. E o mais curioso é que Eusébio e a maioria dos arianos assinaram o documento em concórdia com seu conteúdo. Apenas Ário e dois amigos se recusaram a fazê-lo.

O sentido exato destas assinaturas é difícil precisar. Contudo, vê-se como infundada a declaração de que Constantino seria o Pai da doutrina trinitária usada para atrair o politeísmo para a Igreja. Pelo contrário, vinha de Ário e Eusébio a tentativa de trazer uma doutrina politeísta para dentro do cristianismo, pois estes apresentavam a Cristo como um “segundo” deus, menor que o Pai, mas igualmente divino e que se assemelhava muito ao “demiurgo”, ou deus menor do gnosticismo alexandrino. Em Nicéia, em todo o caso, a Igreja pelo menos não tentou penetrar o mistério de Deus ou descrevê-lo como o fez Ário imbuído pela idéia de transcendência vinda da filosofia grega. Esta foi a verdadeira natureza da discussão que de modo nenhum pode ser tomada como a genitora de uma teologia trinitária.

Referências



1 Ennis Meier, “O Concílio de Nicéia, origem da crença em três deuses”. Disponível em <http://www.adventistas.com/artigos/html>. Acesso em 13 de janeiro de 2004. ↑

2 Ennis Meier, “História: como Constantino tornou-se o pai do dogma católico da Trindade”. Disponível em <http://www.adventistas.com/artigos/html>. Acesso em 13 de janeiro de 2004. Grifo acrescentado. ↑

3 Urias Smith, Daniel and Revelation – The Response of History to the Voice of Prophecy A Verse by Verse Study of These Important Books of the Bible (Mountain View, CA: Pacific Press, 1918), 558ss.; Stephen N. Haskell, The Story of the Seer of Patmos (Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1977), 228-230. Haskell ainda estabelece o fato de que a Besta papal de Apocalipse 13 é uma institução que deveria surgir após a divisão de Roma em dez reinos, o que aconteceu apenas em 476 d.C. ↑

4 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996), 52, 438 e 439. ↑

5 Sobre a importância da data de 538 d.C. para o entendimento adventista da profecia, ver A. Timm, “A Importância das datas de 508 e 538 d.C. para a supremacia papal”, in Parousia (2005:1), 7-18. ↑

6 Irmão X, “Cristianismo é ridicularizado pelos ateus por causa da crença na Trindade”. Disponível em <http://www.arquivoxiasd.com.br/ateu.htm>, acesso em 22 de setembro de 2005. ↑

7 Ricardo Nicotra, “Eu e o Pai Somos Um” (São Paulo: Ministério Bíblico Cristão, 2004), 89. ↑

8 O decreto dominical constantiniano foi promulgado em março de 321. Seu texto pode ser encontrado no Codex Justinianus, Corpus Júris Civilis Codicis  Líber 3, tit. 12, parágrafo 3. ↑

9 Além do já mencionado erro de Nicotra, que atribui ao Concílio a mudança do sábado para o domingo (vide nota 7), autores como Dan Brown (autor do best seler O Código Da Vinci) sugerem que foi o Concílio de Nicéia que determinou o Cânon escriturístico, de modo que a Bíblia que temos hoje seria composta de acordo com o decreto constantiniano e não conforme um real desígnio de Deus. ↑

10 O título “pais da Igreja” será aqui usado em seu sentido técnico, conforme a adoção dos estudos de patrística e não no sentido católico de guardiões absolutos da ortodoxia cristã. ↑

11 F. Ardusso, “Tradizione”, in: G. Barbaglio, S. Dianich, Nuovo Dizionario di Teologia (Roma: Paoline, 1979), 1772. ↑

12 Esta equiparação com a Bíblia não é sempre explícita, na literatura católica, mas é facilmente detectada nas entrelinhas do discurso. É que o catolicismo, especialmente aquele posterior ao Vaticano II, parece ter compreendido a impopularidade teológica de tal afirmação diante do mundo protestante.  A primeira redação da Constituição dogmática Dei Verbum, que mantinha ainda a concepção católica de duas fontes de revelação (Bíblia e Tradição) recebeu uma severa intervenção do bispo belga De Smedt que convenceu o comitê a reformular completamente o texto original. Ele declarou: “Segundo o nosso parecer, o esquema atual falha notadamente em seu caráter ecumênico. Ele não representa progresso para o encontro com não católicos, mas um empecilho; muito mais: é prejudicial.” Citado por João Batista Libânio, Teologia da Revelação a partir da Modernidade (São Paulo: Loyola, 1992), 386. Para uma discussão pré-conciliar sobre esta questão veja: Pierre Benoit, L’actualité dês pères de l’Eglise (Neuchâtel: Éditions Delachaux et Niestlé S.A., 1961), 10-15; F. Cayré, Patrologie et Histoire de la Theologie (Paris: Desclée & Cie, 1953), 3-7; J. Quasten, Iniciation aux peres de l’Eglise (Paris: Ed. Du Cerf, 1955), 4-8. ↑

13 Reynold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1967), 1: 29-37; J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (Londres: A&C Black, 1977), 21-37. ↑

14 Embora este termo seja tardio (século XV), seu conceito já está presente nos primeiros escritos apologéticos do cristianismo. Cf. David W. Bercot, [ed.], A Dictionary of Early Christian Beliefs (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 2003), xiii.

15 Walter Bauer foi o pioneiro a chamar a atenção para a falta de unidade doutrinária nos primeiros séculos do cristianismo (Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity, eds. Robert A. Kraft, Gehard Krodel [Philadelphia: Fortress Press, 1971]). Mas hoje reconhece-se que, embora seu insight esteja correto, houve um exagero em suas conclusões. Ele chega a afirmar que “os hereges eram maioria em relação aos ortodoxos” (p. 194). A tendência atual, conforme observa J. R. Flora – que fez uma tese sobre o trabalho de Bauer, é que, a despeito da diversidade, havia uma unidade de pensamento nalguns pontos centrais que permitia configurar o que constituía pensamento cristão ou ensino dissidente. Cf. Jerry Rees Flora, A Critical Analysis of Walter Bauer’s Theory of Early Christian Orthodoxy and Heresy, PhD Dissertation (Louisville: Southern Baptist Theological Seminary, 1972).

16 Compare, por exemplo, o uso do termo em Dionísio de Alexandria (Fragmentos extensos V, 15) e Dionísio de Roma (Contra os sabelianos 1). ↑

17 A. Roberts., e J. Donaldson, [eds] Ante-Nicene Fathers (New York: Charles Scribner’s Sons, 1913), esta coleção antiga traz uma tradução em inglês dos textos patrísticos.  H. Lubac, J. Danielou, et. alli, Sources Chrétiennes (Paris: les édition du Cerf, 1941), esta é a mais importante coleção de textos dos Pais da Igreja. Ela traz o texto original em grego, latim, copta etc. ladeado de uma tradução para o francês. Além disto apresenta as variantes que possam existir entre um e outro manuscrito. Salvo indicações em contrário, vamos seguir aqui a numeração da Ante Nicene Fathers. ↑

18 Tertuliano, Sobre a Modéstia, XXI. ↑

19 Orígenes, Dos Princípios,  I, 3,2. O original grego perdeu-se; o que nos resta são pequenas citações e uma tradução latina feita por Rufino. Assim, é possível que Orígenes tenha utilizado o termo TriadoV que veremos nos textos de Teófilo de Antioquia. ↑

20 Teófilo, A Autólico, XV ↑

21 Clemente, I Epístola aos Coríntios, XLVI. ↑

22 Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, III, 36, 5-11. ↑

23 Inácio, Epístola aos Tralianos, VII, (recensão curta). ↑

24 Idem, (recensão longa). Para uma revisão bibliográfica do debate acerca das recensões textuais de Inácio, com acentuada defesa da recensão longa, veja Ch. Monier, Où en est la question d’Ignace d’Antioche? Bilan d’un siècle de recherches 1870-1988, in Aufstieg und Niedergang der römischen Welt [Hildergard Temporini e W. Haase, organizadores] (Berlim e Nova Iorque: Walter de Gruyter & Co., 1993), II. 27.1, 359-484. ↑

25 Justino, I Apologia, VI. ↑

26 Atenágoras, Súplica pelos Cristãos, X. ↑

27 Idem, XI. ↑

28 Idem,  XXIII. ↑

29 Ireneu, Contra Heresias,  V, XI, 2 ↑

30 Idem, IV, XX, 2 e 3. ↑

31 Hipólito: Fragmentos de Comentários, 10 (ANF, vol. V, 174.) ↑

32 Hipólito, Contra Noeto, 14. ↑

33 W. Walker, História da Igreja Cristã (Rio de Janeiro: JUERP/ASTE, 1980), 105.

34 Cipriano, Epístolas, LXXII, 5. ↑

35 Idem. ↑

36 Bárbara Aland, et. alli., [eds], The Greek New Testament, Forth Revised Edition (Stutgart: Deutsche Bibelgesellschaft /United Bible Societies, 2001), 819.

37 Cipriano, Tratados, I, 6. ↑

38 E. G. White, Ibid., p. 580. ↑

39 Idem, p. 56. ↑

40 Bernard Lohse, A Fé Cristã Através dos Tempos (São Leopoldo, RS: Sinodal, 1981), 57. ↑

41 Uma reprodução da carta de Constantino pode ser encontrada em Eusébio de Cesaréia, Vida de Constantino, II, 64-72. ↑

42 Um exemplo está no livro de Ricardo Nicotra,  88. ↑

43 O texto original em grego com uma antiga versão latina encontra-se em Henrique Dezinger e Clemente Bannwart, Enchiridion Symbolorum – definitionum et declarationum de rebus fidei et morum Friburgo: Herder and Co., 1922, , p. 29 [credo 54]. ↑

Fonte: Revista Parousia, 2° Semestre de 2005, UNASPRESS