Teologia

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A CRUZ E O SANTUÁRIO


Wilson Paroschi*

Por que precisamos das duas coisas?

Em seu livro Right With God Right Now, Desmond Ford argumenta que a expiação foi completada na cruz e que não há necessidade de ações subsequentes no santuário celestial, pois a salvação é plenamente experimentada pelo crente. Usando como base Romanos 3:21-26, ele enfatiza que Deus não poderia ter perdoado o pecado enquanto sua penalidade não estivesse paga, de modo que a cruz foi necessária para habilitá-Lo a perdoar. Não é que Deus seja controlado por leis fora dEle mesmo, Ford argumenta. Absolutamente não! Deus é controlado pelo que Ele é, significando que Sua lei é nada mais que a expressão exterior do Seu próprio caráter. Portanto, a cruz foi necessária, Ford conclui, e sobre ela, Aquele contra quem o ser humano pecou pagou a penalidade, a fim de que o pecador pudesse ser perdoado e salvo.1

A despeito das muitas dificuldades que Romanos 3:21-26 envolve, a interpretação de Ford dessa passagem não apresenta grandes problemas. Porém, acaso seria possível concluir, a partir dela, que a cruz foi o lugar em que a expiação se completou e que a cruz é tudo o que Deus necessita para a nossa salvação? É o ministério de Jesus no santuário celestial, conforme defendido pela teologia adventista do sétimo dia, uma contradição ao que Ele realizou no Calvário, ou algo que rouba do crente a segurança da salvação aqui e agora?2

Considerações preliminares

Por causa da maneira pela qual Romanos 3:21-26 resume o conceito de Paulo sobre a justificação pela fé, esses versos têm sido descritos como “o centro e o coração” da epístola aos Romanos.3 A passagem aparece depois de uma longa seção na qual o apóstolo deixa absolutamente claro que toda a humanidade, tanto judeus como gentios, foi afetada pelo pecado e, por isso, é culpada diante de Deus (Rm 1:18–3:20). Porém, há boas notícias: A justiça salvadora de Deus foi extraordinariamente revelada na morte expiatória de Jesus Cristo, como a única resposta possível para o drama humano causado pelo pecado (v. 21-26). Porém, tal resposta é efetiva unicamente para aqueles que creem (v. 22). A fé não é a condição para a justificação, mas é o instrumento por meio do qual o pecador recebe a justificação.4 Toda jactância, portanto, é excluída (v. 27). A fé estabelece a incapacidade – não a nulidade – da lei (v. 31); consequentemente, da autoconfiança humana em qualquer tipo de realização moral (v. 28, 29).

Ao falar a respeito da morte de Jesus – “Seu sangue” (v. 25) sendo uma clara referência a ela – Paulo utilizou duas metáforas para explicar sobre qual base Deus justifica o pecador. A objeção implícita parece óbvia: Como pode um Deus justo justificar o ser humano injusto sem comprometer Sua justiça? A resposta vem, primeiramente, sob a metáfora de redenção (apolytrósis; v. 24), que era aplicada a escravos comprados no mercado para que fossem postos em liberdade. Quando isso acontecia, dizia-se que eles haviam sido redimidos (Lv 25:47-55). A mesma metáfora também é usada no Antigo Testamento, com relação ao povo de Israel que havia sido redimido tanto do cativeiro egípcio quanto do cativeiro babilônico (Dt 7:8; Is 43:1). Semelhantemente, aqueles que estiveram escravizados pelo pecado e completamente incapazes de se libertar a si mesmos foram redimidos por Deus, ou comprados do cativeiro, por meio do sangue de Jesus, que foi derramado como preço pelo resgate (Mc 10:45; 1Pe 1:18, 19; Ap 5:9).

A segunda metáfora é propiciação ou expiação (hilastérion; Rm 3:25), tomada do contexto litúrgico – mais precisamente, sacrifício. Propiciação ou expiação aponta para o sacrifício substitutivo da morte de Jesus no sentido de que Ele voluntariamente experimentou na cruz toda a intensidade da ira de Deus contra o pecado (Rm 1:18; 5:9; 1Ts 1:10).5 Assim, Ele fez a reconciliação entre o pecador e Deus. A morte é o salário do pecado (Rm 6:23; cf Ez 18:20). Assim como, segundo o Antigo Testamento, o animal sacrificado tomava o lugar do pecador e morria em seu lugar (Lv 17:10; cf Gn 22:13), também a morte de Jesus foi o perfeito sacrifício antitípico que liberta da maldição da lei aqueles que creem (Gl 3:10, 11, 13; cf 2Co 5:14, 15; Hb 2:9) e os reconcilia com Deus. Havia diversos sacrifícios na vida religiosa de Israel, e todos eles tiveram seu cumprimento no sacrifício de Jesus, feito uma vez por todas (He 9:12,26-28; 10:12), “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29; cf Is 53:5, 6).

Justiça de Deus

Talvez, a questão mais controversa em nossa passagem seja entender se a justiça de Deus, ou “Sua justiça” (v. 25, 26) tem o mesmo significado nos versos 21 e 22. A interpretação tradicional, que aparentemente se encaixa melhor no contexto, é que, naqueles versos, dikaiosyné autou se refere a um atributo de Deus, significando que Deus é justo, enquanto nos versos 25 e 26 ela deve ser entendida como um dom de Deus, a justiça que Ele atribui àqueles que creem.6 Sendo assim, os versos 25 e 26 diferem dos versos 21 e 22 no sentido de que Paulo não está falando sobre o que Deus fez para justificar o pecador, mas a respeito do que Ele fez para justificar, ou vindicar, a Si mesmo.

Em outras palavras, o que Paulo faz aqui é apresentar um argumento racional para a necessidade da morte de Jesus. É por isso que ele usa o termo forense endeixis (“prova”, “demonstração”) duas vezes nesse contexto (v. 25, 26), ao passo que no verso 21 ele usa a forma passiva do verbo phaneroó (“revelar”, “tornar conhecido”). Esses dois termos não são equivalentes. Enquanto phaneroó enfatiza o que é revelado, isto é, o próprio sujeito do verbo, logo a voz passiva – exatamente como no caso de apokalyptó em 1:17 – endeixis sempre aponta a alguma coisa diferente (cf 2Co 8:24), tentando estabelecer sua validade ou compelindo sua aceitação como verdade.7

Portanto, a ideia é que Deus enviou Jesus Cristo como hilastérion
[propiciação] “no presente” (v. 26, o tempo da morte histórica de Jesus, com a finalidade de provar Sua justiça porque, em Sua “tolerância” (anoché), Ele “passou por alto” (paresis) os pecados anteriormente cometidos (v. 25).8 De acordo com Paulo, ao fazer isso, Deus criou um problema legal para Si mesmo, pois um Deus justo não pode simplesmente “inocentar o culpado” (Êx 34:7; cf Dt 25:1). Se Ele assim o faz, pode ser acusado de ser conivente com o mal, o que é a negação de Sua própria natureza.9 Mas, como foi exatamente que Deus passou por alto os pecados anteriores?

De acordo com a interpretação tradicional, que remonta a Anselmo de Canterbury no século onze, Deus não passou por alto os pecados, ao não puni-los.10 Mas, aparentemente há um problema aqui, pois como pode a cruz provar a justiça de Deus em relação aos pecados anteriormente cometidos e não punidos? A menos que Paulo esteja se referindo àquelas pessoas que foram justificadas por Deus, o argumento não faz sentido. Porém, temos apenas que nos lembrar do seguinte: (1) Os pecados não são punidos hoje, mais do que o eram antes; (2) todos os pecadores dos tempos do Antigo Testamento, mais cedo ou mais tarde, deixaram de existir; o que de certa forma poderia significar que eles na verdade foram punidos. (3) Nos tempos do Antigo Testamento, Deus nem sempre deixou impunes os pecados, como o próprio Paulo afirmou (Rm 1:24-32; cf 5:12-14; 6:3; 7:13; 1Co 10:5, 8, 10).

Portanto, o apóstolo parece ter em mente os pecadores arrependidos que foram justificados por Deus antes da cruz. A evidência para isso, além de endeixis, é a ligação da justiça de Deus com Seu direito de justificar (v. 26). Então, a ideia não é simplesmente que Deus reteve a punição dos pecados quando Ele deveria tê-la imposto, mas que Ele passou por alto tais pecados, ao justificar, sem respaldo legal por assim dizer (cf Hb 10:4), aqueles que os cometeram.11 Por exemplo, esse foi o caso de Abraão e Davi (cf Rm 4:1-8). Ao perdoar pecados em um tempo em que o sangue propiciatório ainda não havia sido derramado (ver Hb 9:15), Deus colocou Seu próprio caráter em jogo, suscitando sérias dúvidas a respeito de Sua suposta justiça (Sl 9:8; Is 5:16).

Assim, se a intenção de Deus ao apresentar Jesus Cristo como hilastérion foi demonstrar Sua justiça, de modo que “no tempo presente” Ele possa ser “justo e justificador” daqueles que creem em Jesus (Rm 3:26), isso parece implicar que nos tempos anteriores Ele teria sido somente uma dessas duas coisas – somente justificador, sugerindo que Ele não era justo quando agia como tal. A noção de Deus não agindo com justiça, ou não sendo justo, parece soar como blasfêmia, porém, esse é exatamente o significado das palavras de Paulo nessa passagem. Ele usou a linguagem forense para descrever as implicações da maneira pela qual Deus tratou com os pecados no passado e, por extensão, também no presente, pois não há dúvida de que o pecado é um problema humano, mas, uma vez perdoado, torna-se um problema divino. Deus é quem tem que prestar contas por ele. Talvez, nada exista mais contraditório à Sua santidade e justiça que Seu ato de justificar o ímpio (Hb 4:5). Mas a Bíblia deixa claro que Deus também é amor, e a tensão entre amor e justiça foi resolvida na cruz (Rm 5:6-11).

Perdão e eliminação de pecados

Se uma coisa está clara em Romanos 3:21-26, é que a cruz dá a Deus o direito de perdoar e justificar. A cruz é tudo o que Deus necessita para implementar salvação. Na cruz, todos os sacrifícios do Antigo Testamento encontraram seu cumprimento, incluindo o que era oferecido no Dia da Expiação. Então, por que necessitamos de uma doutrina do santuário celestial, conforme é reivindicado pelos adventistas do sétimo dia?

A palavra grega hilastérion também é usada no Novo Testamento para a tampa de ouro sobre a arca da aliança no lugar santíssimo do santuário israelita (Hb 9:5; cf Êx 25:17-22). A arca era o supremo símbolo da presença de Deus entre Seu povo. Usualmente chamada de “propiciatório”, essa tampa, sombreada pelas asas de dois querubins, era de fato o lugar em que se realizava a segunda fase do ritual da propiciação – ou expiação.12 Na primeira fase, os pecados eram perdoados e transferidos para o santuário (Lv 4:3-7, 13-18, 22-25, 27-30). Na segunda fase, que ocorria uma vez anualmente, no Dia da Expiação, o santuário era purificado de tais pecados (Lv 16:15-19). Na verdade, o Dia da Expiação não tratava de perdão; o termo não ocorre em Levítico 16 e nem em 23:27-32. O Dia da Expiação era a ocasião em que o santuário e o povo eram purificados, e os pecados finalmente e definitivamente eliminados (Lv 16:29-34; 23:27-32).

Portanto, perdoar pecados e eliminar pecados não são a mesma coisa. O perdão, que era real e efetivo, era conseguido por meio dos sacrifícios regulares (Lv 17:10, 11), quando os pecados eram transferidos para o santuário, isto é, para o próprio Deus. “Deus assume a culpa dos pecadores para declará-los justos. Se Deus perdoa pecadores, Ele assume a culpa deles.”13 Porém, os pecados necessitavam ser apagados, e isso era feito no Dia da Expiação. Duas coisas, então, devem ser vindicadas: o direito de Deus para perdoar e a aptidão do pecador para ser perdoado, que nada mais é que sua fiel aceitação do perdão de Deus.

Em outras palavras, o perdão tem dois lados: o lado daquele que o oferece e o lado daquele que o recebe. No que se refere à salvação, os dois lados devem ser vindicados: o lado de Deus, do contrário Ele podia ser acusado de arbitrariedades; e o lado humano, senão o resultado seria universalismo, que é a ideia de que toda a humanidade finalmente será salva. Se a salvação é pela fé, ela necessita ser aceita. Portanto, assim como o sacrifício vindica a prerrogativa de Deus para perdoar (Rm 3:25, 26), uma espécie de investigação é necessária, a fim de demonstrar que o perdão foi verdadeiramente aceito. Somente quando os dois lados do perdão são clara e plenamente vindicados, pode a culpa – a responsabilidade legal – ser finalmente retirada do próprio Deus.

É por isso que necessitamos de ambos, a cruz e o santuário, o sacrifício e o Dia da Expiação. Naquele dia, o mais importante do calendário religioso de Israel, visto que marcava a purificação final do santuário e do povo, era exigido que todos cessassem suas atividades e se humilhassem em plena submissão a Deus (Lv 23:27). Aqueles que não seguissem as instruções, o que implica alguma forma de escrutínio, eram eliminados do meio do povo e destruídos, mesmo que tivessem sido perdoados anteriormente (v. 29, 30).

Na cruz, o próprio Deus levou sobre Si o castigo do pecador (1Co 15:3; 2Co 5:14, 15; 1Pe 2:24; 3:18). Ele pagou o preço do resgate e derramou o sangue propiciatório para nossa salvação. Essa é a razão pela qual Jesus teve que morrer, para que fôssemos salvos. No santuário, o compromisso do crente para com Deus é verificado, de modo a demonstrar que Ele agiu corretamente em perdoar esta ou aquela pessoa. De maneira nenhuma a cruz pode demonstrar que Deus é justo quando Ele justifica um pecador individual – o lado humano do perdão. A cruz dá a Deus o direito de perdoar. Como sacrifício de expiação, a cruz foi perfeita e completa, mas apenas isso não pode vindicar a genuinidade de nossa fé em Jesus Cristo como nosso Salvador. É necessário algo mais – para trazer expiação à sua fase final – e é aqui que o santuário entra em cena.

Então, o santuário não tem nada que ver com obras, assim como o perdão também não o tem. O apóstolo Paulo é absolutamente claro sobre isso em Romanos 8:31-39. Quando são acusados de inelegibilidade para a salvação por causa de seus pecados, aqueles que depositaram sua confiança em Jesus podem descansar na segurança de que Ele está intercedendo em favor deles diante de Deus. Eles nada têm a temer, pois nada existe nem ninguém que seja capaz de separá-los “do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (v. 39; cf 1Jo 1:9).

A salvação não ocorre uma vez para sempre; mas fora de nós mesmos, nada existe em todo o Universo que possa nos afastar da salvação de Deus (cf Jo 6:37). “Sendo assim, aproximemo-nos de Deus com um coração sincero e com plena convicção de fé... Apeguemo-nos com firmeza à esperança que professamos, pois aquele que prometeu é fiel” (Hb 1:22, 23). Essa é a mensagem do santuário.

*Wilson Paroschi, é professor de Teologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo, Engenheiro Coelho, SP.

Referências:

1. Desmond Ford, Right With God Right Now: How God Saves People as Shown in the Bible’s Book of Romans (Newcastle: Desmond Ford, 1999), p. 43-55. Num determinado ponto de sua discussão, Ford também reage contra a assim chamada Teoria da Influência Moral, segundo a qual a cruz não era realmente necessária, que a morte de Jesus não foi senão um gesto de Deus, para mostrar que Ele nos ama, o que significa que Ele podia ter perdoado pecados sem a cruz (44-48). Entretanto, o principal argumento de Ford é que “o antigo Dia da Expiação nada tem que ver com o século 19. Ele aponta para a cruz de Cristo. Foi ali que a expiação final e completa foi realizada. O Calvário foi o único lugar de completa expiação. Nós olhamos apenas para o Calvário, não para um evento ou data inventada pelo homem” (55), Sobre a Teoria da Influência Moral, ver também John R. W. Stott, The Cross of Christ (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1986), p. 217-226.

2. Este artigo segue a interpretação reformada tradicional quanto à doutrina de Paulo sobre justificação, particularmente com respeito a questões como “obras da lei” (Rm 3:20; Gl 2:16; 3:2, 5, 10), que se referem ao conceito de que o favor de Deus é conquistado por meio de boas obras e obediência a todas as prescrições da lei; bem como à expressão pistis Christou (Rm 3:22, 26; cf Gl 2:16, 20; 3:22; Fp 3:9), que é compreendida como “fé em Cristo”, antes que “fé [plenitude] de Cristo”, conforme é argumentado pela assim chamada Nova Perspectiva Sobre Paulo. A respeito disso ver Thomas R. Schreiner, New Testament Theology: Magnifying God in Christ (Grand Rapids: MI Baker, 2008), p. 528-534.

3. C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans (Edinburgh: T&T Clark, 1975), p. 199.

4. “Fé é o olho que olha para Ele [Cristo], a mão que recebe Seu dom gratuito, os lábios que bebem a água da vida”; John R. W. Stott, Romans: God’s Good News for the World (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1994), p. 117.
5. Ver Mark D. Baker e Joel B. Green, Recovering the Scandal of the Cross: Atonement in New Testament and Contemporary Contexts (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2011), p. 45-49, 70-83.

6. D. A. Carson, The Glory of the Atonement: Biblical, Theological and Practical Perspectives (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2004), p. 124, 125, 138.

7. BDAG, p. 332.

8. Tem havido esforços no sentido de se traduzir paresis como “perdão”. A maioria dos intérpretes, porém, está convencida de que não existe suficiente apoio léxico para essa tradução. Ver, por exemplo, Sam K. Williams, Jesus’s Death as Saving Event: The Background and Origin of a Concept (Missoula, MT: Scholars Press, 1975), v. 2, p. 23-25.

9. Conforme disse William Barclay, “o natural seria dizer: ‘Deus é justo, portanto, condena o pecador como um criminoso’”; The Letter to the Romans (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 1975), p. 69.

10. Leon Morris, The Epistle to the Romans (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1988), p. 183.

11. “Deus ‘adiou’ a retribuição completa devida aos pecados na Antiga Aliança, permitindo que pecadores estivessem diante dEle sem que uma adequada ‘satisfação’ dos requerimentos de Sua santa justiça fosse provida”; Douglas Moo, The Epistle to the Romans (Grand Rapids, MI: 1995), p. 240.

12 Por causa disso, em muitas línguas modernas, hilastérion em Hebreus 9:5, bem como no equivalente hebraico em Êxodo 25:17 21 e outras passagens do Antigo Testamento (kappóret) é traduzida como “propiciatório”, conforme Jerônimo fazia na Vulgata Latina. A palavra “propiciatório”, que é mais uma interpretação do que tradução, foi introduzida por William Tyndale, sob a influência do termo alemão gnadenstul, da Bíblia de Lutero. 13 Martin Pröbstle, Where God and I Meet: The Sanctuary (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2013), p. 55.

FONTE: Revista Ministério, Nov-Dez 2014, p. 10-13.

domingo, 2 de setembro de 2018

UM LUGAR NA HISTÓRIA


Elijah Mvundura*

O papel do adventismo, com sua mensagem apocalíptica, no atual momento da história do mundo

O adventismo surgiu no século19, com a missão de pregar “o evangelho eterno... aos que habitam na terra, a toda nação, tribo, língua e povo” (Ap 14:6). Conforme de maneira notável diz George Knight, “impelido por uma visão apocalíptica extraída do coração do livro de Apocalipse”, vendo todo o mundo como seu campo missionário, os adventistas do sétimo dia “se tornaram o mais disseminado grupo protestante unificado na história do cristianismo”.1

Porém, hoje, conforme ele lamenta, “o adventismo, em grande medida, tem perdido o fundamento apocalíptico de sua mensagem”.2 Entretanto, perder a visão apocalíptica diante dos problemas que afligem o mundo nestes últimos dias é inaceitável. Todos os problemas globais pulsam com notificação de catástrofes: distúrbios no Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão; política nuclear do Irã; problemas econômicos mundiais, calamidades naturais, entre outras coisas. A fim de compreender a profundidade da atual crise econômica, devemos notar os fundamentos das nossas instituições políticas e econômicas no século 19. Elas já não podem suportar as estruturas do século 21.

Desintegração da velha ordem

De acordo com o que foi realçado em uma recente edição da revista National Interest, especializada em assuntos internacionais, a velha ordem continua a se desintegrar. “Estamos vivendo em um período de transição”, escreveram os editores, transição para uma incerta nova ordem.3 Na matéria de capa, Brent Sowcroft, ex-consultor para segurança nacional dos presidentes Gerald Ford e George W. Bush, chamou a atenção para o fato de que a crise financeira de 2008 “demonstrou que tínhamos um único sistema financeiro mundial, no qual uma crise em uma área poderia rapidamente se espalhar através do mundo. Mas o mundo evidentemente não tinha uma única maneira global de administrar aquela crise”.4 E, sem “uma única maneira global” de resolver os problemas, “a única questão” que os editores inflexivelmente notaram foi: “Quanta ruptura, quanto caos e derramamento de sangue ainda marcarão a transição da velha ordem para o que quer que surja para substituí-la?”5

Entretanto, o ponto crucial do problema é que, por causa das rupturas e do caos, transições de uma velha ordem para uma nova, historicamente, têm sido acompanhadas de fortes movimentos espirituais ou reavivamentos. Aparentemente, quando se encontram diante de situações desesperadoras, os seres humanos recorrem a meios muitas vezes insólitos. Se a racionalidade falha, de acordo com o que afirmou Ernst Cassirer, “permanece sempre a última razão, o poder do miraculoso e misterioso”.6 Foi assim que as religiões de mistério apareceram nos impérios grego e romano. Gnosticismo, neoplatonismo, hermetismo e cabala, que somadas à tradição mística ocidental, surgiram contra o pano de fundo do colapso econômico do Império Romano.

 O ocultismo também voltou à tona quando o Renascimento e a Reforma abalaram o universo medieval. O ocultismo inundou a Europa no início do século 18, seguindo difíceis mudanças culturais e sociais produzidas pelo surgimento do capitalismo industrial. Mais recentemente, em nossa história, a excitação da espiritualidade fundamentalista no judaísmo, cristianismo e islamismo, no início do século 20, esteve intimamente ligada à crise da modernidade e à derrocada do secularismo.

Todos esses movimentos espirituais ou reavivamentos, a despeito de seus diferentes contextos históricos, geográficos e sociais, para não mencionar as diferenças fundamentais de crenças, partilha uma saliente característica: a paixão por misturar fragmentos de um mundo em desintegração a fim de construir uma ordem sociorreligiosa unificada. A paixão por uma ordem divina explica por que fundamentalistas judeus, cristãos e islâmicos são um em sua aversão ao pluralismo democrático, em particular à separação entre religião e política. Mas, uma ordem todo-abarcante, que não separe religião de política remete ao sagrado primitivo, quando o humano e o divino, o visível e o invisível, fundiam-se ou, mais precisamente, confundiam-se. Se essa confusão proveu uma cobertura perfeita para que o diabo brincasse de Deus, achamos altamente significativo que o mito da unidade primitiva seja o meta-mito de todas as religiões pagãs e fale de um tempo em que seres humanos, natureza e deuses partilhavam um universo.

Paixão de Babel

De fato, na Bíblia, a proposta de unidade em Babel não foi apenas negada por Deus, mas Babel se tornou o típico símbolo de rebelião contra Ele, de uma unidade global alinhada contra o Criador. Historicamente, podemos localizar essa unidade desde o sagrado primitivo, passando pelos antigos impérios, cristandade medieval, até as épocas de Napoleão, Hitler e Stálin. No âmbito filosófico, a mesma paixão por unidade pode ser traçada desde a filosofia grega, passando pelo escolasticismo medieval e o todo abrangente sistema dos racionalistas do século 17, dos idealistas e positivistas do século 19. Na verdade, houve uma mudança radical com Descartes, o pai da filosofia moderna, mudança apreendida em seu axioma fundamental: Cogito ergo sum, ou seja: “Penso, logo existo”. Uma paródia do divino “Eu sou o que sou”, destronando Deus e deificando a mente humana, tornando a razão o fundamento da realidade e da verdade.

A ambição de Descartes foi a de elaborar uma ciência universal que “conquistaria a natureza e subjugaria o Deus onipotente”.7 Conforme ele mesmo afirmou: “Agora, o livre-arbítrio é, em si mesmo, a coisa mais nobre que podemos ter, porque nos torna de certa forma iguais a Deus e nos isenta de ser Seus súditos.”8

Ao deificar a razão, Descartes desencadeou as paixões egomaníacas que modelariam o Iluminismo do século 20. Nessas paixões, o demonismo se tornou perceptível na década anterior a 1789 e tomou forma ideológica concreta durante a Revolução Francesa. Conforme assinalou Robert Darnton, muitos líderes-chave da Revolução eram escravos do magnetismo animal ou mesmerismo, a crença de que um “fluido” magnético corria através de todos os corpos no Universo e podia ser invocado para curar enfermidades físicas e sociais. A fim de invocar esse poder invisível, os líderes praticavam inúmeras artes de magia negra, como por exemplo, comunicação com os mortos, alma, espíritos distantes, além de sonambulismo.9

Esse pungente espiritualismo explica a razão pela qual a Revolução Francesa, conforme foi mencionado por Alexis de Tocqueville, “embora ostensivamente política em sua origem, funcionou em várias direções e assumiu muitos dos aspectos de uma revolução religiosa”. Mais uma vez a paixão era totalitária. A ambição “não era simplesmente a de uma mudança no sistema social da França, mas... uma regeneração de toda a humanidade”.10 Essa arrogância na intenção de “transformar o mundo e a natureza humana”, nas palavras de Eric Voegelin, um dos mais notáveis cientistas políticos do século 20, “alcançou sua mais obsessiva e lasciva profundidade no século 19”.11

 O Homem se torna Deus

O grande alvo dos românticos, pensadores e artistas que estabeleceram o tom cultural do século 19, era criar uma nova mitologia e uma Bíblia para o mundo moderno – uma mitologia que reunificaria os seres humanos com a natureza e recriaria o tipo de coesão social similar à antiguidade pagã ou à cristandade medieval. A ambição era reencantar o mundo, reanimá-lo com mistério e magia. Nesse mundo reencantado, artistas, semelhantes aos antigos sacerdotes pagãos, ou medievais, seriam os novos sacerdotes. Com isso, atacando a posição de Cristo como nosso único “Mediador entre Deus e os homens” (1Tm 2:5), a revista Athenaeum declarou: “Somente o preconceito e a presunção mantêm a ideia de que existe apenas um mediador... entre Deus e o homem.”12 Devido à sua capacidade criativa, os artistas também seriam mediadores. Eles são “deuses em forma humana”, disse Lavater, ou um “deus dramático”, conforme Herder.13

Novalis destituiu o próprio Deus, vociferando: “Vi que agora, na Terra, os homens devem se tornar deuses.” A respeito de si mesmo, ele disse: Gott ist Ich! (“Deus sou eu!”).14 Por sua vez, Shelley disse: “Vamos crer em um tipo de otimismo no qual nós somos nossos próprios deuses.”15

Essa autodeificação levou intelectuais do século 19 a filosoficamente matarem Deus, eliminando-O completamente. Como Nietzsche intempestivamente blasfemou: “Deus morreu... E nós O matamos.”16 Então, eles transferiram todos os atributos e prerrogativas de Deus para todos os abrangentes sistemas metafísicos – sistemas nos quais atribuíam a eles mesmos papéis divinos. Hegel é um exemplo clássico dessa atitude. Ele absorveu Deus no Espírito Absoluto (Geist), o conceito central, ou mais precisamente, o protagonista de todo o seu abarcante sistema filosófico. O Geist abrange toda a natureza e toda a História, une o finito com o infinito e reconcilia todas as contradições, até mesmo o bem com o mal. Antecipando a teoria da evolução, Hegel invocou o Geist como autocriado, independente, autossustentável e autoevoluído. Entretanto, a evolução é histórica; um processo no qual o Geist, começando com os gregos e atingindo o topo na mente de Hegel, atinge o conhecimento absoluto e se torna consciente de si mesmo como Deus na mente dos filósofos.

O hegelianismo, conforme reelaborado por Feuerbach, Marx e outros, sustentava que o homem é Deus, e nada existe além da matéria. Darwin apoiou esse materialismo, ao pretender explicar um projeto (criação) sem projetista (Criador). Se a seleção natural eliminou totalmente o Deus Criador, o materialismo histórico eliminou Deus da História e da sociedade. Na conjectura desses reinos naturais e sociais sem Deus, Marx e Darwin concretizaram a ambição de Descartes quanto a uma ciência universal que destrona Deus e liberta o ser humano do Seu senhorio. Na verdade, a lógica das ciências sociais é transformar e dirigir a sociedade conforme as leis científicas sem referência a Deus. Mas, segundo o argumento de Voegelin, ao usar a ciência como meio de transformar a humanidade, muito além dos seus próprios limites, cientistas sociais, à semelhança de Marx, transformaram a ciência em uma forma de religião esotérica.

De acordo com Voegelin e conforme outros eruditos revelaram recentemente, ao tornar a ciência em religião, deificando o eu e matando Deus, os pensadores do século 19 foram profundamente inspirados pelo antigo gnosticismo e hermetismo.17 Se a busca da divindade é primordial – evocando a mentira da serpente, no Éden: “Serão como deuses” (Gn 3:12) – os pensadores do século19 magnificaram essa mentira em todos os sistemas abrangentes. Porém, considerando que o ser humano é finito, vê e sabe apenas em parte (1Co 13:12), os sistemas abrangentes são sempre reducionistas, eles diminuem a realidade para o que pode ser alcançado.

Na medida em que o reducionismo exclui Deus, esse é um empreendimento profundamente espiritual contra rogos e advertências divinas. Em outras palavras, o reducionismo envolve uma obstinada resistência a Deus. Nessa resistência, de acordo com Voegelin, o pensador se torna cônscio da inverdade de sua especulação, mas persiste. E a persistência no engano criado da revolta contra Deus mostra ser seu motivo e propósito. Realmente, continuando “no pleno conhecimento do motivo da revolta, o engano finalmente se torna ‘falsidade demoníaca’”.18 Esse engano demoníaco, que tem seduzido o mundo (Ap 12:9), estruturou a filosofia do século 19 e definiu o ateísmo ou revolta contra Deus.

 Revivificando a visão

Contra essa revolta, o surgimento do adventismo no século 19, com uma mensagem extraída do coração do Apocalipse, foi providencial. O chamado para temer, adorar e dar glória ao Deus Criador nega claramente a blasfema autodeificação do homem naquele século (Ap 14:7). Se o chamado evangélico a “a toda nação, tribo, língua e povo” (v. 6) confirma a diversidade e lembra a negação de Deus feita por Babel e sua pretendida manutenção da unidade primitiva, a explícita injunção para adorar “Aquele que fez os céus, a terra, o mar e as fontes das águas” (v. 7) alude às distinções de Deus inscritas na criação e desafia diretamente as paixões totalitárias daquele século.

A queda de Babilônia salienta o vazio da insolência humana, de seu esforço para unificar todas as coisas v. 8). A pungência da “ira de Deus” (v. 10) deve ser considerada contra a criminosa violência que tem acompanhado os projetos totalitários. Ao perseguir suas utopias, a descendência da filosofia do século 19 – fascismo e comunismo – mataram mais de 140 milhões de pessoas. E até 1989, o sistema global americano pós-guerra foi uma reação defensiva aos horrores do fascismo e o espectro do comunismo. Evidentemente, o século 19 lançou uma longa sombra sobre o século 20. A extensão da sombra reanima o encontro profético de 1844 como o início do Juízo Pré-Advento e o tempo do fim. O quebra-cabeça profético está se encaixando. O comunismo faliu em 1989 e agora o capitalismo está em profunda crise, enfraquecendo a liderança global americana. Com muita pertinência, Pierre Manent, eminente filósofo francês, projetou um papel global-chave para a Igreja Católica. Ele escreveu: “Ela é o centro do qual e para o qual a constelação espiritual da humanidade está ordenada.”19 “Ao se referir à atual crise global, o papa Bento XVI, em 2009, na encíclica Caritas in Veritate, que cheira a cristianismo medieval, chamou a atenção para o estabelecimento de uma “verdadeira autoridade política” para controlar o capitalismo e trabalhar pelo bem universal.”20

O anseio humano por um governo justo e veraz é profundo e primordial. E o demônio sempre tem explorado esse anseio para estabelecer seu domínio. Daí, a irrupção do mordaz espiritualismo e o impulso coercitivo em busca de respostas unificadas e totalitárias durante catástrofes sociais. Contra esse miasma satânico o desafio é manter as distinções inscritas por Deus entre o sagrado e o profano, o político e o religioso, o natural e o sobrenatural. Somente Deus pode unificar, e certamente o fará, todas as coisas. Na realidade, o coração da esperança adventista – o coração que devemos reanimar com fervor apocalíptico – é que somente Deus tem a solução final para os problemas do mundo, “isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos” (Ef 1:10).

Em sentido oposto, qualquer sistema que se reivindicar detentor da solução final para os mistérios da História e tentar unificar tudo e todos é identificado como Babilônia e seu líder, o anticristo.

*Elijah Mvundura,  é escritor, reside em Calgary, Canadá.

Referências:

1 George Knight, The Apocalyptic Vision and the Neutering of Adventism (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2008), p. 14.

2 Ibid.

3 National Interest, maio-junho 2012, p. 5.

4 Ibid., p. 8.

5 Ibid., p. 6

6 Ernst Cassirer, The MIth of the State (New Haven, CT: Yale University Press, 1946), p. 279.

7 Michael Allen Gillespie, Nihilism Before Nietzsche (Chicago: University of Chicago Press, 1995), p. 34.

8 Descartes, citado in Charles Taylor, Sources of the Self: The Making of the Modern Identity (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989), p. 147.

9 Robert Danton, Mesmerism and the End of the Enlightenment in France (Berlin: Schoken Books, 1968).

10 Alexis de Tocqueville, The Old Regime and the France Revolution, tradução de Stuart Gilbert, (Nova York: Anchor Books, 1955), p. 11-13.

11 Ted V. McAllister, Revolt Against Modernity: Leo Strauss, Eric Voegelin and the Search for a Postliberal Order (Lawrence, KS: University Press of Kansas, 1995), p. 126.

12 Athenaeum, citado in Liah Greenfeld, Nationalism: Five Roads to Modernity (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992), p. 328.

13 Ibid., p. 336

14 Novalis, citado in Nicholas V. Riasanovsky, The Emergence of Romanticism (Oxford: Oxford University Press, 1992), p. 80.

15 Shelley, citado in M. H. Abrams, Natural Supernaturalism: Tradition and Revolution in Romantic Literature (Nova York: W. W. Norton, 1971), p. 447.

16 Friedrich Nietzsche, The Gay Science, tradução de Walter Kauffmann), (Nova York: Vintage Books, 1974), p. 181.

17 Stephen A. McKnight e Geoffrey L. Price (editors), International and Interdisciplinary Perspectives on Eric Voegelin (Columbia. MO: University of Missouri Press, 1997). Ver também Glenn Alexander Magee, Hegel and the Hermetic Tradition (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2001); e Erns Benz, The Mystical Sources of German Romantic Philosophy (Eugene, OR: Pickwick Publications, 1983).

18 Eric Voegelin, Sience, Politics and Gnosticism (Washington, DC: Regency Publishing, 1968), p. 23.

19 Pierre Manent, First Things, outubro 2012, p. 23. 20 Bento XVI, “Caritas in Veritate”, Vaticano, acessado em 20 de agosto de 2013 no site:

FONTE: Revista Ministério, Mar-Abr  2014, p. 17-20.