Teologia

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

176 ANOS DA CHEGADA DO JUÍZO DIVINO


 Ricardo André

Hoje é um dia histórico para a Igreja Adventista do Sétimo Dia em todo o mundo – o Dia do Desapontamento de 22 de outubro de 1844. Ao levantar nesta manhã fiquei refletindo sobre aquele dia tão marcante e triste para nossos irmãos mileritas. Guilherme Miller (1782-1849), um agricultor, converteu-se à Igreja Batista e começou a estudar intensamente a Bíblia. Utilizando uma Bíblia e um material de estudo de textos bíblicos conhecido como Concordância de Cruden, conclui que o Santuário descrito na profecia de Daniel 8:14 referia-se à Terra e a purificação do mesmo ao retorno de Jesus. Fazendo uso de um método de interpretação de profecias bíblicas conhecido como princípio dia-ano (Números 14:34; Ezequiel 4:6), concluiu, depois de 16 anos de estudo das profecias (1816-1832) que as "2300 tardes e manhãs" referidas, iniciavam-se em 457 a.C e se cumpriam entre março de 1843 e março de 1844. Como o fato não ocorreu (a volta de Jesus), o retorno aos estudos sobre o assunto gerou uma compreensão mais acurada. Samuel S. Snow, ministro protestante milerita, concluiu que a purificação do santuário descrita na profecia ocorreria de acordo com o calendário judaico dos caraítas em 22 de outubro de 1844.

Miller sentiu o desejo de exclamar: “Não posso expressar a alegria que encheu meu coração!” (Miller, Apology and Defence, p. 12. Citado em A Visão Apocalíptica e a Neutralização do Adventismo, p. 33). Durante 14 anos Guilherme Miller pregara sua mensagem. Aproximadamente 50 mil pessoas em todos os Estados Unidos, aceitaram-na. Eles aguardavam com sinceridade a volta de Jesus. Todos acreditavam que finalmente havia chegado a hora da vinda do Salvador a este mundo, para terminar a triste história do pecado. A esperança daqueles crentes era tão forte que a própria morte não tinha poder sobre eles. Ellen G. White afirmou: “As alegrias da salvação nos eram mais necessárias do que a comida e a bebida. Se as nuvens nos obscureciam o espírito, não ousávamos repousar ou dormir antes que fossem varridas pela certeza de que éramos aceitos pelo Senhor” (Vida e Ensinos, p. 53).

Haviam feitos todos os preparativos, acertados todas as contas. Reconciliaram-se com aqueles que haviam ferido ou prejudicado. Deixaram de lado toda a rotina diária, doaram os frutos de suas terras aos amigos e anunciaram com galhardia e coragem ao mundo de seus dias que a volta de Jesus seria naquela data. Que fé maravilhosa! Que desejo ardente de ver o Senhor Jesus! Entre eles, encontrava-se a adolescente Ellen G. Harmon. A respeito desse dia de espera, ela escreveu: "Este foi o ano mais feliz de minha vida. Meu coração transbordava de alegre expectativa" (Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 54). O dia tão esperado chegara. Não havia dúvidas. As últimas horas haviam sido gastas em fervorosa oração e reestudo da Bíblia, para confirmação das datas anunciadas na profecia. O dia era este, sem dúvida. O dia tão esperado; o dia da segunda vinda de Jesus Cristo, mas na data nada ocorreu, gerando O Grande Desapontamento e muita tristeza.

C. M. Maxwell narra a intensa expectativa entre eles: “As sombras do acaso estendiam-se serena e friamente por toda a terra. As horas da noite passavam vagarosamente. Em desconsolados lares de mileritas, os relógios assinalaram doze horas da meia-noite – 22 de outubro havia terminado. Jesus não viera. Ele não voltara!” (História do Adventismo, p. 34).

Será que temos uma compreensão clara do que passaram aqueles primeiros “adventistas”? Compreendemos o significado da dor e da decepção que sofreram? Já pensamos o que significa caírem por terra todos os seus sonhos e a esperança da volta de Cristo desvanecer-se com o amanhecer do dia 23 de outubro, ao invés de raiar uma nova vida para os filhos de Deus? Foi um golpe terrível para os antepassados e pioneiros do Adventistimo. Aquela multidão de homens e mulheres pregava uma mensagem clara e inequívoca: Jesus voltará no dia 22 de outubro de 1844! É difícil compreender o grande drama experimentado pelos pioneiros naquela época.

Depois da experiência do desapontamento, enquanto a maioria dos Milleritas acabaram por desanimar, vários grupos continuaram estudando a Bíblia e constataram que a profecia de Daniel 8:14, sobre os 2.300 dias-anos, deveria realmente cumprir-se naquela data. Contudo, o acontecimento foi interpretado de forma equivocada. Eles compreenderam que a profecia não tratava da volta de Cristo e sim de eventos celestiais relatados no livro de Hebreus. Um desses grupos foi liderado pelo capitão aposentado José Bates e pelo casal Tiago White e Ellen G. White. Depois de reexaminarem as profecias, esse grupo compreendeu que havia um santuário real no Céu (Hb 8:1-5; Ap 11:19) e que a “purificação do santuário” de Daniel 8:14 não tinha nada ver com a Terra, mas com o Santuário Celestial, do qual o santuário terrestre era cópia ou tipo, e que, ao invés de Jesus voltar nessa data, Ele entrou como nosso Sumo Sacerdote no segundo compartimento do Santuário celestial, o Santo dos Santos, para iniciar o juízo investigativo predito na profecia de Apocalipse 14:6 e 7, e antes prefigurado no ritual do Dia da Expiação do santuário terrestre (Lv 16).

“Levítico 16 trata de um ritual de “purificação” do santuário israelita, incluindo a “purificação” (taher) de seu altar externo (v. 19), mediante as aplicações do sangue sacrifical pelo sumo sacerdote. Essa remoção de pecados e impurezas no comando central terreno de Deus representa a restauração ou a justificação do Seu santuário. O governo de Deus só é vindicado quando ele reconfirma as pessoas leais a quem já perdoou ao longo do ano (ver Lv 4-5) e quando rejeita aqueles que cometeram “transgressão” (Lv 16:16). [...] Depois de uma primeira fase de expiação, na qual Deus perdoava os israelita arrependidos que levavam ao santuário os sacrifícios durante todo o ano (Lv 4:20, 26, 31, 35; etc.), ocorria o Dia da expiação, que era uma espécie de segunda e última fase de expiação. Essa segunda fase purificava o santuário dos pecados do povo, representando o fato de que Deus como juiz foi vindicado, isentado da responsabilidade judicial na qual havia incorrido por perdoar pessoas culpadas (ver 2Sm 14:9), atitude que um juiz justo não adota (Dt 25:1; 1 Rs 8:32). O supremo sacrifício de Cristo, para o qual apontavam os sacrifícios de animais ao longo do ano e no Dia da Expiação, torna possível que Deus seja ao mesmo tempo justo e justificador (mediante o perdão) daqueles que creem (Rm 3:26). (Roy E. Gane. “O Que é a ‘Purificação do Santuário’ de Daniel 8:14?”, Interpretando as Escrituras. Tatuí, SP: CPB, 2019, p. 213.

Portanto, estamos vivendo no antitípico Dia da Expiação, em que Cristo, como nosso Sumo Sacerdote, entrou no Lugar Santo dos Santos ou santíssimo, em 1844, para realizar a segunda e última fase de Sua obra de expiação (purificação) dos pecados do seu povo registrados nos livros no Céu (Hb 8:1, 2; 7:25). “Quando, portanto, se ouve um adventista dizer, ou se lê na literatura adventista, mesmo nos escritos de Ellen G. White, que Cristo está fazendo expiação agora, deve-se compreender que queremos dizer que Cristo está agora fazendo aplicação dos benefícios da expiação sacrifical que efetuou na cruz; que está tornando eficaz para nós individualmente, conforme nossas necessidades e petições” (Questões sobre Doutrina. “Expiação Sacrifical Provida e Aplicada”. Tatuí, SP: CPB, 2009, p. 260).

Aqueles crentes entenderam que essa era uma parte importante do plano de salvação. A partir disso, no devido tempo, surgiu um grande movimento religioso mundial: A Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta recebeu uma grande missão: Anunciar a última mensagem de salvação a todo mundo. Ultrapassar os limites territoriais, culturais e linguísticos para alcançar toda a população da Terra, apresentando a tríplice Mensagem Angélica descrita em Ap 14:6-12, e chamar a atenção do mundo para o juízo e Sua segunda vinda. Para isso fundaram-se instituições médicas e educacionais em muitas parte do Globo. Foram erigidas igrejas, escolas, hospitais e casas publicadoras para ajudar a levar o evangelho eterno a toda não, tribo, língua e povo. Essa Igreja encara com seriedade a ordem: “Importa que profetizes novamente” (Ap 10:11).

Ellen G. White, co-fundadora da Igreja Adventista, afirmou: “Em sentido especial foram os adventistas do sétimo dia postos no mundo como atalaias e portadores de luz. A eles foi confiada a última mensagem de advertência a um mundo a perecer. Sobre eles incide maravilhosa luz da Palavra de Deus. Confiou-se-lhes uma obra da mais solene importância. (...) Não devem eles permitir que nenhuma outra coisa lhes absorva a atenção” (Testemunhos Seletos, vol. 3, p. 288).

Seis semanas depois do desapontamento de 22 de outubro de 1844, Guilherme Miller escreveu muitas linhas que ainda guiam minha jornada como fiel adventista. Ele escreveu: "Tenho fixado minha mente em outro tempo, e pretendo permanecer aqui até que Deus me conceda mais luz - para hoje, hoje e hoje, até que Ele venha e eu possa ver Aquele por quem minha alma tanto anseia" (The Midnight Cry, 5 de dezembro de 1844, p. 180. In: Revista Adventista, Outubro 2019, p. 19).

Hoje completamos 176 anos desse dia do Desapontamento. Com base nos capítulos 7 a 9 de Daniel, temos anunciado que o juízo investigativo que precede a segunda vinda de Cristo começou em 1844 e será concluído pouco antes desse glorioso evento. “Esse juízo procura essencialmente vindicar o povo de Deus, conforme se vê em Daniel 7, onde os santos são julgados e absolvidos. O povo de Deus permanece num atitude de completa dependência de Deus nas circunstâncias mais angustiosas. Os registros de sua vida são examinados e seus pecados, apagados; ao mesmo tempo, o nome dos falsos crentes é retirado dos livros (cf. Êx 34:33; Lv 23:29, 39). Aqueles cujo nome é conservado nos livros, inclusive os santos mortos, herdam o reino (Dn 7:22; 12:1, 2). Assim o santuário é purificado.” (Ângel M. Rodriguez, “O Santuário”, Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Tatuí, SP: CPB, 2011, p. 455, 456).

Quando essa obra investigativa terminar, é proferida a sentença de juízo. Então, Jesus virá como justo juiz para executar a sentença. Caro amigo leitor, continuemos a aguardar a volta de Jesus. Ele virá! Que possamos ouvir dos lábios do Mestre as boas-vindas para a eterna Pátria celestial.

Oremos para que o Senhor volte dentro em breve!

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

BREVE ANÁLISE DO DISCURSO CONTROVERSO DO DR. RODRIGO SILVA


 Ricardo André

No dia 10 do corrente, a Igreja Adventista do Unasp, São Paulo, realizou um interessante evento denominado “Maratona Espiritual ‘Adventismo em Tempos Líquidos’", onde vários preletores discorreram em mais de seis horas de programação acerca das diversas mudanças sociais e morais ocorridas na sociedade pós-moderna e como tais mudanças estão afetando a Igreja Adventista do Sétimo ameaçando sua identidade. Muitas coisas ditas pelos expositores foram interessantes e relevantes, muitas outras nem tanto, não passaram de ideias obtusas e obscuras. Dentre elas, uma encontra-se em parte do discurso do Dr. Rodrigo Silva, e que chamou-nos a atenção pela flagrante distorções cometidas por ele. Como cristão, comprometido com a verdade, e como não compactuo com a falsidade, senti-me impelido a “colocar os pingos nos is”.

Em um momento de sua palestra, Silva utiliza-se de uma citação do livro Modernidade Líquida, do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman para em seguida engendrar uma intricada ideia de que Bauman estava revelando o plano comunista de liquidar aquilo que era sólido na sociedade, a exemplo da família, e profanar o que era sagrado. Antes de passarmos aos fatos e a análise do discurso do Dr. Silva, transcrevemos o trecho da obra de Bauman, e depois a conclusão do Dr. Silva.

“[...] E isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação” (p. 9).

Agora observe a interpretação grosseira e falaciosa que Silva faz do texto:

“Noutras palavras, Bauman comunista, agnóstico, ele não é evangelista da TV Novo Tempo, nem distrital da Paulista Sul. Bauman falou que a modernidade líquida estava dentro dos planos já expostos no Manifesto Comunista, que sabiam que a única forma de implantar o comunismo, que ia colocar o marxismo em todo o mundo era tornar líquidos os sólidos, profanar o sagrado. Então, quando você diz: “a igreja tem que entender que tomar a causa da mulher, do negro e do homossexual não é marxismo”. Leiam Bauman. Na forma como está sendo colocada é marxismo. Ponto! É marxismo! Eu não concordo com aquele filósofo do presidente lá, o Olavo de Carvalho. Muitas coisas que ele fala é muito arrogante. [...] Eu discordo de Olavo de Carvalho em muitos pontos, mas a expressão “marxismo cultural ela tem fundamentação teórica, sim, senhor! Está ali. Estude isso. E a igreja está atenta para isso, para não perder a sua identidade”.

Causa-nos estupefação tamanha falta de lealdade de Silva ao sentido real do pensamento de Bauman. Ele o distorce completamente, na vã tentativa de provar a sua obscura crença conspiracionista de um plano maquiavélico dos comunistas de dominação a partir da destruição dos valores judaico-cristãos que marcam as sociedades ocidentais, denominado de “marxismo cultural”. Custa-nos acreditar que um doutor e pastor adventista acredite em teoria da conspiração e a dissemine.

Não é verdade que Bauman ao falar da modernidade líquida estivesse falando dessa suposta conspiração comunista. Isso é uma interpretação forçada do Rodrigo Silva. É constrangedor ter que lembrar ao doutor que, ao analisar um texto deve-se levar em consideração que existem princípios que regem sua correta análise e compreensão. E, um desses princípios é levar em consideração o contexto. Não há nada no trecho tampouco no seu contexto que sugere esse conspiracionismo. Isso é fantasia delirante do doutor! Infelizmente, essa teoria da conspiração tornou-se uma paranoia entre alguns pastores e seus seguidores, que veem comunismo em tudo. A luta por igualdade racial e de gênero é denunciado por eles como sendo influência do marxismo cultural. Desempregados, sem-terra, sem teto e luta por necessidade básicas da vida dentro do capitalismo são vistos como parte do grande complô comunista. Eles veem o comunismo a cada esquina. Falta pouco para eles gritarem de pavor: “Corram, os comunistas estão chegando!”

É de Dom Helder Câmara a melhor síntese dessa prática: “Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”.

Se for pela "lógica" dos pastores olavistas, Ellen G. White seria comunista, pois apontou a exploração dos ricos sobre os pobres como causa da pobreza. Ela afirmou: "Grande parte do dinheiro que assim [os ricos] empregavam havia sido alcançado por extorsões, oprimindo os pobres. [...] Por meio de toda espécie de opressão e extorsão, acumulam os homens fortunas colossais, enquanto sobem para Deus os clamores da humanidade faminta". Peguntamos ao Dr. Silva: Ellen White era marxista por denunciar como ofensivo a Deus a exploração capitalista?

O sentido verdadeiro do pensamento de Bauman

Se não há indício no texto de Bauman de dominação cultural pelos comunistas, então, o que ele queria dizer com a expressão “derreter os sólidos”? Antes de discutirmos o significado da expressão, é importante destacar que, as palavras “comunismo”, “socialismo” e “marxismo” sequer aparece no texto apontado, e isso é muito relevante. Toda pessoa que ler a obra Modernidade Líquida perceberá que o assunto que Bauman focaliza ali é o estágio atual da sociedade denominado por ele de “modernidade líquida” marcada pela inconsistência e instabilidade das relações humanas e a vida em conjunto (como as relações familiares, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante).

Essa ideia é confirmada pelo artigo de Rafael Bianchi Silva, Jéssica Paula Mendes e Rosieli dos Santos Lopes Alves que fizeram uma importante análise acerca do conceito de líquido em Bauman. Eles escreveram: “O autor postula que derreter sólidos, está intimamente relacionado com a possibilidade de operar livremente com a racionalidade, ou seja, libertar-se dos grilhões de sociedade clássica alicerçada nas tradições, crenças e instituições que determinassem padrões rígidos de conduta e pensamento. Assim, a modernidade significa o fim da crença, em uma ordem revelada e mantida por Deus, sendo que a evolução humana encontra-se no mundo por conta própria e sem amarras. Porém, ao realizar essa operação, o homem moderno passa a estar sozinho na construção de sua própria vida e da configuração do mundo a sua volta. Para além desse ponto, o derretimento de sólidos relaciona-se com a aplicação da racionalidade na vida cotidiana de forma a potencializar efeitos positivos em prol de possíveis consequências indesejadas. Ao colocar esse projeto em funcionamento, o homem defronta-se com uma realidade que se mostra sem a planificação social que as instituições tradicionais de certa forma garantiam. “Por isso mesmo essa forma de ‘derreter os sólidos’ deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar – nu, desprotegido, desarmado e exposto, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade” (Bauman, 2000/2001, p.10). (O conceito de líquido em Zygmunt Bauman: contemporaneidade e produção de subjetividade. Revista Athenea Digital (UEM), p. 251, 252).

Como se vê, os autores supracitados reduzem a pó a interpretação desonesta do Dr. Silva. Eles nada falam de conspiracionismo. E agora, dever-se-ia dizer, em parte alguma de sua obra Bauman assevera que o derretimento dos sólidos na modernidade líquida é causado pelos comunistas infiltrados nas instituições da sociedade operando as mudanças dos valores e da cultura, fragilizando as instituições tradicionais, criando assim, as condições para a implantação do comunismo no Ocidente, como é compreendido a teoria do marxismo cultural. Nada, absolutamente no texto de Bauman prova esse conspiracionismo. O nosso zelo pela verdade nos leva a afirmar: Isso é invencionice de Silva e o grupo de pastores olavistas da igreja. Por conta dessa “bola fora”, ele deveria se limitar às funções que ele desempenha muito bem, que é de teólogo e arqueólogo.

O significado do pensamento de Marx

Na realidade, Bauman se utiliza de um pensamento de Marx presente no Manifesto Comunista para desenvolver seu conceito de modernidade líquida, a qual reproduzimos abaixo.

“A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A contínua revolução da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com o seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas. A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela tem de alojar-se por toda parte, estabelecer-se por toda parte, construir vínculos por toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia configurou de maneira cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. [...]” (Manifesto do Partido Comunista. 2ª ed. São Paulo, SP: Martin Claret Ltda, 2010, p. 48, 49).

De uma simples leitura desse texto percebe-se claramente que Marx destaca que na sociedade capitalista moderna, “tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado” não representa uma ação dos marxistas, mas da burguesia como sujeito dominante. Bárbara Fernandes resenhando a obra “Tudo que é solido desmancha no ar (1982), do escritor e filósofo estadunidense marxista Marshall Berman, afirma:

“É nesse cenário criado pela burguesia que Marx discorre sobre a frase que origina o título do livro de Berman, dentro da lógica capitalista burguesa a produção é sempre renovada e revolucionada, tudo que é sólido e material, como os produtos manufaturados, as máquinas das indústrias, as casas dos trabalhadores, existem para deixarem de existir depois, isto é, para depois serem refeitos e ad infinitum sob formas cada vez mais lucrativas. Se é possível fazer uma comparação a contemporaneidade essa lógica se encaixa muito bem com o investimento feito em países pós-guerra, todos os bens materiais que ali existiam deixaram de existir, dessa forma o mercado passa a ser um ótimo meio de investimento comercial de produtos bens secundários, ainda, se é permitido uma analogia, é dentro dessa lógica que os Estados Unidos engrandeceu sua economia e até hoje em dia, faz muito dinheiro. O sistema capitalista possui exímia capacidade em explorar a crise e o caos para se desenvolver e enriquecer, como num ato de antropofagização da sua própria autodestruição” (Ensaio tudo que é sólido desmancha no ar: Marx, Modernismo e Modernização — Marshall Berman).

Fica evidente que Marx ao usar a expressão “tudo o que é sólido e estável se volatiliza” se referia a capacidade da burguesia de construir a produção material, a aceleração tecnológica, os bens, as máquinas, as cidades, entre outras coisas sólidas. Estas vão deixar de existir ou se transformar em pouco tempo. Marx descreveu o capitalismo como um processo de destruição criativa, e ninguém pode negar que ele foi prodigiosamente produtivo. Entre as coisas que foram destruídas no processo está o estilo de vida do qual o capitalismo dependia no passado. Olhando para um futuro no qual o mercado permeia cada canto da vida, Marx escreveu: "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Para alguém que vivia na Grã-Bretanha no início do período vitoriano - o Manifesto foi publicado em 1848 -, isto era uma observação incrivelmente perspicaz. Naquela época, nada parecia mais sólido que a sociedade às margens daquela em que Marx vivia. Um século e meio depois, nos encontramos no mundo que ele previu, onde a vida de todo mundo é experimental e provisória, e a ruína súbita pode ocorrer a qualquer momento. Portanto, asseverar que essa expressão de Marx no Manifesto Comunista e empregada por Bauman para caracterizar as relações sociais na modernidade é parte de um plano comunista de dominação do mundo a partir da cultura chega a ser cômico para não dizer trágico.

Notemos ainda de passagem que, no seu discurso, Silva admite nunca ter lido o Manifesto Comunista. Se tivesse feito essa leitura preliminar não teria dito que a “expressão Marxismo cultural tem fundamentação teórica”. Ele teria chegado à conclusão oposta, a saber, que não existe fundamentação teórica para essa teoria enganosa. No Manifesto Comunista, Marx propõe a revolução armada como única estratégia para implantação do socialismo. Não queremos aqui entrar no mérito da questão, se essa estratégia é certa ou errada, se é válida hoje ou não. Esse não é o objetivo do texto. Mas, a bem da verdade é preciso dizer que o cerne do socialismo marxista ortodoxo é um só: o conceito de determinismo econômico, e não o determinismo cultural, ou seja, Karl Marx entendia que a única maneira de alterar o modo de produção capitalista para o modo de produção socialista era através da revolução realizada pelo proletariado, e não pela dominação cultural. Na realidade, a fundamentação da teoria a que se refere Silva não é em Bauman, como demonstrado aqui, mas no teórico conspiratório Olavo de Carvalho, a quem afirma concordar com ele nesse assunto.  Na verdade, esse discurso falacioso do Dr. Rodrigo Silva visa criar pânico moral entre os membros da igreja, bem como alimentar seus seguidores nas redes sociais ávidos por consumir esse tipo de mensagem reacionária.

Prossigamos. Silva e os outros pastores que incorporaram o conspiracionismo da direita obtusa sabem que o “marxismo cultural” não pode ser provada. É uma narrativa baseada em “opinião”, não em evidências. Ora, se a aludida teoria não é fundamentada em evidências, disseminá-la, principalmente, no ambiente da igreja é moralmente errado. Ainda assim, eles resolveram assumir publicamente essa teoria como uma estratégia de emparedar e pressionar os adventistas que possuem concepções políticas de esquerda a abandonarem-nas. Já escrevi em outro momento e volto a dizer: Por decorrência lógica da civilidade, dignidade da pessoa humana e, até mesmo, da boa educação, Silva e os pastores que não se conformam com a realidade de existir adventistas esquerdistas na igreja, precisam aprender a respeitar, não as ideias políticas deles, mas o direito constitucional que eles têm de possui-las.

A serva do Senhor foi clara quanto ao respeito a liberdade de consciência: “Em questões de consciência, a alma deve ser deixada livre. Ninguém deve controlar o espírito de outro, julgar por outro, ou prescrever-lhe o dever. Deus dá a toda alma liberdade de pensar, e seguir suas próprias convicções. "Cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus." Rom. 14:12. Ninguém tem direito de imergir sua individualidade na de outro. Em tudo quanto envolve princípios, "cada um esteja inteiramente seguro em seu próprio ânimo". Rom. 14:5. No reino de Cristo não há nenhuma orgulhosa opressão, nenhuma obrigatoriedade de costumes” (Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 550, 551). Como líderes da igreja, esses pastores deveriam reafirmar o compromisso da igreja de eliminar todas as formas de intolerância e discriminação baseada em convicções, em consonância com essa declaração da serva do Senhor. 

Alguém precisa informar ao Dr. Silva e seu grupo que os adventistas de esquerda não exigem que a igreja assuma as pautas identitárias ou a pauta de esquerda. A única coisa que reivindicamos é que os pastores respeitem o direito que os membros possuem de participar da luta por direitos dos negros, das mulheres, dos indígenas e outros vulneráveis, e que os pastores estejam distante das questões políticas nas redes sociais, como orientando os crentes a não votarem em partidos políticos de esquerda/marxista. Esse não é o papel do pastor. Como disse o apóstolo Paulo, “importa que os homens nos considerem como ministros de Deus” (1Co 4:1). Penso que o melhor que os pastores e membros leigos adventistas têm que fazer é pregar o “evangelho eterno” (Ap 14:6-12), sem fazer referência ou mesmo comprar briga com a esquerda ou com os movimentos sociais. Fazendo isso todos estarão honrando a Deus e abrindo portas para alcançar outros com a luz do evangelho.

Queremos perguntar aos pastores que aderiram a “cruzada anticomunista” na igreja, (pasme o leitor!), em pleno século XXI, 31 anos depois da queda do Muro de Berlin e do fim da Guerra Fria: Onde os senhores querem chegar com esse terror? Os senhores acham que isso assegurará a unidade da igreja? A insistência em defender esse suposto marxismo cultural só contribui para estimular a polarização dentro da igreja. Penso que os pastores e membros não deveriam enveredarem-se por esse caminho tortuoso. Isso só gera ódio, ressentimento e divisão entre o povo de Deus. Até porque há aqueles membros que não acreditam nessa narrativa mentirosa, que sabem que não passa de fake news. Os senhores querem ver o confronto dos membros em suas igrejas? Querem ver os crentes se digladiando nas redes sociais? Querem que ocorram as brigas em nossas famílias por causa da política? Com a palavra o Dr. Rodrigo Silva e os queridos pastores adeptos da teoria conspiracionista!

Quero concluir minha análise com uma fala de Ekkehardt Mueller, diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica na sede mundial da IASD, que vem a calhar com o debate que se trava hoje na igreja. Ele afirmou claramente que “não condescendemos com teorias da conspiração e não as proclamamos publicamente. Elas não podem ser comprovadas. A necessidade de se retratar ou a comprovação de que estavam erradas podem causar prejuízos à causa de Deus”. (Revista Adventista, agosto 2020, p. 15). Que os pastores envolvidos na disseminação dessa teoria da conspiração perceba esse risco de desencadear graves prejuízos a igreja, e avaliem se vale a pena insistir nisso.

 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

NOTA SOBRE VÍDEO DO PR. RAFAEL ROSSI


Causou-nos estranheza que no Vídeo “Adventistas Progressistas dentro da IASD. É possível?”, o pastor adventista Rafael Rossi, Diretor de Comunicação da DSA, tenha feito de forma incisiva a defesa de uma teoria da conspiração denominada “Marxismo cultural”, criada pelo obscuro indivíduo norte americano Michael Minnicino, na década de 1990, e disseminada no Brasil principalmente pelo astrólogo falido Olavo de Carvalho e pelo padre conservador Paulo Ricardo, e fortemente presente no bolsonarismo. (Para mais informações sobre a inconsistência dessa teoria veja o artigo O “Marxismo Cultural” e a Paranoia dos cristãos alinhados com a direita política).

Ekkehardt Mueller, diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica na sede mundial da IASD, afirmou claramente que “não condescendemos com teorias da conspiração e não as proclamamos publicamente. Elas não podem ser comprovadas. A necessidade de se retratar ou a comprovação de que estavam erradas podem causar prejuízos à causa de Deus”. (Revista Adventista, agosto 2020, p. 15). Que os pastores envolvidos na disseminação dessa teoria da conspiração perceba esse risco de desencadear graves prejuízos a igreja, e avaliem se vale a pena insistir nisso. 

Nos parece que a referida palestra foi realizada para alertar os pastores departamentais de jovens dos “perigos” da influência desse suposto Marxismo cultural na igreja. Na realidade, a palestra é uma nítida reação de um pequeno grupo de pastores (sabemos quem são) alinhados à direita política, que estão inconformados com a constatação da existência de vários fieis adventistas espelhados pelo Brasil que possuem concepções políticas de esquerda.

É preciso que esses queridos pastores entendam que vivemos num país democrático, e que cada pessoa é livre para escolher ser de “esquerda”, ser de “direita” ou ser “nenhum nem outro”. Esses três grupos (de pastores e membros) estão presentes nas igrejas e precisam respeitarem-se mutuamente e serem tolerantes com os que divergem deles. Portanto, por decorrência lógica da civilidade, dignidade da pessoa humana e, até mesmo, da boa educação, o Pastor Rafael Rossi e seu “Grupo de Estudo” precisam aprender a respeitar, não as ideias políticas dos adventistas de esquerda, mas o direito constitucional que eles têm de possui-las.

Uma vez que os grupos ligados a direita política, inclusive os bolsonaristas são disseminadores dessa teoria conspiratória, o vídeo do Pr. Rossi escancara o alinhamento político desse grupo de pastores idealizadores da palestra com a direita. Importante dizer que, não há nada de errado em pastores terem posições políticas, desde que resguardado o respeito ao legítimo pluralismo das opções politico-partidárias das suas ovelhas. Como cidadãos, os ministros têm todo o direito de possuírem suas convicções políticas, inclusive de direita, mas precisam ser mais reservados para não estimular a polarização entre os crentes e introduzir a divisão nas igrejas que eles cuidam.

No vídeo, o aludido pastor informa que há um grupo de estudos na DSA, e que o mesmo estudou o tema Marxismo Cultural, e parece-nos que a palestra foi fruto do “estudo” desse grupo. Ocorre que, o Pr. Rossi quando apresentou o conceito e os postulados do “Marxismo cultural” não citou sequer uma fonte. A pergunta que se impõe é: de onde o pastor Rossi extraiu as ideias do marxismo cultural? Ele precisa mostrar suas fontes ou as obras em que se baseou para explicar o marxismo cultural, a fim demonstrar que sua pesquisa tem consistência e é séria.

Na verdade, o “grupo de estudos” não vai mostrar nenhuma obra séria e isenta que trate de Marxismo cultural. Eles sabem que não há no mundo nenhum cientista político, sociólogo e historiador que tenha escrito algum livro ou artigo apontando a existência de um plano maquiavélico para a dominação da ideologia marxista a partir da cultura. Eles só poderão citar alguns escritos ou vídeos produzidos pelos polêmicos Olavo de Carvalho e padre Paulo Ricardo e seus seguidores, que nunca são referenciados em artigos científicos. Se assim procederem, será ignominioso para a igreja, uma instituição séria ter um dos seus representantes pregando teoria conspiratória com base em fontes não confiáveis e sem valor acadêmico. De qualquer forma, aguardamos o pastor Rossi ou qualquer um dos pastores que constituem o “Grupo de Estudo” da DSA apresentar as fontes.

Extrai-se ainda no vídeo que, o Pr. Rossi cometeu o crasso erro da generalização carregada de sentimento de desprezo ao acusar o progressismo do grupo de adventistas que realizou um encontro virtual, em 30 de agosto, para discutir o Marxismo com o progressismo adepto da teologia liberal (progressismo comprometido com uma interpretação liberal das Sagradas Escrituras). Ele e seu grupo de estudo precisa entender mais uma coisa: Nem todo cristão progressista é teologicamente progressista. A maioria deles são politicamente progressistas e teologicamente conservador. É o caso daquele grupo de adventistas que realizou a Live de 30 de agosto. Eles são progressistas no campo político porque possuem concepções políticas de esquerda e, em época de eleições votam na esquerda, mas são conservadores no campo da teologia. Amam a Bíblia e acreditam na autenticidade e veracidade de seus relatos. E ainda: são fieis adventistas que acreditam nas 28 crenças fundamentais da IASD. Todavia, o pastor tenta colocar todos os cristãos progressistas “na vala comum”. Ocorre que a generalização comum pode se transformar em um grande perigo, exatamente por estabelecer preconceitos devastadores e balizar comportamentos de exclusão e indiferença, além de em nada ajudar a vivermos melhor.

Cabe ressaltar, que o objetivo do Encontro de Adventistas Progressistas foi estudar de forma honesta o Marxismo como ciência, como método analítico para compreensão do funcionamento do sistema capitalista, cônscios de que, como cristãos, não podem endossar todas as formas de pensar e escrever de Marx, ainda que a essência de suas ideias seja boa e bem fundamentada cientificamente. A Bíblia Sagrada não sugere censura. Ela recomenda o discernimento espiritual. É o que recomenda o apóstolo Paulo: “Examinem tudo, fiquem com o que é bom” (1Ts 5:21, NTLH). Ao encorajar o livre exame das coisas, Paulo acrescenta um conselho: o de ficar com o que é bom. É exatamente o que os cristãos progressistas fazem em relação ao marxismo, examinam seus postulados e suas ideias. Aquilo que não é bom, por conflitar com sua cosmovisão, que é baseada na Bíblia Sagrada, lançam-no fora. Porém, aquilo que é bom no marxismo abraçam, sem, contudo, abandonar um ponto sequer da fé.

Para demonstrar seriedade e honestidade, o referido pastor deveria, antes de colocar a arte do evento do dia 30 de agosto naquele vídeo eivado de distorções, ter entrado em contato conosco para saber o que realmente pensamos a respeito da Bíblia e dos valores nelas delineadas. No Direito isso é chamado de “princípio do contraditório”, que é definido pela expressão latina audiatur et altera pars, que significa “ouça-se também a outra parte”. Por não ter nos ouvido antes, acusou-nos de querer levar para a igreja as ideias marxistas. No final do vídeo, o pastor exasperou-se, e visivelmente nervoso elevou o tom da voz e esbravejou: “Não podemos permitir que ideias marxistas entre na igreja!”. Ocorre que, os grupos de Whatsapp e Facebook “Adventistas de Esquerda” e “Adventistas Progressistas” nunca pretenderam levar ideias marxistas para dentro da igreja. Nossas reflexões e debates políticos ocorrem sempre dentro dos próprios grupos ou em plataformas digitais fechadas. Nenhum integrante desses dois grupos nunca usaram o espaço da igreja para defender ideias marxistas ou de esquerda. Aliás, diga-se de passagem, a maioria dos adventistas desses grupos não são marxistas, apenas de esquerda.

Nessa toada, nunca é demais lembrar que, em abril de 2017, o Leandro Quadros usou o espaço de uma igreja Adventista para fazer campanha eleitoral antecipada para Bolsonaro. Dizemos que foi campanha eleitoral os elogios que Leandro Quadros fez a ele porque à época Bolsonaro era pré-candidato a presidente da República. O filho de dele, Eduardo Bolsonaro, achou tão importante a fala de Quadros para a campanha do pai que compartilhou o vídeo em sua rede social. Pasmem o leitor! Leandro Quadros elogiou um político da extrema direita, polêmico, racista, misógino, sem nenhum apreço pela democracia, viúva da ditadura militar (um dos períodos mais tenebroso da história republicana do nosso país) e defensor da tortura e de torturadores. E, até onde se sabe nunca foi punido por isso pela administração da igreja. Por quê? Falar a favor da direita e seus candidatos pode na igreja? Com a palavra, o Pr. Rossi e o seu “Grupo de estudo”!

E, ainda, à guisa de conclusão, que ele e os outros pastores sinceros ponderem honestamente sobre tudo isso, e revisem seu julgamento sobre aqueles crentes que como eles,  aguardam o segundo advento de Cristo e, consequentemente, o fim da era do pecado e o início de um mundo melhor, conforme prometido por Deus em sua Palavra, mas que acreditam que, como luz e sal da Terra (Mt 5:13-16), podem e devem dá sua contribuição na construção de um mundo com mais justiça social e mais fraterno, através das várias expressões do agir político – seja no sentido amplo, seja na militância partidária ou num movimento social. Isso não compete com a autoridade da Palavra de Deus, como querem alguns. Ao contrário, está em harmonia com a Bíblia. No passado, movido pelo chamado de Deus e pela compreensão de que Ele deseja a justiça, os profetas ousaram ser a voz dos oprimidos (Is 1:17, 23 e 24; Mq 6:8; Ez 16:49). Deus ainda hoje pede que busquemos a justiça social e lutemos contra a opressão e pelos direitos dos pobres e excluídos. Como cristãos, antes que Cristo Jesus volte em glória e majestade, devemos promover as mudanças sociais que refletem os valores e ensinamentos de Jesus.

Na expectativa de que essa nota tenha esclarecido a confusão criada pelo Grupo de Estudos da DSA em relação ao nosso Progressismo, permanecemos à disposição para o que for necessário.

 

Adventistas de Esquerda e Adventistas Progressistas

(Grupos de Whatsapp e Facebook)

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

DESMOND FORD – UMA ESTRELA FULGURANTE NO ADVENTISMO QUE FOI OFUSCADA

Ricardo André

Na primeira metade do ano de 1984, tornei-me Adventista do Sétimo Dia, depois de participar de uma série de estudos bíblicos, num Evangelismo Público, realizado pela Igreja Adventista da Cidade do Cabo de Santo Agostinho/PE. Convencido de que os ensinos e crenças adventistas estavam em perfeita harmonia com as Sagradas Escrituras, decidi me batizar no dia 17 de agosto de 1985. Era ainda uma criança com apenas 12 anos de idade, mas com uma firme convicção de que estava tomando a melhor decisão da minha vida, e de que Cristo estava conduzindo minha decisão.

Devo admitir que, em minha experiência de conversão ainda na tenra idade, algo que me chamou atenção na mensagem adventista foi o fato de fazer sentido em um mundo confuso. Aos 13 anos de idade, ao folhear a Bíblia do irmão Djair, que estava sentado ao meu lado na igreja, num sábado, notei que Daniel 8:14 estava marcado com tinta amarela. Ao lê-lo não entendi nada do conteúdo do versículo. Mas, senti que era importante porque o irmão, a quem admirava tinha marcado em sua Bíblia. Saí da igreja com aquele texto em minha mente. Quando cheguei em casa, embora não entendendo o significado do texto, com um marca-texto marquei-o na minha Bíblia também. A partir daquele dia passei a pesquisar com afinco sobre Daniel 8:14. Depois de meses de estudos, descobri uma das mais belas doutrinas da fé cristã. Descobri que a lógica e a coerência desse ensino era muito atraente, e pude compreender melhor o plano de Deus para me salvar e salvar a humanidade pecadora. Foi essa doutrina que me fez acreditar que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é um movimento profético suscitado por Deus para anunciar ao mundo esse ensino e outros que gravitam em torno dele antes da colheita da Terra (Ap 14:14-20). As crenças adventistas, notadamente a do santuário, não só faziam sentido, como também se sustentavam em um conjunto coerente – um conjunto de esperança em um Deus de amor que porá fim à longa e triste história do pecado de maneira harmônica com Seu caráter. A crença do santuário é um tema que mais aprecio ensinar nos estudos bíblicos com outras pessoas.

A doutrina bíblica do santuário é um ensino basilar da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Foi a interpretação e compreensão da profecia de Daniel 8:14 que deu origem a igreja e explica sua existência como uma entidade distinta dentro do Cristianismo. Desde o seu surgimento em meados do século XIX, os adventistas têm ensinado, com base em evidências nas Sagradas Escrituras, que existe um Santuário real no Céu (Ap 11:19). Esse santuário não é o próprio Céu, mas está no Céu, e foi o modelo dado por Deus a Moisés para a edificação do santuário terrestre (Êx 25:8, 9, 40; Hb 8:5). O santuário terrestre – realidade visível – apontava para o celestial, realidade invisível (Hb 8:9-5; 9:9, 23, 24). Os serviços diários e anual dos sacerdotes e sumos sacerdotes, respectivamente, no Lugar Santo e no Santíssimo do santuário terrestre prefiguravam o ministério sumo sacerdotal de Cristo em duas fases no Santuário Celestial. Ele realizou a expiação completa e perfeita através de Sua morte na cruz, e ao ascender ao Céu, Cristo entrou no Lugar Santo do santuário celestial para ministrar em favor de todo pecador, oferecendo os benefícios de sua morte expiatória a todo pecador penitente, que se entrega a Ele (Hb 7:25; 8:1, 2).

Sobre isso, Ellen G. White afirma nitidamente que Jesus entrou no santuário celestial “com o Seu próprio sangue, a fim de derramar sobre os discípulos os benefícios de Sua expiação”.1 No sistema sacrifical do Antigo Testamento, a contaminação do santuário ocorria pela confissão do pecador penitente, cujo pecado era simbolicamente transferido para o animal sacrificado e, através de seu sangue, para o santuário levado pelo sacerdote em sua ministração. Similarmente, hoje “pela fé, os pecados confessados dos que se arrependem são colocados sobre Jesus e transferidos para o santuário celestial”.2 Ao término do grande período profético dos 2 300 dias/anos de Daniel 8:14, em 22 de outubro de 1844 (457 a. C.–1844), Cristo entrou no segundo compartimento do santuário celestial, o Lugar Santo dos Santos ou santíssimo, a fim de iniciar sua segunda e última fase de seu ministério expiatório: o processo de purificação do santuário, contaminado pelos registros dos pecados do Seu povo. Tal processo corresponde ao juízo investigativo, prefigurado pelo ritual de purificação do santuário terrestre do Dia da Expiação, que ocorria sempre no 10º dia do 7º mês do calendário judaico (Lv 16).

Esse segundo aspecto ou fase da obra expiatória de Cristo “é a consumação de Sua obra de vindicação e juízo, uma purificação do Universo do pecado, dos pecadores e de Satanás. Deus em Cristo assume a responsabilidade pelo pecados de Seu povo. Cada pecado confessado que se encontra nos registros celestes é creditado ao Filho de Deus. Mas esse processo deve ter uma conclusão, do contrário, o problema do pecado nunca seria completamente resolvido. Em algum momento os registros devem ser fechados. Isso envolve uma obra de investigação e juízo, que resultar na vindicação do povo de Deus. Os nomes dos falsos crentes são retirados do Livro da Vida. A justificação dos crentes verdadeiros é ratificada, os nomes deles são conservados no celeste Livro da Vida, e seus pecados apagados dos registros. Deus é vindicado quando mostra ao Universo que Suas decisões judiciais são justas, que o pecado e a santidade, poder e graça de Deus só é possível por meio do Cordeiro, que derrota o dragão definitivamente, destruindo-o do Universo de Deus”.3 Portanto, o dia antitípico da expiação compreende um período de tempo que vai desde “1844 até o fim do milênio, a consumação da história de salvação”.4

Esse juízo, que precede o segundo advento de Jesus, e foi visto pelo profeta Daniel na visão do capítulo 7 (versos 9 e 10). O profeta João viu um movimento de alcance mundial anunciando esse juízo por ocasião de seu início (Ap 14:6, e 7). “A terminação do ministério de Cristo assinalará o fim do tempo da graça para os seres humanos, antes do segundo advento”.5

Essa é a visão tradicional da Igreja Adventista acerca do santuário, e compreende uma de suas crenças distintivas, pois não é compartilhada por nenhum outro grupo cristão. Não obstante ser um ensinamento exclusivo da Igreja Adventista e praticamente a única doutrina que não temos em comum com nenhum outro grupo religioso, a verdade sobre o santuário não pode ser vista como um ensinamento estranho, desvirtuado e indefensável; tampouco uma invenção para se sair bem de uma dificuldade histórica que os primeiros adventistas tiveram com a profecia dos 2.300 dias de Daniel 8:14, como querem alguns. Em vez de ser um desvio da fé cristã histórica, o ensino do santuário permeia toda a Bíblia Sagrada, é a conclusão lógica e a inevitável consumação dessa fé. É uma verdade presente, uma verdade para os últimos dias; mensagem oportuna, confiada a igreja remanescente.

A doutrina do santuário é de tamanha relevância para a nossa compreensão do plano de Deus para salvar a raça caída, bem como para a compreensão da nossa origem como um povo, que Ellen G. White dedicou um capítulo inteiro de O Grande Conflito, intitulado “O Santuário Celestial, Centro de Nossa Esperança” (cap. 23) à defesa dela. Em 1906, ela escreveu: “a compreensão correta do ministério do santuário celestial constitui o alicerce de nossa fé”.6 Ora, se a doutrina do santuário constitui-se no alicerce da nossa fé, pressupõe-se que se se retira essa doutrina do arcabouço de crenças da igreja, ela fatalmente perde sua identidade como a Igreja Remanescente da profecia bíblica, e consequentemente sua razão de existir, pois cremos que surgimos na hora da profecia bíblica para anunciar essa e outras verdades que giram em torno dela (Ap 10; 14:6-12), no contexto das três mensagens de Apocalipse 14, verdade presente de Deus para as últimas gerações da Terra.

Importante destacar que o entendimento da doutrina do santuário nos primórdios do adventismo foi, indubitavelmente, a chave que esclareceu o mistério do desapontamento de 1844, vivenciado pelos primeiros adventistas, e lançou luz sobre pontos básicos de nossa fé e verdades essenciais da Bíblia. Em outras palavras, o santuário “revelou um conjunto completo de verdades ligadas harmoniosamente entre si”7, a exemplo da distinção de leis, lei de Deus, sábado, expiação, mediação, justificação, santificação, segunda vinda de Cristo, recompensa dos justos e dos ímpios e completa destruição do mal.

No dia 3 de abril de 1847, Ellen G. White teve uma visão do Santíssimo, no templo do Céu. Assim ela descreve sua visão: “Sentíamos um incomum espírito de oração. E ao orarmos o Espírito Santo desceu sobre nós. Estávamos muito felizes. Logo perdi de vista as coisas terrestres e fui arrebatada em visão da glória de Deus. Vi um anjo que voava ligeiro para mim. Rápido levou-me da Terra para a Cidade Santa. Na cidade vi um templo no qual entrei. Passei por uma porta antes de chegar ao primeiro véu. Este véu foi erguido e eu entrei no lugar santo. Ali vi o altar de incenso, o castiçal com sete lâmpadas e a mesa com os pães da proposição. Depois de ter eu contemplado a glória do lugar santo, Jesus levantou o segundo véu e eu passei para o santo dos santos.

“No lugar santíssimo vi uma arca, cujo alto e lados eram do mais puro ouro. Em cada extremidade da arca havia um querubim com suas asas estendidas sobre ela. Tinham os rostos voltados um para o outro, e olhavam para baixo. Entre os anjos estava um incensário de ouro. Sobre a arca, onde estavam os anjos, havia o brilho de excelente glória, como se fora a glória do trono da habitação de Deus. Jesus estava junto à arca, e ao subirem a Ele as orações dos santos, a fumaça do incenso subia, e Ele oferecia suas orações ao Pai com o fumo do incenso. Na arca estava a urna de ouro contendo o maná, a vara de Arão que florescera e as tábuas de pedra que se fechavam como um livro. Jesus abriu-as, e eu vi os Dez Mandamentos nelas escritos com o dedo de Deus. Numa das tábuas havia quatro mandamentos e na outra seis. Os quatro da primeira tábua eram mais brilhantes que os seis da outra. Mas o quarto, o mandamento do sábado, brilhava mais que os outros; pois o sábado foi separado para ser guardado em honra do santo nome de Deus. O santo sábado tinha aparência gloriosa - um halo de glória o circundava. Vi que o mandamento do sábado não fora pregado na cruz. Se tivesse sido, os outros nove mandamentos também o teriam, e estaríamos na liberdade de transgredi-los a todos, bem como o quarto mandamento. Vi que Deus não havia mudado o sábado, pois Ele jamais muda. Mas Roma tinha-o mudado do sétimo para o primeiro dia da semana; pois deveria mudar os tempos e as leis”.8

Depois dessa visão da mensageira do Senhor, ficou claro para os pioneiros adventistas que a aceitação da verdade do santuário envolvia o reconhecimento dos requisitos da lei de Deus e a obrigatoriedade da guarda do sábado do quarto mandamento.

Após a descoberta do santuário, as visões de Ellen G. White mostraram a dimensão escatológica do conflito que se desenvolveria em torno da questão do verdadeiro sábado, trazendo o entendimento da mensagem do terceiro anjo de Apocalipse 14:9-13. Até esse momento, o sábado não tinha sido visto sob esse ângulo.

Como se vê, a doutrina do santuário significa muito para a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Ela é a essência do adventismo. Sobre isso, o saudoso e grande estudioso e erudito adventista Leroy Edwin Froom escreveu: “A verdade do santuário é a essência do adventismo e tudo abrange; qualquer enfraquecimento, negação ou supressão da verdade do santuário é questão séria, mesmo crucial. Qualquer desvio ou abandono dela fere o coração do adventismo, sendo um desafio à sua própria integridade”9

Froom ainda observa que “se não existe santuário no Céu, e nele não há operado um grande Sumo Sacerdote, e se já não existe mensagem da hora do juízo a ser, por ordem divina, pregada atualmente, então não há lugar para nós no mundo religioso, nem missão e mensagem denominacionais distintas, nem desculpas para ficarmos como entidade eclesiástica separada”.10

Predito ataques a Doutrina do santuário

Com séculos de antecedência, Deus predisse por meio dos apóstolos e depois através de Ellen G. White que nos últimos dias muitos iriam negar, combater e tentar remover os pilares da verdade. Na sua carta a Timóteo, o apóstolo Paulo previu que alguns se desviariam da fé verdadeira, dando ouvidos a “espíritos enganadores e a doutrina de demônios” (1Tm 4:1). E que eles “não suportarão a sã doutrina” (2Tm 4:3). Já o apóstolo Pedro predisse que surgiria dentro da igreja de Deus heresias destruidoras, introduzidas dissimuladamente por falsos mestres e profetas, difamariam “o caminho da verdade” (2Pe 2:1, 2).

Sob inspiração divina, Ellen G. White também previu que os pilares da fé adventista sofreriam ataques, notadamente a doutrina do santuário. Ela alertou que pessoas dentro da igreja impelidos por satanás tentariam bani-la da igreja. Ela escreveu:

“Os fundamentos de nossa fé […] estavam sendo retirados, pilar por pilar. Nossa fé nada teria sobre o que se apoiar – o santuário estava eliminado, a expiação descartada. […] Teorias sedutoras estão sendo ensinadas de tal modo que não as reconheceremos a menos que tenhamos um claro discernimento espiritual”.11

“Os homens tentarão introduzir novas teorias e tentarão provar que essas teorias são escriturísticas, conquanto sejam errôneas, as quais, se forem aceitas, comprometerão a fé na verdade. Não, não; não devemos desviar-nos da plataforma da verdade em que fomos estabelecidos”.12

Ela predisse ainda que a negação do claro ensino bíblico do santuário causaria a queda espiritual de alguns: “O inimigo introduzirá doutrinas falsas, tais como a de que não existe um santuário. Este é um dos pontos em que alguns se apartarão da fé”.13

Ao longo dos 176 anos de existência, diversos movimentos dissidentes e pessoas se levantaram dentro do movimento adventista para combater um ou outro ensino “da plataforma da verdade em que fomos estabelecidos”. Mas, possivelmente a doutrina do santuário tem sido objeto de mais ataques, críticas e debates tanto por adventistas quanto por não-adventistas, do que todas as outras facetas do seu sistema de crenças.

Os anais da história do povo do advento registram pelo menos oito líderes e professores de teologia influentes que questionaram a doutrina do santuário e acabaram abandonando a igreja de Deus. O primeiro líder a questionar a doutrina do santuário foi Dudley M. Canright em 1887. Deixou a igreja voluntariamente e tornou-se seu tão feroz oponente como havia sido seu defensor. Ele publicou o livro Seventh-day Adventism Renounced (O Adventismo do Sétimo Dia Renunciado), com o qual pretendia com falsos argumentos demolir os pilares da fé adventista. Seu livro foi traduzido em dezenas de línguas e ainda é usado por muitos líderes evangélicos para combater o adventismo. Depois dele vieram Albion F. Ballenger, em 1905; William W. Fletcher, em 1930; Louis R. Conradi, em 1928-1931; William W. Prescott, em 1934; Harold E. Snide, em 1945; R. A. Greive, em 1956. Mas, nenhum deles causou mais perplexidade, abalo e sofrimento na igreja do que o caso do teólogo Desmond Ford (1929-2019), quando há exatos 40 anos, ele resolveu abandonar a interpretação histórica adventista sobre o santuário.

Quem foi Desmond Ford?

Desmond Ford era australiano, foi professor e pastor adventista durante cinquenta anos. “Ford nasceu em uma família anglicana em Queensland, Austrália. Ele desenvolveu desde cedo o amor por livros e, aos 14 anos, começou a trabalhar no escritório de um jornal em Sydney. Um dos primos de seu pai era adventista do sétimo dia, que se interessou por Desmond. Ele foi batizado na Igreja Adventista do Sétimo Dia em 1946, aos 17 anos. Alguns meses depois, ele se demitiu de seu emprego na redação do jornal e, no início de 1947, começou seus estudos para o ministério no Avondale College. Ele foi um aluno brilhante e se formou no curso ministerial em 1950. Ele começou seu ministério em North New South Wales. Em 1952, ele se casou com sua namorada da faculdade, Gwen Booth, com quem teve três filhos (Elènne, Paul e Luke)”.14

Depois que Ford concluiu sua graduação em Teologia em 1958, a família foi enviada para os Estados Unidos da América, onde ele completou um mestrado no Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia e um doutorado em Retórica sobre as Epístolas de Paulo na Universidade Estadual de Michigan, EUA, em 1961; e outro Ph.D. em escatologia na Universidade de Manchester, Inglaterra, em 1972. Foi diretor do departamento de Teologia na Faculdade de Avondale College na Austrália durante mais de dezesseis anos. Fazia parte do Comitê de Pesquisa Bíblica Adventista na Austrália e os EUA. Ao longo de seu ministério escreveu 20 livros e cem artigos.

Ford era um teólogo brilhante, muito inteligente e influente na igreja. Seu grande conhecimento em escatologia deu-lhe grande notoriedade e prestígio na igreja. Seus comentários publicados sobre os livros de Daniel e o Apocalipse totalizam mais de duas mil páginas. Ele provavelmente dedicou mais estudos acadêmicos ao assunto e escreveu mais sobre ele do que qualquer outra pessoa na história. Era, deveras, uma estrela brilhante na constelação de teólogos denominacionais nas décadas de 1960 e 1970. Durante seu longo mandato como diretor do Departamento de teologia no Avondale College na Austrália, ele preparou cerca da metade dos ministros na Austrália. Na sala de aula e por exemplo pessoal, inspirou milhares de jovens para Cristo. Ele foi sempre procurado como orador, e milhares passaram a ter uma compreensão e apreciação mais claras do evangelho como resultado do seu testemunho.

Para espanto dos administradores, pastores e membros da igreja, no final da década de 1970, Desmond Ford começou a defender pontos de vistas contrários ao Santuário, ao juízo investigativo e ao dom profético de Ellen G. White. Ele afirmou categoricamente, entre outras coisas, que não existe um santuário físico no Céu, que não se podia provar biblicamente o juízo investigativo e que o dia antitípico da Expiação ocorreu no ano 31 A. D., quando, segundo ele, Cristo entrou no lugar santíssimo, não em 1844, e que este evento não envolve a obra do juízo investigativo, como afirma os Adventistas do Sétimo Dia e os escritos de Ellen G. White.

A controvérsia do Dr. Desmond Ford começou num encontro da Associação de Fóruns Adventistas, realizado no campos do Pacific Union College, numa tarde de sábado do dia 27 de outubro de 1979. Naquela dia, ele apresentou o tema: "O juízo Investigativo, Marco Teológico ou Necessidade Histórica?". Nesse discurso, Ford defendeu que não há juízo investigativo começando em 1844 como historicamente os adventistas defenderam. O que aconteceu em 1844, segundo ele, foi o surgimento do povo Adventista para proclamar o evangelho em sua plenitude, assim que todos que ouvirem serão julgados por sua resposta a mensagem do evangelho.

Este aberto desafio do Dr. Ford a posição longamente defendida pela igreja de Dn 8:14 e o juízo investigativo, bem como suas implicações de seu ponto de vista sobre a função e ensinos de Ellen G. White, criaram uma agitação nos círculos Adventistas. De modo que, Dr. Ford foi convidado pelos administradores da Pacific Union a se ausentar de suas responsabilidades de ensino no Pacific Union College durante um período de 6 meses, a fim de se dedicar à pesquisa e escrever seus pontos de vista para uma apresentação a uma comissão de estudo constituído por eruditos da Bíblia, professores e líderes da igreja a ser estabelecida pela Conferência Geral.

Dr. Ford e família mudaram para Washington, onde a Conferência Geral colocava um escritório a sua disposição, e abria os arquivos do White Estate e ajuda de secretária. Durante os primeiros 6 meses de 1980 ele produziu um documento de 6 capítulos de quase 1.000 páginas, mais precisamente 991 páginas, intitulado “Daniel 8:14, o Dia da Expiação e o Juízo Investigativo”. Durante esses seis meses, a comissão da Conferência Geral passou 50 horas acompanhando Dr. Ford fazendo-lhes algumas sugestões para serem incluídas no documento. Mas, para decepção de todos, ele tornou-se inflexível e não mudou um ponto sequer de sua posição.

Seu material denso foi encaminhado a uma comissão formada por 114 estudiosos representantes de todas as áreas da igreja: eruditos, professores, pastores, e administradores, que tinha a missão de analisar e discutir o documento. Este grupo foi convidado a encontrar-se nos dias 10 a 15 de agosto de 1980, no acampamento jovem de Glacier View da Associação do Colorado, para servir como o Comitê de Revisão do Santuário.

Durantes esses cinco dias, os delegados estudavam a Bíblia oravam, levantavam questões e sugeriam respostas. Houve algumas sessões de perguntas e respostas com o Dr. Ford. Nestas ocasiões apelos públicos diversos foram feitos dentro de um espírito cristão de respeito e cortesia. No dia 15 de agosto as reuniões terminaram, sem se conseguir que Dr. Desmond Ford acatasse a posição doutrinária da Igreja Adventista, defendida por este representativo grupo da igreja. Por conta disso, perdeu suas funções de ensino e do ministério pastoral, e suas credenciais como professor adventista foram removidas.

Todo esse triste episódio causou um forte abalo na igreja. Vários membros da igreja e alguns teólogos seguiram Desmond Ford, deixando de crer nas doutrinas do santuário celestial e do juízo investigativo. Diz-se que mais de 150 ministros ordenados, principalmente na Austrália, perderam suas credenciais ministeriais após o caso Ford. Centenas de pessoas leigas, principalmente nos Estados Unidos, deixaram a igreja. Mas, essa crise serviu para despertar nos pastores e membros da igreja no mundo todo a pesquisar mais a respeito do tema, bem como para rejeitar as ideias de Ford e reafirmar mais ainda o tema do santuário como doutrina pilar, e foi assim que a Igreja Adventista do Sétimo Dia superou mais uma crise teológica.

A cada crise que a igreja enfrenta cumprem-se com maravilhosa precisão as palavras da serva do Senhor: “A igreja talvez pareça como prestes a cair, mas não cairá. Ela permanece, ao passo que os pecadores de Sião serão lançados fora na sacudidura - a palha separada do trigo precioso. É esse um transe terrível, não obstante importa que tenha lugar”.15

Com a ajuda de alguns amigos adventistas, Ford estabeleceu um ministério independente chamado Good News Unlimited (Boas Novas Ilimitadas), com sede em Auburn, Califórnia. Por cerca de vinte anos, até sua aposentadoria em 2000, Ford viajou pelo mundo pregando e ensinando. Em 2000, ele e Gillian (sua segunda esposa, a primeira morreu de câncer de mama em 1970) voltaram para a Austrália para morar perto da casa de sua filha Elènne em Queensland. Ele permaneceu Adventista do Sétimo Dia e manteve sua carta como membro de uma congregação local. Morreu no dia 11 de março de 2019, aos 90 anos.

Em 1914, Ellen G. White previu que nos últimos dias muitos dirigentes abandonariam a igreja. Ela escreveu: “Muitas estrelas que temos admirado por seu brilho tornar-se-ão trevas”.16 Desmond Ford foi uma dessas estrelas, cujo brilho se apagou. Com isso, não estamos dizendo que Ford perdeu a salvação. Longe disso! Até porque mesmo deixando o ministério adventista ele continuou com seu relacionamento com Cristo e pregando sobre Seu amor. Ao afirmar que sua estrela se apagou, referimo-nos ao fato de que não mais exerceria seu ministério de pregação e ensino em nossas instituições, como fez antes, de forma brilhante, durante anos.

AS lições do caso Ford

Podemos encontrar algumas lições para todos nós na experiência de Ford. Cristo nos chamou para proclamar a verdade presente. Combatê-la é incorrer num grave erro que põe em risco nossa vida espiritual, o risco de “naufragar na fé”, como foi a dolorosa experiência de muitos no passado (1Tm 1:19). Precisamos estudar o relevante ensino do santuário nos livros proféticos de Daniel e Apocalipse com mais afinco, a fim de expandir nossos conhecimentos acerca as profecias do tempo do fim. O Espírito de Profecia nos orienta nesse sentido: “Como povo, devemos ser estudantes diligentes da profecia; não devemos sossegar sem que entendamos claramente o assunto do santuário, apresentado nas visões de Daniel e de João. Este assunto verte muita luz sobre nossa atitude e nossa obra atual, e dá-nos prova irrefutável de que Deus nos dirigiu em nossa experiência passada. Explica nosso desapontamento de 1844, mostrando-nos que o santuário a ser purificado não era a Terra, como supuséramos, mas que Cristo entrou então no lugar santíssimo do santuário celestial, e ali está realizando a obra final de Sua missão sacerdotal, em cumprimento das palavras do anjo, comunicadas ao profeta Daniel: "Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado." Dan. 8:14. [...] Deve o povo de Deus ter agora os olhos fixos no santuário celestial, onde se está processando a ministração final de nosso grande Sumo Sacerdote na obra do juízo - e onde está intercedendo por Seu povo”.17

Irmão(ã), você pode ser um cristão convertido ao Senhor Jesus, pode ser um fiel dizimista, um adventista vegetariano. Pode dar estudos bíblicos, ganhar almas, ser gentil e amoroso. Mas, se não tiver profundo conhecimento a respeito da data de 1844, se não tiver pelo menos uma compreensão ainda que rudimentar desse ensinamento, então não está adequadamente preparado para a sacudidura e o tempo de angústia. Se enfrentarmos o tempo de angústia com um conhecimento superficial acerca da data de 1844, do santuário, da expiação e do juízo investigativo, seremos levado como uma folha num furacão.

Obviamente, não estou defendendo a salvação pela teologia. Longe disso! A data de 1844, ou uma compreensão sobre a mesma, não salva-nos. A salvação é pela graça de Cristo, aceita pela fé pelo pecador arrependido (Ef 2:8-10). Contudo, se 1844 não for uma data bíblica, nossa mensagem é falsa: somos uma igreja falsa ensinando as pessoas por um caminho enganoso. Ou a data de 1844 é verdadeira e temos a verdade, ou é falsa e nós herdamos uma mentira e a temos pregado a 176 anos.

A despeito das crises, de nossa condição laodiceana, dos escândalos, de qualquer coisa, os ensinos sobre 1844 provam, além de qualquer dúvida, que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é a Igreja Remanescente da profecia bíblica, e que nossa mensagem constitui-se na “verdade presente” (2Pd 1:12). O juízo investigativo iniciado em 1844 – mais que o estado dos mortos, o sábado, o dom profético e a segunda vida de Cristo – estabelece a verdade do adventismo. Todas estas doutrinas são aceitas por uma ou outra denominação, mas os adventistas são os únicos que possuem a verdade do juízo investigativo. Enquanto não entendermos a verdade do santuário, percebendo que os adventistas são os únicos que a ensinam, não compreenderemos nossa verdadeiro chamado, nosso propósito ou missão.

Agora, ainda que tenhamos dificuldades em compreender alguns pormenores da interpretação tradicional da igreja acerca dessa profecia, precisamos ser fieis aquilo que Deus já nos revelou no passado, fruto de muita oração e estudo da Bíblia. É preciso concordar com a verdade que Ele nos revelou nas Sagradas Escrituras e não inventar nossas próprias verdades, nem nossa própria maneira de salvação.

Querido irmão(ã), não permita que a dúvida e a incredulidade ofusquem a luz de Deus em você ou destrua sua fé. Não combata os pilares postos por Deus em sua igreja. Quando Israel, o então povo de Deus, encontrava-se no cativeiro babilônico, Deus por meio do Seu profeta Jeremias enviou-lhe a relevante recomendação: "Coloque marcos e ponha sinais nas estradas, Preste atenção no caminho que você trilhou. Volte, ó Virgem, Israel! Volte para as suas cidades” (Jr 31:21, NVI). Quando recebeu essa mensagem, Israel encontrava-se em um estado de crise. Eles haviam quebrado os termos da aliança que Deus estabelecera e Ele, então, permitiu que os babilônios invadissem suas terras. Agora Deus quer restaurá-los e trazê-los de volta para casa. Então, Deus apelou a Israel para que pusesse “marcos” no caminho que eles haviam trilhado. Era um relacionamento com Deus e a obediência a essa recomendação divina que o levaria de volta em segurança para sua terra. Os israelitas precisavam seguir com alegria as recomendações de Deus, a fim de receberem a restauração.

Tal recomendação ainda é válida para o moderno Israel de Deus. As doutrinas da purificação do santuário celestial, o retorno pessoal, visível e pré-milenar de Jesus, o dever de guardar o sábado, o sétimo dia, e seu papel no grande conflito no contexto do tempo do fim, profetizado em Apocalipse 12-14, a mortalidade da alma, e o dom profético manifestado no ministério de Ellen G. White constituem-se nas chamadas colunas doutrinárias do adventismo. Também denominadas de “marcos” e os “pilares”, que, na verdade, são guias para o povo de Deus em sua jornada rumo ao lar eterno. Uma vez que essas crenças são “marcos”, elas formam o cerne inegociável da teologia adventista, não podendo ser removidas. É preciso ter a confiança de que Deus conduziu o adventismo no caminho progressivo da verdade presente.

Que o compassivo Salvador ajude a nos mantermos firmes na “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3), com plena confiança nEle.

Querido Deus e bom Pai que estás no Céu, muito obrigado por Tua bondosa guia. Ajuda-nos a vivermos sem separar-nos da profissão que fizemos no começo, quando ocorreu nossa reconciliação contigo. Tu tens conduzido e sustentado a Tua igreja através das crises ao longo das décadas. Ajuda-nos a apoiá-la com nossas orações, pregações, nossos recursos e até mesmo com a própria vida se Tu assim desejares.

Referências:

1. WHITE, Ellen G. Primeiros Escritos. 3ª. ed. Tradução de Carlos Alberto Trezza. Tatuí, SP: CPB, 1988, p. 260.

2. FORTIN, Denis, MOON, Jerry. Enciclopédia Ellen G. White. 1ª ed. Tatuí, SP: CPB, 2018, p. 1288.

3. RODÍGUEZ, Ángel Manuel. Santuário, in Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Editado por Raoul Dederen. Tradução de José Barbosa da Silva. 1ª ed. Tatuí, SP: CPB, 2011, p. 448, 449.

4. Ibdem, p. 453.

5. Nisto Cremos: As 28 Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia. 10ª ed. Tatuí, SP: CPB, 2018, p. 391.

6. WHITE, Ellen G., Evangelismo. 2ª ed. Santo André, SP: CPB, 1978, p. 221.

7. ______________. O Grande Conflito. 43ª. ed. Tatuí, SP: CPB, 2006, p. 423.

8. ______________. Primeiros Escritos. 3ª. ed. Tradução de Carlos Alberto Trezza. Tatuí, SP: CPB, 1988, p. 32, 33.

9. Revista Ministério Adventista, julho/agosto de 1971, p. 13.

10. Ibdem.

11. WHITE, Ellen G. Olhando Para o Alto [MM 1983], Santo André, SP: CPB, p. 146.

12. Ibdem, p. 93.

13. WHITE, Ellen G., Evangelismo. 2ª ed. Santo André, SP: CPB, 1978, p. 224.

14. Relembrando Desmond Ford. Disponível em: <https://www.adventistreview.org/remembering-desmond-ford>. Acesso em: 07 out. 2020.

15. WHITE, Ellen G. Mensagens Escolhidas. 3ª ed. Tatuí, SP: CPB, 1988, v. 2, p. 380.

16. ______________. Profetas e Reis. 8ª ed. Tatuí, SP: CPB, 2007, p. 188.

17. ______________. Evangelismo. 2ª ed. Santo André, SP: CPB, 1978, p. 222 e 223.