Teologia

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

LUTERO E A GRANDE REFORMA


Ellen G. White*

Preeminente entre os que foram chamados para dirigir a igreja das trevas do papado à luz de uma fé mais pura, acha-se Martinho Lutero. Zeloso, ardente e dedicado, não conhecendo outro temor senão o de Deus, e não reconhecendo outro fundamento para a fé religiosa além das Escrituras Sagradas, Lutero foi o homem para o seu tempo; por meio dele, Deus efetuou uma grande obra para a reforma da igreja e esclarecimento do mundo.

Enquanto, um dia, examinava os livros da biblioteca da universidade, Lutero descobriu uma Bíblia latina. Tinha ouvido porções dos evangelhos e epístolas, que se liam ao povo no culto público, e supunha que isso fosse a Escritura toda. Agora, pela primeira vez, olhava para o todo da Palavra de Deus. Com um misto de reverência e admiração, folheava as páginas sagradas; com o pulso acelerado e o coração palpitante, lia por si mesmo as palavras de vida, detendo-se aqui e acolá para exclamar: "Oh! quem dera Deus me desse tal livro!" Anjos celestiais estavam a seu lado, e raios de luz procedentes do trono de Deus traziam-lhe à compreensão os tesouros da verdade. Sempre temera ofender a Deus, mas agora a profunda convicção de seu estado pecaminoso apoderou-se dele como nunca antes. Um desejo ardente de se achar livre do pecado e encontrar paz com Deus, levou-o afinal a entrar para um mosteiro e dedicar-se à vida monástica.

Todo momento que podia poupar de seus deveres diários empregava-o no estudo, furtando-se ao sono e cedendo mesmo a contragosto o tempo empregado em suas escassas refeições. Acima de tudo se deleitava no estudo da Palavra de Deus. Achara uma Bíblia acorrentada à parede do convento, e a ela muitas vezes recorria.

Lutero foi ordenado sacerdote, sendo chamado do claustro para o cargo de professor da Universidade de Wittemberg. Ali se aplicou ao estudo das Escrituras nas línguas originais. Começou a fazer conferências sobre a Bíblia; e o livro dos Salmos, os Evangelhos e as Epístolas abriram-se à compreensão de multidões que se deleitavam em ouvi-lo. Era já poderoso nas Escrituras, e sobre ele repousava a graça de Deus. Sua eloquência cativava os ouvintes; a clareza e poder com que apresentava a verdade levavam-nos à convicção, e seu profundo fervor tocava os corações.

Um Líder em Reforma

Na providência de Deus, ele decidiu visitar Roma. Uma indulgência fora prometida pelo papa a todos quantos subissem de joelhos a conhecida escada de Pilatos. Lutero estava, certo dia, realizando esse ato, quando, subitamente, uma voz semelhante a trovão pareceu dizer-lhe: "O justo viverá da fé." Rom. 1:17. Ergueu-se sobre seus pés e, envergonhado e horrorizado, deixou rapidamente o cenário de sua loucura. Esse texto nunca perdeu a força sobre sua alma. Desde aquele tempo, viu mais claramente do que nunca antes a falácia de se confiar nas obras humanas para a salvação, e a necessidade de fé constante nos méritos de Cristo. Tinham-se-lhe aberto os olhos, e nunca mais se deveriam fechar aos enganos satânicos do papado. Quando ele deu as costas a Roma, também dela volveu o coração, e desde aquele tempo o afastamento se tornou cada vez maior, até romper todo contato com a igreja papal.

Depois de voltar de Roma, Lutero recebeu na Universidade de Wittenberg o grau de doutor em Teologia. Estava agora na liberdade de se dedicar, como nunca antes, às Escrituras que amava. Fizera solene voto de estudar cuidadosamente a Palavra de Deus e, todos os dias de sua vida, pregá-la com fidelidade, e não os dizeres e doutrinas dos papas. Não mais era o simples monge ou professor, mas o autorizado arauto da Bíblia. Fora chamado para pastor, a fim de alimentar o rebanho de Deus, que tinha fome e sede da verdade. Declarava firmemente que os cristãos não deveriam receber outras doutrinas senão as que se apoiam na autoridade das Sagradas Escrituras. Essas palavras feriam o próprio fundamento da supremacia papal. Continham o princípio vital da Reforma.

Entra Lutero, ousadamente, em sua obra como campeão da verdade. Sua voz era ouvida do púlpito, em advertência ardorosa e solene. Expôs ao povo o caráter ofensivo do pecado, ensinando-lhes ser impossível ao homem, por suas próprias obras, diminuir as culpas ou fugir ao castigo. Nada, a não ser o arrependimento para com Deus e a fé em Cristo, pode salvar o pecador. A graça de Cristo não pode ser comprada; é dom gratuito. Aconselhava o povo a não comprar indulgências, mas a olhar com fé para um Redentor crucificado. Relatou sua própria e penosa experiência ao procurar, sem êxito, pela humilhação e penitência conseguir salvação, e afirmou a seus ouvintes que foi olhando fora de si mesmo e crendo em Cristo que encontrara paz e alegria.

Os ensinos de Lutero atraíram a atenção dos espíritos pensantes de toda a Alemanha. De seus sermões e escritos procediam raios de luz que despertavam e iluminavam a milhares. Uma fé viva estava tomando o lugar do morto formalismo em que a igreja se mantivera durante tanto tempo. O povo estava diariamente perdendo a confiança nas superstições do catolicismo. As barreiras do preconceito iam cedendo. A Palavra de Deus, pela qual Lutero provava toda doutrina e qualquer reclamo, era semelhante a uma espada de dois gumes, abrindo caminho ao coração do povo. Por toda parte se despertava o desejo de progresso espiritual. Fazia séculos que não se via, tão generalizada, a fome e sede de justiça. Os olhos do povo, havia tanto voltados para ritos humanos e mediadores terrestres, volviam-se agora em arrependimento e fé para Cristo, e Este crucificado.

Os escritos e doutrinas do reformador estendiam-se a todas as nações da cristandade. A obra espalhou-se à Suíça e Holanda. Exemplares de seus escritos tiveram ingresso na França e Espanha. Na Inglaterra, seus ensinos eram recebidos como palavras de vida. À Bélgica e Itália também se estendeu a verdade. Milhares estavam a despertar do torpor mortal para a alegria e esperança de uma vida de fé.

Lutero Rompe com Roma

Roma estava empenhada na destruição de Lutero, mas Deus era a sua defesa. Suas doutrinas eram ouvidas em toda parte - nas cabanas e nos conventos, nos castelos de nobres, nas universidades e nos palácios dos reis; e homens nobres surgiam por toda parte para amparar-lhe os esforços.

Num apelo ao imperador e à nobreza da Alemanha, em favor da Reforma do cristianismo, Lutero escreveu relativamente ao papa: "É horrível contemplar o homem que se intitula vigário de Cristo, a ostentar uma magnificência que nenhum imperador pode igualar. É isso ser semelhante ao pobre Jesus, ou o humilde Pedro? Ele é, dizem, o senhor do mundo! Mas Cristo, cujo vigário ele se jacta de ser, disse: "Meu reino não é deste mundo." Podem os domínios de um vigário estender-se além dos de seu superior?"

Assim escreveu ele acerca das universidades: "Receio muito que as universidades se revelem grandes portas do inferno, a menos que diligentemente trabalhem para explicar as Santas Escrituras, e gravá-las no coração dos jovens. Não aconselho ninguém a pôr seu filho onde as Escrituras não reinem supremas. Toda instituição em que os homens não se achem incessantemente ocupados com a Palavra de Deus, tem de tornar-se corrupta."

Este apelo circulou rapidamente por toda a Alemanha e exerceu poderosa influência sobre o povo. A nação toda foi convocada a reunir-se ao redor do estandarte da Reforma. Os oponentes de Lutero, ardentes no desejo de vingança, insistiam em que o papa tomasse medidas decisivas contra ele. Decretou-se que suas doutrinas fossem imediatamente condenadas. Sessenta dias foram concedidos ao reformador e a seus adeptos, findos os quais, se não renunciassem, deveriam todos ser excomungados.

Quando a bula papal chegou a Lutero, disse ele: "Desprezo-a e ataco-a como ímpia, falsa. ... É o próprio Cristo que nela é condenado. ... Regozijo-me por ter de suportar tais males pela melhor das causas. Sinto já maior liberdade em meu coração; pois finalmente sei que o papa é o anticristo, e que o seu trono é o do próprio Satanás."

Todavia, a palavra do pontífice ainda tinha poder. Prisão, tortura e espada eram armas potentes para forçar à obediência. Tudo parecia indicar que a obra do reformador estava a ponto de terminar. Os fracos e supersticiosos tremiam perante o decreto do papa; e, conquanto houvesse simpatia geral por Lutero, muitos sentiam que a vida era por demais preciosa para que fosse arriscada na causa da Reforma.

Progressos da Reforma

Um novo imperador, Carlos V, subira ao trono da Alemanha, e os emissários de Roma se apressaram a apresentar suas congratulações e induzir o rei a empregar seu poder contra a Reforma. De outro lado, o eleitor da Saxônia, a quem Carlos em grande parte devia a coroa, rogava-lhe não dar passo algum contra Lutero antes de lhe conceder oportunidade de se fazer ouvir.

A Atenção de todos os partidos dirigia-se agora para a assembleia dos Estados alemães que se reuniu em Worms logo depois da ascensão de Carlos ao poder imperial. Havia importantes questões e interesses políticos a serem considerados por esse concílio nacional; mas estes pareciam de pouco interesse, quando contrastados com a causa do monge de Wittenberg.

Carlos, encarregara previamente o eleitor de levar consigo Lutero à Dieta, assegurando-lhe proteção e prometendo franco estudo das questões em contenda, com pessoa competente. Lutero estava ansioso por comparecer perante o imperador.

Os amigos de Lutero estavam aterrorizados, angustiados. Sabendo do preconceito e inimizade contra ele, temiam que mesmo seu salvo-conduto não fosse respeitado, e rogavam-lhe que não expusesse a vida ao perigo. Ele replicou: "Os sectários do papa não desejam minha ida a Worms, mas minha condenação e morte. Não importa. Não orem por mim, mas pela Palavra de Deus."

Perante o Concílio

Finalmente, Lutero se achou perante o concílio. O imperador ocupava o trono. Estava rodeado das mais ilustres personagens do império. Nunca homem algum comparecera à presença de uma assembléia mais imponente do que aquela diante da qual Martinho Lutero deveria responder por sua fé.

Aquela própria cena foi uma assinalada vitória para a verdade. Que um homem, a quem o papa condenara, fosse julgado por outro tribunal, era virtualmente uma recusa da suprema autoridade do pontífice. O reformador, colocado sob excomunhão e pelo papa excluído da sociedade humana, recebera garantia de proteção e foi ouvido pelos mais altos dignitários da nação. Roma condenara-o ao silêncio, mas agora ele estava prestes a falar perante milhares de todas as partes da cristandade. Calmo e paciente, todavia corajoso e nobre, surgiu como testemunha de Deus entre os grandes da Terra. Lutero respondeu em submisso e humilde tom, sem violência ou paixão. Sua conduta era tímida e respeitosa, embora manifestasse uma confiança e alegria que surpreendeu a assembleia.

Os que obstinadamente fechavam os olhos à luz e se decidiram a não convencer-se da verdade, ficaram enraivecidos com o poder das palavras de Lutero. Quando cessou de falar, o porta-voz da Dieta disse, irado: "Não respondeste à pergunta feita. ... Exige-se que dês resposta clara e precisa. ... Retratar-te-ás ou não?"

O reformador respondeu: "Visto que vossa sereníssima majestade e vossas nobres altezas exigem de mim resposta clara, simples e precisa, dar-vo-la-ei, é esta: Não posso submeter minha fé, quer ao papa, quer aos concílios, porque é claro como o dia que eles têm frequentemente errado e se contradito um ao outro. Portanto, a menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pelo mais claro raciocínio; a menos que seja persuadido por meio das passagens que citei; a menos que assim submetam minha consciência pela Palavra de Deus, não posso retratar-me e não me retratarei, pois é perigoso a um cristão falar contra a consciência. Aqui permaneço, não posso fazer outra coisa; queira Deus ajudar-me. Amém."

Assim se manteve este homem justo sobre o firme fundamento da Palavra de Deus. A luz do Céu iluminava-lhe o semblante. Sua grandeza e pureza de caráter, sua paz e alegria de coração, eram manifestas a todos ao testificar ele contra o poder do erro e testemunhar a superioridade da fé que vence o mundo.

Ele permaneceu firme como uma rocha, enquanto as violentas ondas do poder terreno em vão arremetiam contra ele. A simples energia de suas palavras, seu porte intimorato, seus calmos e expressivos olhos, bem como a inalterável determinação expressa em cada palavra e ação, causaram uma profunda impressão sobre a assembleia. Era evidente que ele não seria induzido, por promessas ou ameaças, a render-se ao mando de Roma.

Cristo falara por intermédio do testemunho de Lutero, com um poder e grandeza que na ocasião causou espanto e admiração tanto a amigos como a adversários. O Espírito de Deus estivera presente naquele concílio, impressionando o coração dos principais do império. Vários dos príncipes reconheceram ousadamente a justiça da causa de Lutero. Muitos estavam convictos da verdade; mas em outros as impressões recebidas não foram duradouras. Houve outra classe que no momento não exprimiu suas convicções, mas que, tendo pesquisado as Escrituras por si mesmos, em ocasião posterior declarou-se com grande coragem pela Reforma.

O eleitor Frederico aguardara ansiosamente o comparecimento de Lutero perante a Dieta, e com profunda emoção ouviu seu discurso. Com alegria e orgulho testemunhou a coragem, firmeza e domínio próprio do doutor, e orgulhou-se de ser o seu protetor. Ele contrastava as facções em contenda, e via que a sabedoria dos papas, reis e prelados fora, pelo poder da verdade, reduzida a nada. O papado sofrera uma derrota que seria sentida entre todas as nações e em todos os tempos.

Houvesse o reformador cedido num único ponto, e Satanás e seus exércitos teriam ganho a vitória. Mas sua persistente firmeza foi o meio para a emancipação da igreja e o início de uma era nova e melhor. A influência desse único homem, que ousou pensar e agir por si mesmo em assuntos religiosos, deveria afetar a igreja e o mundo, não somente em seu próprio tempo, mas em todas as gerações futuras. Sua firmeza e fidelidade fortaleceriam, até ao final do tempo, a todos os que passassem por experiência semelhante. O poder e majestade de Deus se mantiveram acima do conselho dos homens, acima da potente força de Satanás.

Vi que Lutero era ardente e zeloso, destemido e ousado para reprovar o pecado e advogar a verdade. Não se preocupava com homens ímpios ou demônios; sabia que consigo tinha Alguém que era mais forte do que eles todos. Lutero possuía zelo, coragem e ousadia, e por vezes esteve em perigo de ir aos extremos. Mas Deus suscitou a Melâncton, que era exatamente o contrário no caráter, a fim de auxiliar Lutero a levar avante a obra da Reforma. Melâncton era tímido, medroso, cauteloso e possuía grande paciência. Era grandemente amado por Deus. Grande era o seu conhecimento das Escrituras e excelentes o seu juízo e sabedoria. Seu amor pela causa de Deus era igual ao de Lutero. Os corações destes homens o Senhor os ligara entre si; eram amigos inseparáveis. Lutero era um grande auxílio para Melâncton quando se achava amedrontado e vagaroso, e Melâncton, por sua vez, o era para Lutero, quando em perigo de agir com demasiada rapidez.

A cautela mui previdente de Melâncton muitas vezes desviou dificuldades que teriam sobrevindo à causa, se a obra estivesse entregue unicamente a Lutero; e muitas vezes a obra não teria sido levada avante se estivera entregue a Melâncton só. Foi-me mostrada a sabedoria de Deus em escolher esses dois homens para promover a obra da Reforma.

Inglaterra e Escócia Iluminadas

Enquanto Lutero abria ao povo da Alemanha uma Bíblia até então fechada, Tyndale era impelido pelo Espírito de Deus a fazer o mesmo pela Inglaterra. Ele era um diligente estudioso das Escrituras, e destemidamente pregou suas convicções da verdade, insistindo em que toda doutrina fosse provada pela Palavra de Deus. Seu zelo poderia, entretanto, suscitar a oposição dos papistas. Um ilustrado doutor católico, empenhado em controvérsia com ele, exclamou: "Ser-nos-ia melhor estar sem as leis de Deus, do que sem as do papa." Tyndale replicou: "Desafio o papa e todas as suas leis; e, se Deus poupar minha vida, dentro de poucos anos farei com que um rapaz que conduz o arado saiba mais das Escrituras do que vós."

O propósito que começara a acalentar, de dar ao povo as Escrituras do Novo Testamento em sua própria língua, agora se confirmava, e imediatamente se aplicou à obra. Toda a Inglaterra parecia cerrar-se para ele, e resolveu procurar abrigo na Alemanha. Ali começou a imprimir o Novo Testamento em inglês. Três mil exemplares do Novo Testamento foram logo concluídos, e seguiu-se outra edição no mesmo ano.

Finalmente, deu testemunho da fé, morrendo como mártir; contudo, as armas que preparara habilitaram outros soldados a batalhar por todos os séculos, mesmo até os nossos dias.

Na Escócia, o evangelho encontrou um campeão na pessoa de João Knox. Este fiel e verdadeiro reformador não temia a face do homem. Os fogos do martírio, luzindo em redor dele, apenas serviam para despertar seu zelo em maior intensidade. Com o machado do carrasco pendente ameaçadoramente sobre a cabeça, manteve-se em seu terreno, desfechando vigorosos golpes à direita e à esquerda, para demolir a idolatria. Assim, manteve seu propósito, orando e travando as batalhas do Senhor, até que a Escócia ficou livre.

Na Inglaterra, Latimer sustentava do púlpito que a Bíblia deveria ser lida na língua do povo. O Autor da Escritura Sagrada, dizia ele, "é o próprio Deus"; e esta Escritura participa do poder e da eternidade de seu Autor. "Não há rei, imperador, juiz, ou governador... que não tenha o dever de obedecer a... Sua santa Palavra." "Não tomemos quaisquer atalhos, mas dirija-nos a Palavra de Deus: não andemos segundo nossos antepassados nem busquemos saber o que fizeram, mas sim o que deveriam ter feito."

Barnes e Frith, fiéis amigos de Tyndale, levantaram-se em defesa da verdade. Seguiram-se os Ridleys e Cranmer. Estes dirigentes da Reforma inglesa eram homens de saber, e a maioria deles tinha sido muito estimada pelo zelo e piedade na comunhão romana. Sua oposição ao papado resultou de seu conhecimento dos erros da "Santa Sé". Familiarizados com os mistérios de Babilônia, maior poder imprimiram a seus testemunhos contra ela.

O grande princípio mantido por Tyndale, Frith, Latimer e os Ridleys, foi a divina autoridade e suficiência das Sagradas Escrituras. Rejeitaram a pretensa autoridade dos papas, concílios, padres e reis de governarem a consciência em matéria de fé religiosa. A Bíblia era sua norma, e para esta eles levavam todas as doutrinas e todos os reclamos. A fé em Deus e em Sua Palavra sustentava aqueles homens santos, ao renderem a vida no instrumento de tortura.

Deixando de Progredir

A reforma não terminou com Lutero, como muitos supõem. Ela haverá de prosseguir até a conclusão da história terrestre. Lutero tinha uma grande obra a fazer, em refletir a outros a luz que Deus permitiu brilhasse sobre ele; todavia, não recebeu toda a luz que devia ser dada ao mundo. Desde aquele tempo, nova luz tem continuamente resplandecido sobre as Escrituras, e novas verdades têm sido constantemente reveladas.

Lutero e seus colaboradores executaram um nobre trabalho para Deus; mas, tendo vindo eles da Igreja de Roma, e tendo eles próprios crido e defendido suas doutrinas, não seria de esperar que pudessem discernir todos os seus enganos. Seu trabalho foi quebrar os grilhões de Roma e dar a Bíblia ao mundo, embora houvesse importantes verdades que deixassem de descobrir, e graves erros, a que não renunciaram. A maioria deles continuou a observar o domingo e outras festas papais. Na verdade, eles não o consideravam como tendo autoridade divina, mas criam que devia ser observado como dia de culto, geralmente aceito. Havia alguns dentre eles, entretanto, que honravam o sábado do quarto mandamento. Entre os reformadores da igreja, um lugar honroso deve ser dado a todos aqueles que foram firmes em reivindicar uma verdade geralmente ignorada, mesmo pelos protestantes - aqueles que mantinham a validade do quarto mandamento e a obrigação do sábado bíblico. Quando a Reforma varreu as trevas que pairavam em toda a cristandade, os guardadores do sábado foram postos em foco em muitas terras.

Os que receberam as grandes bênçãos da Reforma não foram avante na trilha tão nobremente aberta por Lutero. Poucos homens fiéis levantaram-se, de tempos em tempos, para proclamar novas verdades e expor erros longamente acariciados, mas a maioria, como os judeus nos dias de Cristo, ou os papistas no tempo de Lutero, estava satisfeita em crer como creram seus pais e viver como eles viveram. Dessa maneira, novamente a religião degenerou em formalismo; e erros e superstições que teriam sido postos de lado, tivesse a igreja continuado a andar na luz da Palavra de Deus, foram retidos e acalentados. Assim, o espírito inspirado pela Reforma gradualmente morreu, até que houve quase tão grande necessidade de reforma nas igrejas protestantes, como na Igreja de Roma, no tempo de Lutero. Havia o mesmo estupor espiritual, o mesmo respeito pelas opiniões humanas, o mesmo espírito de mundanismo, e a mesma substituição dos ensinamentos da Palavra de Deus por teorias humanas. O orgulho e a extravagância eram nutridos à guisa de religião. As igrejas tornaram-se corrompidas, através de suas alianças com o mundo. Assim, se degradaram os grandes princípios, pelos quais Lutero e seus fiéis colaboradores tanto fizeram e sofreram.

Quando Satanás viu que falhara em esmagar a verdade pela perseguição, de novo recorreu ao mesmo plano de comprometimento que havia conduzido à grande apostasia e à formação da Igreja de Roma. Induziu os cristãos a fazerem alianças, agora, não mais com pagãos, mas com os que, por sua adoração ao deus deste mundo, provavam-se igualmente idólatras.

Satanás não podia mais retirar a Bíblia do povo; ela fora colocada ao alcance de todos. Porém, levou milhares a aceitarem falsas interpretações e teorias errôneas, sem examinarem as Escrituras, a fim de aprender a verdade por si mesmos. Ele havia corrompido as doutrinas da Bíblia, e as tradições que iam arruinar milhões de pessoas estavam aprofundando as raízes. A igreja estava encorajando e defendendo estas tradições, em vez de contender pela fé que uma vez foi entregue aos santos. E enquanto inteiramente inconscientes de sua condição e perigo, a igreja e o mundo aproximavam-se rapidamente do mais solene e momentoso período da história do mundo - o período da revelação do Filho do homem.

*Ellen G. White (1827-1915) é considerada a autora norte-americana mais amplamente traduzida. Suas obras foram publicadas em aproximadamente 150 línguas. Guiada pelo Espírito Santo, ela exaltou a Jesus e apontou para as Escrituras como a base de sua fé.

FONTE: Texto extraído do Livro História da Redenção, p. 340-355.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

UM DEFENSOR NO CÉU




Adriani Milli*

O dia 22 de outubro de 1844 entrou para a teologia adventista como a data em que Cristo inaugurou seu ministério de julgamento no Céu. Mas o que diz a evidência bíblica sobre o trabalho sacerdotal dele no santuário celestial? Entenda esse tema ainda debatido por adventistas e mal compreendido pelos cristãos em geral

Cristo não se cansa de agir em favor da nossa salvação. Essa é a ideia básica de seu sacerdócio no santuário celestial após sua ascensão. Infelizmente, muitos pensam que, na atividade divina para a salvação humana, em sua ascensão, Cristo tivesse sido substituído pelo Espírito Santo, que foi enviado à Terra. Segundo esse pensamento, Cristo já fez tudo o que deveria ter feito para nossa salvação ao morrer na cruz. Para usar a analogia de esportes coletivos, Cristo estaria agora aguardando no banco de reserva do Céu, torcendo para que o Espírito Santo faça sua parte e as pessoas respondam positivamente.

Contudo, embora a Bíblia indique que o Espírito é o substituto de Cristo na Terra (Jo 14–16), as Escrituras ensinam que Jesus continua trabalhando para nossa salvação após sua ascensão, e esse trabalho se define por seu sacerdócio celestial. Cristo não é um mero espectador celestial que já cumpriu seu papel salvífico.

O ensinamento bíblico sobre seu sacerdócio revela um trabalho ativo em três etapas: (1) inauguração, (2) mediação contínua e (3) julgamento escatológico. Cada uma dessas etapas corresponde claramente à obra sacerdotal tipificada no Antigo Testamento.

ETAPA 1: INAUGURAÇÃO

O livro de Hebreus interpreta a ascensão do Cristo ressuscitado ao Céu como sua entrada no santuário celestial na condição de sumo sacerdote (4:14; 6:19, 20; 9:12, 24). Essa entrada marca (1) a conclusão da oferta sacrifical de Cristo e (2) o início de sua mediação contínua. Veremos as implicações desses conceitos.

Ao pensarem sobre o conceito de sacrifício, muitos se concentram na vítima que morre sacrificalmente. Nesse caso, a imagem desse conceito é a de um animal sendo imolado ou a de Cristo sendo crucificado. Do ponto de vista bíblico, não há nada de errado com essa imagem, desde que ela não seja a única. Uma expressão que nos ajuda na conceitualização de sacrifício na Bíblia é a oferta sacrifical. Em geral, uma oferta é oferecida a alguém. Nesse caso, a ênfase não está na vítima que morre como sacrifício, mas na pessoa (Deus) para quem o sacrifício está sendo oferecido. Essa noção de oferta sacrifical nos ajuda a observar um dado interessante sobre sacrifícios e sacerdócio em Levítico.

Embora o trabalho do sacerdote israelita pudesse incluir o ato sacrifical de imolar um animal (cf. Lv 4:4; 16:11, 15), essa não era sua atividade distintiva na oferta de um sacrifício. De fato, os próprios israelitas imolavam os animais que eles levavam para ofertas individuais (cf. Lv 1:1-5, 10, 11; 3:1, 2, 6-8, 12, 13, 22-24, 27-29). A rigor, a atividade exclusiva do sacerdote era o rito que ocorria após a morte do animal. Nas ofertas primariamente definidas pelo uso do fogo (por exemplo, holocaustos e ofertas pacíficas), somente o sacerdote queimava o animal (cf. Lv 1:7-9, 12, 13, 17; 3:5, 11, 16), produzindo tipologicamente um movimento vertical em que a fumaça do sacrifício ascendia para o céu e chegava a Deus como “aroma agradável” (Lv 1:9, 13, 17; 3:5, 16). No caso das ofertas pelo pecado, que eram primariamente definidas pela manipulação de sangue, somente o sacerdote manipulava o sangue (cf. Lv 4:5-7, 16-18, 25, 30, 34), produzindo tipologicamente um movimento vertical em que parte do sangue era colocado nas pontas do altar de sacrifício (Lv 4:25, 30) ou um movimento horizontal no qual parte do sangue era levado para dentro do santuário e aspergido perante Deus, diante do véu entre o lugar santo e o santíssimo (Lv 4:5-7, 16-18).

Assim, a atividade distintiva do sacerdote israelita não era imolar o animal, mas realizar o processo de oferecimento do animal sacrificado para Deus, tanto em um movimento tipológico vertical quanto horizontal. Verticalmente, a oferta chegava a Deus no Céu. Horizontalmente, ela chegava a Deus no santuário. Como essa tipologia apontava para Cristo, Ele apresentou seu sacrifício diante do Pai, cumprindo assim o movimento vertical (ascensão para o Céu; Hb 4:14; 9:24) e o horizontal (entrada no santuário celestial; Hb 6:19-20; 9:12, 24). Em sua ascensão, Cristo concluiu o oferecimento de seu sacrifício. Hebreus 8:3 e 4 indica que Cristo ofereceu seu sacrifício no santuário celestial. Obviamente, seu sacrifício foi terrestre, na cruz (Hb 9:26). Mas o oferecimento desse sacrifício é concluído por sua entrada no santuário (veja Hb 9:25, onde o oferecimento sacerdotal é realizado ao “entrar”).

Quanto ao início da obra de contínua mediação, o início do trabalho sacerdotal de Cristo no Céu ocorreu no contexto de outros “inícios” na história da salvação. Entre eles, podemos destacar o início do uso do santuário celestial pelo sacerdócio salvífico de Cristo (Hb 8:1-5; 9:11, 12, 24) e o início da nova aliança, mediada por sua obra sacerdotal no santuário celestial (Hb 7:22; 8:6, 8, 10; 9:15; 10:16; 12:24). De fato, a inauguração da aliança, do santuário e do sacerdócio reflete tipologicamente a formalização da aliança de Deus com os israelitas que saíram do Egito (cf. Êx 19:1-8; 24:7, 8; 32:10; Hb 9:18-20).

Essa aliança iniciou um conjunto de eventos que incluíram a construção e inauguração/consagração do santuário (cf. Êx 25-27, 30-31, 35-40; Nm 7; Hb 9:21) e a escolha e consagração dos sacerdotes (cf. Êx 28-29; Lv 8-9). No entanto, o santuário, os sacerdotes e os sacrifícios eram apenas “sombras” que tipificavam a realidade do sacerdócio de Cristo. O santuário terrestre apontava para o santuário celestial (Hb 8:5; 9:11, 24), os sacerdotes pecadores e mortais apontavam para o sacerdote sem pecado e imortal (Hb 7:16, 24, 26) e os inúmeros sacrifícios de animais apontavam para o único sacrifício de Cristo (Hb 10:1, 4, 11, 12).

Portanto, a característica básica da nova aliança é a presença das realidades do santuário celestial, do sacerdote perfeito e do único sacrifício. O trabalho desse sacerdote no santuário celestial, com base em seu único sacrifício, traz a realidade do perdão de pecados e da interiorização da lei divina no coração dos crentes (Hb 8:8-12; 10:16, 17). Essa realidade era vista em forma de promessa na tipificação do santuário terrestre e dos múltiplos sacerdotes e sacrifícios que mediavam o relacionamento de aliança do povo de Israel com Deus antes da vinda de Cristo.

ETAPA 2: MEDIAÇÃO CONTÍNUA

Em virtude da inauguração do sacerdócio Cristo, iniciou-se um processo de mediação contínua no santuário celestial. Na tipologia do sacerdócio israelita, essa mediação ocorria no trabalho diário dos sacerdotes no primeiro compartimento do santuário terrestre (Hb 9:6; 7:27). Contudo, ao passo que esse trabalho era caracterizado pelo oferecimento de vários sacrifícios (Hb 7:27), especialmente o da manhã e o da tarde (cf. Nm 28:3-8), a mediação contínua de Cristo não é acompanhada de sacrifícios, mas se fundamenta em seu único sacrifício. Essa mediação compreende basicamente as duas características centrais da nova aliança (Hb 8:8-12; 10:16, 17): (1) o perdão de pecados e (2) a interiorização da lei divina no coração dos crentes. Em outras palavras, a obra de justificação e santificação.

Em relação ao perdão, embora Cristo tenha morrido na cruz e apresentado seu sacrifício ao Pai na sua ascensão, o problema do pecado ainda não foi plenamente resolvido. Ainda vivemos neste mundo pecaminoso em que os crentes precisam lutar contra o pecado (Hb 10:36; 12:4). Infelizmente, nessa luta, ainda caímos em pecado. Mas, se pecamos, Jesus é nosso intercessor celestial para que sejamos perdoados (1Jo 2:1, 2). Deus nos justifica (não somos condenados) com base nessa intercessão (Rm 8:33, 34). Cristo é o sumo sacerdote que se compadece das nossas fraquezas (Hb 4:14) e misericordiosamente faz expiação dos nossos pecados (Hb 2:17). Ele vive para interceder por nós e, com base nessa intercessão, podemos ser salvos e nos achegarmos a Deus (Hb 7:25). Isso ocorre todas as vezes que confessamos nossos pecados em oração (1Jo 1:9). Logo, a mediação contínua de Cristo é especialmente a mediação de nossas orações, que são apresentadas por Ele diante do Pai para o perdão de nossos pecados.

Porém, se o Pai nos ama, por que necessitamos de um mediador para nossas orações? Por que Ele não perdoa diretamente? Em síntese, ao obtermos a justificação por meio de Cristo, Deus necessita ser não apenas justificador, mas também justo (Rm 3:26). Não basta Deus perdoar os pecadores. Ele precisa ser justo ao oferecer esse perdão. É exatamente por meio da intercessão de Cristo em nosso favor, com base na perfeição de sua vida e seu sacrifício em nosso lugar, que Deus pode ser justo ao nos perdoar. Foi o próprio Pai que deu seu Filho (Jo 3:16) e o estabeleceu como sacerdote mediador (Hb 5:4-6; 7:21) em nosso favor. Portanto, a morte e a intercessão de Cristo não ocorreram para que o Pai fosse convencido a ter misericórdia dos pecadores arrependidos. Antes, o Pai agiu como a autoridade diante da qual a intercessão de Cristo é apresentada, para que o processo legal de perdão de pecados seja justo.

Quanto à interiorização da lei divina no coração dos crentes, além do perdão dos pecados, a mediação contínua de Cristo atua para promover o crescimento do relacionamento dos crentes com Deus, no qual a vida deles se mantém alinhada à vontade divina. Nesse sentido, Cristo socorre aqueles que são tentados (Hb 2:18), dando-lhes força para que se mantenham fiéis a Deus. Ele media a ação divina que aperfeiçoa espiritualmente os crentes, para que estes façam a vontade de Deus (Hb 13:20, 21).

ETAPA 3: JULGAMENTO ESCATOLÓGICO

A conclusão do sacerdócio salvífico de Cristo será seguida por sua segunda vinda, que trará salvação aos que o aguardam (Hb 9:28). Essa vinda está associada ao juízo escatológico (Hb 9:27, 28), no qual o santuário celestial necessita ser purificado com o sacrifício de Cristo (Hb 9:23). Na tipologia do Antigo Testamento, no Dia da Expiação o santuário era purificado dos pecados dos israelitas (Lv 16:16-20) e, consequentemente, os próprios israelitas eram purificados de seus pecados (Lv 16:30). Esse dia funcionava como um julgamento coletivo e, portanto, devia ser um momento de contrição para cada pessoa (Lv 16:29). O perdão de pecados via mediação diária ocorria por meio da transferência desses pecados para o santuário ao longo do ano, ritualmente efetuada por meio do sangue dos sacrifícios que era levado para o santuário ou pela ingestão da carne dos sacrifícios por parte do sacerdote (Lv 6:26, 30). Era o Dia da Expiação que trazia purificação final e coletiva no calendário anual.

A compreensão do cumprimento tipológico do Dia da Expiação na obra sacerdotal de Cristo é, às vezes, dificultada pela interpretação por parte de alguns cristãos da entrada de Cristo no santuário celestial, por ocasião de sua ascensão, como sendo o cumprimento desse dia. O problema com essa interpretação é que Ele não resolve total nem coletivamente o problema do pecado ao entrar no santuário celestial no primeiro século da era cristã. Esse problema só será plenamente resolvido no julgamento escatológico, quando o santuário celestial será purificado de acordo com a tipologia do Dia da Expiação.

Como interpretamos, então, as passagens de Hebreus que parecem indicar que Cristo entrou como sumo sacerdote no lugar santíssimo em sua ascensão (6:19, 20; 9:12, 24, 25)? Não seria esse o cumprimento do Dia da Expiação? Não. Vamos explicar em três passos.

Primeiramente, ao compararmos diferentes versões de Hebreus 9:12 e 25, observamos que algumas mencionam “santo dos santos” (ARA) ou “lugar santíssimo” (NVI, NTLH), mas outras traduções mencionam “santuário” (ARC, ACF, BJ, TEB). O fato é que nessas duas passagens (como também em 8:2; 9:1, 8, 24; 10:19; 13:11), a expressão grega ta hagia é utilizada. Essa expressão normalmente se refere ao santuário como um todo. Portanto, a ênfase de Hebreus é que, na ascensão, Cristo entrou no santuário celestial.

Em segundo lugar, Hebreus compara a entrada de Cristo no santuário celestial (9:11, 12) com o início da aliança de Deus com o povo que saiu do Egito (9:18-21), que incluiu a inauguração do santuário com a apresentação de sacrifícios. Note que Hebreus 9:21 enfatiza que todas as partes e utensílios do santuário foram consagrados com o sangue de sacrifícios. Portanto, o Dia da Expiação não foi o único momento na tipologia do Antigo Testamento em que houve a entrada com sangue no lugar santíssimo. A inauguração do santuário também incluiu uma entrada com sangue ali. Assim, à luz do rito da inauguração, a entrada de Cristo no santuário como um todo (podendo incluir o lugar santíssimo) em sua ascensão não indica o cumprimento da tipologia do Dia da Expiação.

Em terceiro lugar, na comparação de Hebreus 9:24 e 25 da entrada de Cristo no santuário celestial (ascensão) com a entrada anual do sumo sacerdote no santuário israelita (Dia da Expiação), o que é comparado é o oferecimento do sacrifício. A diferença fundamental do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio israelita é que Ele ofereceu um único sacrifício (9:26; 7:27; 10:11, 12), ao passo que os serviços no santuário terrestre eram caracterizados por uma pluralidade de sacrifícios. Com efeito, todos esses sacrifícios (inclusive os do Dia da Expiação) se cumpriram no sacrifício único de Cristo, ocorrido na cruz e oferecido ao Pai na ascensão. Logo, o Dia da Expiação escatológico de Cristo se diferencia da atividade anual do sumo sacerdote israelita, especialmente no segundo compartimento do santuário, no sentido de que Cristo não oferece sacrifícios, mas purifica o santuário celestial com base em seu único sacrifício já oferecido.

O cumprimento profético do Dia da Expiação, em que o santuário celestial é purificado (Hb 9:23), teve início em 1844 (Dn 8:14). O significado dessa purificação é o julgamento divino caracterizado pela abertura de livros em um tribunal celestial (Dn 7:9, 10), e todos estão envolvidos nesse juízo que já teve início (Ap 14:6; veja os paralelos entre Dn 8:14, Dn 7:13 e Ap 14 em Ellen White, O Grande Conflito, p. 424-426). Felizmente, o cumprimento profético do Dia da Expiação desde 1844 também inclui o oferecimento de “perdão de pecados aos homens, mediante a intercessão de Cristo no lugar santíssimo” (ibid., p. 430). Ademais, o fato de que o julgamento escatológico já teve início significa que, em breve, Cristo virá para trazer completa salvação aos que o aguardam (Hb 9:28). Esse é o alvo final do seu sacerdócio.

Enquanto isso, seu trabalho sacerdotal continua no santuário celestial. Cristo não se cansa de agir em favor da nossa salvação. Cada um de nós precisa se apropriar dessa realidade!

*Adriani Milli, doutor em Antigo Testamento pela Universidade Andrews (EUA), é professor de Teologia no Unasp, em Engenheiro Coelho (SP)

(Artigo publicado originalmente na edição de outubro de 2016 da Revista Adventista)

domingo, 7 de outubro de 2018

CONSTRUINDO O DIÁLOGO



Ganoune Diop*

Como os adventistas se relacionam com outras denominações cristãs e religiões mundiais, sem cair no ecumenismo de crenças?

Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que neste mês [agosto] completa 70 anos, nasceu quando o mundo ainda dava seus primeiros passos de recuperação após a Segunda Guerra Mundial. Hoje, com cerca de 350 igrejas-membros, o CMI é uma das entidades ecumênicas mais influentes.

Logo após a guerra, o CMI se envolveu na ajuda aos imigrantes, refugiados    e pobres. Nas décadas seguintes, procurou assumir uma postura de mediação no contexto da Guerra Fria e dos conflitos raciais na África do Sul. Inicialmente formado por igrejas do Ocidente, nos anos 1960 conseguiu se aproximar das tradições ortodoxas e de igrejas independentes.

Apesar de a Igreja Católica Apostólica Romana não ser membro da entidade, em celebração ao aniversário do CMI, o papa Francisco visitou a sede da instituição no dia 21 de junho, em Genebra, na Suíça. Ao longo do ano, outras festividades têm sido organizadas.

A Igreja Adventista do Sétimo Dia não é membro do CMI, mas participa de suas reuniões como observadora. Essa postura distinta de nossa denominação desperta dúvidas em muitos adventistas. Diante desse impasse, vale apenas refletir sobre a posição da igreja em relação ao movimento ecumênico e ao diálogo inter-religioso.

PONTOS EM COMUM

Os adventistas do sétimo dia ocupam uma posição privilegiada quanto ao relacionamento com pessoas de outras denominações cristãs e religiões. Existem intersecções de valores que podem funcionar como ponto de partida para diálogos e parcerias com o intuito de melhorar as condições de vida de toda a família humana.

Por exemplo, os adventistas adotaram a abstinência de bebidas alcoólicas, um ponto em comum com os muçulmanos. Muitos adventistas se abstêm de comer carne, ponto em comum com o hinduísmo e o budismo. A maioria dos adventistas evita as bebidas cafeinadas, ponto em comum com os mórmons. Mesmo os adventistas que comem carne se abstêm das que são consideradas imundas (Lv 11; Dt 14), ponto em comum com os judeus.

Em nível mais profundo, embora as nuances de conteúdo devam ser levadas em consideração, a crença na criação e na segunda vinda de Jesus à Terra, sugerida no nome “adventista do sétimo dia”, é compartilhada por religiões que enfatizam a intervenção escatológica divina para restaurar a justiça e a paz no mundo. Portanto, o adventismo é uma ponte oportuna para a maioria das religiões, e sua mensagem pode ecoar positivamente em vários contextos e culturas.

Há premissas filosóficas que influenciam o compromisso dos adventistas de construir pontes com pessoas de outras denominações, ou com ateus e agnósticos. Todas convergem na convicção de que Jesus Cristo é o “Desejado de todas as nações”(Ageu 2:7-9, ARC), isto é, Ele é o Deus que as pessoas desejam profundamente conhecer, ainda que não estejam conscientes disso. Portanto, nosso diálogo é motivado pelo sincero desejo de testemunhar de Cristo, conforme O compreendemos a partir das escrituras.

Entendemos também que, para dialogar, é preciso compreender o outro e ser compreendido por ele. Por isso, os adventistas procuram genuinamente conhecer melhor as crenças, as concepções de mundo e os valores de pessoas de outras religiões ou convicções, em seus próprios termos, de acordo com sua própria visão de mundo.

Existem várias declarações oficiais facilmente acessíveis que fornrcem diretrizes a respeito de como os adventistas devem se relacionar com outras organizações religiosas. O livro Declarações da Igreja (CPB, 2012), traz alguns posicionamentos sobre o tema nas páginas 19-26, 133—138, 141-153.

Essas orientações giram em torno de uma abordagem positiva para com outras religiões e a necessidade de se garantir a liberdade de crença e autonomia para que todos possam testemunhar em favor de suas convicções. Adota-se a mesma abordagem quando se trata  de pessoas que não professam nenhuma religião, adeptas de filosofias puramente seculares.

LIBERDADE PARA A MISSÃO

A história das relações entre religiões e ideologias concorrentes que levaram a inúmeras guerras, confrontos, intimidações, abusos e violência em todas as suas formas torna necessário delinear da maneira mais clara possível nossa compreensão sobre outras religiões e a natureza do alcance de nosso testemunho a elas.

Um valor fundamental promovido pelos adventistas no cenário mundial é a liberdade de escolha religiosa. No adventismo, esse privilégio é considerado um direito humano. Portanto, embora caracterizados por um senso de missão para com todos os grupos de pessoas, os adventistas insistem na liberdade de cada indivíduo poder manter suas convicções. Coerção, intimidação e manipulação da vulnerabilidade ou ingenuidade das pessoas vão fundamentalmente contra nossas valores essenciais.

Além disso, a honestidade quanto ao conteúdo de nossas crenças deve ser claramente expressa e explicada àqueles a quem proclamamos a soberania de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e com quem compartilhamos o evangelho eterno, para que possam entender a natureza e a abrangência da aliança que são convidados a firmar.

Em essência, os adventistas proclamam os fundamentos do evangelho bíblico para o mundo. Em linhas gerais, essa narrativa se desenvolve da seguinte forma: A eterna Divindade (Pai, Filho e Espírito Santo) criou o mundo com base no amor. Deus também preparou um plano de redenção para salvar o mundo quando o mal se infiltrou e prejudicou e prejudicou Suas criaturas e Sua criação. O Filho, a eterna Palavra de Deus, que estava com Deus era Deus, encarnou-Se, viveu entre nós para nos salvar e mostrar como viver. Ele nos ensinou a pensar, lidou com as pessoas de uma forma que exemplificou como devemos nos relacionar com os outros. Cristo morreu pelos nossos pecados, mas venceu a morte, o último inimigo. Ele está vivo e tem as chaves da morte e do inferno (Ap 1:18).

Após Sua ascensão ao Céu, Jesus desempenha a função de Sumo Sacerdote, intercedendo e preparando as pessoas para viver em eterna comunhão com Deus. Ele virá como Rei dos Reis e Senhor dos Senhores para inaugurar uma nova era de vida, liberdade, justiça e paz. Todos esses temas estão contidos na expressão “reino de Deus”. Para preparar Seus seguidores para o encontro escatológico cósmico, Deus enviou Seu Espírito para habitar neles, transformá-los a ser Suas testemunhas, adorando-O e servindo aos outros.

O evangelho pregado pelos adventistas é integral e se concentra em todos os aspectos da existência humana: espiritual, mental, emocional, físico, social e relacional. O adventismo defende a dignidade de todo ser humano, independentemente de origem étnica, cor, sexo ou status social. Seu persistente compromisso de aliviar o sofrimento e melhorar a vida das pessoas em muitas partes do mundo é um sinal claro de que a esperança está no centro de sua mensagem.

UNIDADE SEM ECUMENISMO

Ao saber que a Igreja Adventista está representada nas reuniões de organizações ecumênicas cristãs, alguns perguntam como exatamente os adventistas veem a unidade cristã, o diálogo inter-religioso e o ecumenismo. Outra dúvida recorrente está relacionada à razão de optarmos por aceitar e manter apenas o status de observadores e não de membros nas organizações ecumênicas cristãs, como o Conselho Mundial de Igrejas.

A resposta é simples: é legítimo que indivíduos e instituições de boa vontade se unam para salvar e proteger pessoas e afirmar a importância e o caráter sagrado da vida. É inclusive urgente que mais pessoas se associem para tornar este mundo  um lugar melhor para todos os seres humanos, contribuindo para melhorias na saúde, educação e no trabalho humanitário, fazendo isso com toda a dignidade, liberdade, justiça, paz e fraternidade. No cumprimento de sua missão, os adventistas procuram se misturar com essas outras organizações cristãs.

Contudo, no que se refere à sua posição em organizações cristãs globais, a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem ocupado o status de observadora nas reuniões e estado aberta à cooperação com outras igrejas em áreas que não comprometem sua identidade, missão e mensagem. A regra geral é não se tornar membro de qualquer corpo ecumênico que diminua o impacto da distinta mensagem que o adventismo tem para dar em relação à soberania de Deus, o Criador, ao sábado e à segunda vinda de Cristo.

Para os adventistas, a liberdade religiosa é o antídoto para o ecumenismo sincretista. É um chamado para abraçar a verdade com a inalienável liberdade de consciência, de expressar publicamente suas doutrinas, de convidar outros para compartilhar suas convicções e se unir à sua comunidade de fé.

COMPREENSÃO CORRETA

No âmbito das relações inter-religioso e entre igrejas, um sutil conjunto de tópicos inter-relacionados que necessita de muita clareza é a questão da unidade e do ecumenismo. Às vezes, outras palavras como “colaboração”, “parceria” e “diálogo inter-religioso” são trazidas às conversas como se tivessem o mesmo significado.

A palavra “ecumenismo”, por exemplo, é usada de maneira diferente em contexto variados. O termo pode se referir à unidade entre as igrejas cristãs, mas as pessoas costumam usá-lo para descrever um sentido geral de relações cordiais, diálogo ou parceria para um projeto. Rotular qualquer parceria entre os cristãos como ecumenismo doutrinário pode revelar falta de conhecimento, instrução e mesmo exagero.

Cada aspecto do engajamento adventista com qualquer instituição, órgão ou organização, seja eclesiástica ou política, desenvolve-se principalmente com base na razão para a existência da igreja: ser “sal” e “luz” do mundo (Mt 5:13-17), trazendo esperança para a humanidade enredada em todo tipo de maldade.

Para cumprir essa missão, os adventistas seguem o método de Jesus, conforme sintetizado pela pioneira Ellen White no livro A Ciência do Bom Viver, p. 143. Ele serviu as pessoas, procurando alimentá-las e curá-las sem esperar nada em troca. Cristo as fez saber e sentir que eram livres para escolher seu futuro, com ou sem Ele. A liberdade de consciência é importante para Jesus. Sem essa liberdade, nenhuma aliança é genuína. Isso ocorre porque o amor não pode ser forçado.

RELAÇÕES ENTRE IGREJAS

Apesar de não fazerem parte das organizações ecumênicas que exigem adesão, os adventistas desfrutam do status de convidados ou observadores nas reuniões. A cooperação com outras denominações cristãs está de acordo com a visão que a Igreja Adventista tem dos demais cristãs. Reconhecemos “todas as organizações que elevam Cristo perante os homens como parte do plano divino de evangelização do mundo, e [...] têm grande estima pelos homens e mulheres cristãos de outras denominações que estão empenhados em ganhar almas para Cristo” (Declarações da Igreja, p. 152, 153).

Ellen White escreveu também algumas vezes sobre a necessidade de cooperação entre as igrejas. A respeito do debate público de sua época em torno de questões da temperança, ela aconselhou que os adventistas se unissem às pessoas que defendiam a mesma causa que eles (Testemunhos Para a Igreja, v. 6, p. 110). Em outra citação, ela orientou os pastores adventistas a orar pelos líderes de outras denominações, pois sobre esses homens, como “mensageiros de Cristo”, pesava grande responsabilidade (p. 78).

PRINCÍPIO MAIOR

Apesar de Deus sempre ter desejado unir todas as famílias da Terra (Gn 12:1-3; Jo 17), a unidade não é um valor supremo, nem superior ao da verdade. Na prática, a unidade genuína só pode acontecer em torno da verdade de Deus revelada nas Escrituras. Por isso, os dois princípios que influenciam as relações dos adventistas com outros cristãos, conforme também ressaltados pela pioneira adventista Ellen White, são a verdade e a liberdade religiosa (Atos dos Apóstolos, p. 68, 69).

A Igreja Adventista é várias outras denominações que não se uniram aos corpos ecumênicos organizados se opõem ao ecumenismo como doutrina ou como meio de fundir igrejas cristãs em uma igreja mundial. Além disso, os adventistas e outros crentes não aderem a alianças sincretistas que diminuem a importância e o peso da verdade, especialmente quando as crenças de algumas igrejas não estão em harmonia com a verdade revelada na Bíblia.

Em realidade, a unidade doutrinária entre as igrejas cristãs é enganosa e inatingível, a menos que as igrejas percam suas crenças distintivas e se unam a uma das tradições religiosas, seja ela católica romana, ortodoxa oriental, anglicana, reformada, evangélica, pentecostal, ou qualquer outra.

Embora considere outros cristãos como irmãos e irmãs em Cristo, o princípio que levou a Igreja Adventista a não ser membro de uma união de igrejas organizada foi a liberdade religiosa. Essa liberdade implica o direito irrestrito de compartilhar as convicções religiosas e de convidar outros a se unirem à própria tradição, sem ser acusado de proselitistas. Assim, a principal preocupação dos adventistas é a possibilidade de serem impedidos de compartilhar suas convicções com outros.

A liberdade de religião ou crença é um inegociável dom de Deus que deve caracterizar a liberdade de todo cristão ou comunidade cristã para compartilhar suas convicções e convidar outros a se unirem à sua tradição. Obviamente, por causa da missão, os cristãos podem se unir para testemunhar de Cristo ao mundo que necessita Dele com muita urgência.  

*Ganoune Diop é diretor do departamento de Assuntos Públicos e Liberdade Religiosa da Igreja Adventista e secretário-geral da Associação Internacional de Liberdade Religiosa (Irla, em inglês)

FONTE: Revista Adventista, Agostos 2018, p. 12-15.