Teologia

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

A DOUTRINA DO SANTUÁRIO E SEU PAPEL NA IDENTIDADE DA IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA


 Ricardo André

A Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma denominação religiosa que se destaca por suas crenças específicas e doutrinas distintivas ou únicas. Uma dessas doutrinas essenciais para a teologia adventista é a doutrina do Santuário. Ela é a 24ª crença fundamental dos adventistas do sétimo dia conforme apresentada no Manual da Igreja (MI, 2023, p. 182) e detalhada no livro Nisto Cremos (NC, 2018, p. 391-415). Esta doutrina se baseia na crença de que, há um santuário no Céu em plena atividade (Ap 11:19), do qual o santuário terrestre era uma cópia (Êx 25:8; Hb 8:5). Este santuário dado a Moisés foi uma forma que Deus utilizou para mostrar como as coisas aconteceriam no santuário celestial, antitipicamente falando. Hebreus 9:24 fala da existência de um verdadeiro santuário, e que o santuário mostrado a Moisés era uma “figura”, tipo ou “representação” desse santuário verdadeiro, isto é o santuário celestial, que precede o terrestre. Diz o texto: “Pois Cristo não entrou em santuário feito por homens, uma simples representação do verdadeiro; ele entrou no próprio céu, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor” (NVI).

De acordo com o texto de Hebreus, o sumo sacerdote do santuário celestial é Cristo, no qual Ele mesmo fundou (Hb 8:1, 2 e 5). Nele Cristo entrou para interceder pelo seu povo (Hb 7:25; 9:24, 25).

“As ofertas sacrificais ensinavam algumas lições importantes; constituíam maravilhosa revelação da graça redentora de Deus, enfatizada reiteradas vezes ao antigo povo de Israel. O livro de Hebreus menciona que os diversos sacrifícios oferecido no tempo de Israel se dividiam em sacrifícios “diários” (Hb 7:27; 10:11) e sacrifícios “anuais” (Hb 9:7; 10:3). Os sacrifícios eram oferecidos diariamente e também no Dia da Expiação, que ocorria uma vez por ano. A análise desses sacrifícios revelará o plano de salvação da maneira como Deus o manifestou a Seu povo no passado” (Questões sobre Doutrina: O clássico mais polêmico da história do adventismo. Tatuí, SP: CPB, 2009, p. 261). Portanto, assim como o sacerdote do santuário judaico se ocupava com os ofícios, de forma “continuamente” no “primeiro” compartimento (lugar santo), e “uma vez por ano” no “segundo” compartimento (lugar Santo dos santos) (Hb 9:6, 7), assim também Cristo realizaria Seu sumo sacerdócio em duas etapas e lugares diferentes. A primeira, desde sua nomeação como Sumo Sacerdote (Hb 5:10) ocorrida logo após a ascensão (At 1:9) e exaltação (Hb 1:2-4), até 22 de outubro de 1844 (Dn 8:14), período em que se ocupou no primeiro compartimento com a intercessão em favor dos santos (Hb 7:25; 9:24). A segunda e última fase de Seu ministério sacerdotal, de 1844 até o fim da purificação do santuário celestial, período em que se ocupa também com o julgamento de seu povo (Hb 9:26-27), em preparação para a vinda de Cristo (Hb 9:28), o que acontece no segundo compartimento do templo celestial (Dn 7:25; Ap 11:19).  “Agora o povo de Deus deve ter os olhos fixos no santuário celestial, onde está acontecendo a ministração final de nosso grande Sumo Sacerdote na obra do juízo, onde Ele está intercedendo por Seu povo” (Ellen G. White, As Três Mensagens Angélicas [CPB, 2023], p. 21).

Assim, Jesus cumpre duas etapas em (para compreensão do universo) lugares diferentes, épocas diferentes, com significados diferentes, conforme simbolizado pelo Santuário terrestre, mas sem literalizar todos os detalhes e sem desprezá-los, afinal, o problema não está na revelação mas na imperfeição da compreensão humana. As duas etapas: intercessão, purificação do santuário são reais; as duas ocasiões: após a ressurreição e após 1844 são reais; os dois lugares: santo e santíssimo, são reais. O santuário é onde Deus está, onde realmente tudo acontece, de onde todas as ações divinas procedem, centro de nossa esperança, de onde Jesus virá. Essa doutrina é uma das raízes que diferencia os adventistas de outras denominações cristãs. Ela desempenha um papel central na formação da identidade profética adventista e na definição do que a igreja entende como sua missão singular.

É importante ressaltar que, embora seja um ensinamento distintivo ou exclusivo da Igreja Adventista e praticamente a única doutrina que não temos em comum com nenhum outro grupo religioso, a verdade sobre o santuário não pode ser vista como um ensinamento estranho, desvirtuado e indefensável; tampouco um simples expediente para justificar o episódio do desapontamento de 1844, como pretendem os críticos desse ensino. Ao contrário, o santuário, pilar da fé adventista, é um ensino que tem sólida base bíblica. É revelação do amor de Deus de forma didática. Há uma vasta quantidade de material nas Sagradas Escrituras tratando desse assunto. Qualquer estudo relacionado encontrará ampla referência. Logo, se é importante para Deus o deveria ser também para o homem.

Em vez de ser um desvio da fé cristã histórica, o ensino do santuário é a conclusão lógica e a inevitável consumação dessa fé. É uma verdade presente, uma verdade para os últimos dias; mensagem oportuna, confiada ao povo do advento.

O Fundamento Histórico

A doutrina do Santuário tem suas raízes nas interpretações proféticas feitas por Guilherme Miller e outros pregadores adventistas entre as décadas de 1830 e 1840. Guilherme Miller (1782-1849), um agricultor, converteu-se à Igreja Batista e começou a estudar intensamente a Bíblia. Utilizando uma Bíblia e um material de estudo de textos bíblicos conhecido como Concordância de Cruden, conclui que o Santuário descrito na profecia de Daniel 8:14 referia-se à Terra e a purificação do mesmo ao retorno de Jesus. Fazendo uso de um método de interpretação de profecias bíblicas conhecido como princípio dia-ano (Números 14:34; Ezequiel 4:6), concluiu, depois de 16 anos de estudo das profecias (1816-1832) que as "2300 tardes e manhãs" referidas, iniciavam-se em 457 a.C e se cumpriam entre março de 1843 e março de 1844. Como o fato não ocorreu (a volta de Jesus), o retorno aos estudos sobre o assunto gerou uma compreensão mais acurada. Samuel S. Snow, ministro protestante milerita, concluiu que a purificação do santuário descrita na profecia ocorreria de acordo com o calendário judaico dos caraítas em 22 de outubro de 1844.

Miller sentiu o desejo de exclamar: “Não posso expressar a alegria que encheu meu coração!” (Miller, Apology and Defence, p. 12. Citado em A Visão Apocalíptica e a Neutralização do Adventismo, p. 33). Durante 14 anos Guilherme Miller pregara sua mensagem. Aproximadamente 50 mil pessoas em todos os Estados Unidos, aceitaram-na. Eles aguardavam com sinceridade a volta de Jesus. Todos acreditavam que finalmente havia chegado a hora da vinda do Salvador a este mundo, para terminar a triste história do pecado. A esperança daqueles crentes era tão forte que a própria morte não tinha poder sobre eles. Ellen G. White afirmou: “As alegrias da salvação nos eram mais necessárias do que a comida e a bebida. Se as nuvens nos obscureciam o espírito, não ousávamos repousar ou dormir antes que fossem varridas pela certeza de que éramos aceitos pelo Senhor” (Vida e Ensinos, p. 53).

Haviam feitos todos os preparativos, acertados todas as contas. Reconciliaram-se com aqueles que haviam ferido ou prejudicado. Deixaram de lado toda a rotina diária, doaram os frutos de suas terras aos amigos e anunciaram com galhardia e coragem ao mundo de seus dias que a volta de Jesus seria naquela data. Que fé maravilhosa! Que desejo ardente de ver o Senhor Jesus! Entre eles, encontrava-se a adolescente Ellen G. Harmon. A respeito desse dia de espera, ela escreveu: "Este foi o ano mais feliz de minha vida. Meu coração transbordava de alegre expectativa" (Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 54). O dia tão esperado chegara. Não havia dúvidas. As últimas horas haviam sido gastas em fervorosa oração e reestudo da Bíblia, para confirmação das datas anunciadas na profecia. O dia era este, sem dúvida. O dia tão esperado; o dia da segunda vinda de Jesus Cristo, mas na data nada ocorreu, gerando o Grande Desapontamento e muita tristeza.

C. M. Maxwell narra a intensa expectativa entre eles: “As sombras do acaso estendiam-se serena e friamente por toda a terra. As horas da noite passavam vagarosamente. Em desconsolados lares de mileritas, os relógios assinalaram doze horas da meia-noite – 22 de outubro havia terminado. Jesus não viera. Ele não voltara!” (História do Adventismo [CPB, 1982], p. 34).

Será que temos uma compreensão clara do que passaram aqueles primeiros “adventistas”? Compreendemos o significado da dor e da decepção que sofreram? Já pensamos o que significa caírem por terra todos os seus sonhos e a esperança da volta de Cristo desvanecer-se com o amanhecer do dia 23 de outubro, ao invés de raiar uma nova vida para os filhos de Deus? Foi um golpe terrível para os antepassados e pioneiros do Adventistimo. Aquela multidão de homens e mulheres pregava uma mensagem clara e inequívoca: Jesus voltará no dia 22 de outubro de 1844! É difícil compreender o grande drama experimentado pelos pioneiros naquela época. Quando Cristo não retornou a Terra, isso ficou conhecido como o "Grande Desapontamento". Foi nesse contexto que a Doutrina do Santuário surgiu.

A Explicação Adventista

Depois da experiência do desapontamento, enquanto a maioria dos mileritas acabaram por desanimar, vários grupos continuaram estudando a Bíblia e constataram que a profecia de Daniel 8:14, sobre os 2.300 dias-anos, deveria realmente cumprir-se naquela data. Contudo, o acontecimento foi interpretado de forma equivocada. Eles compreenderam que a profecia não tratava da volta de Cristo e sim de eventos celestiais relatados no livro de Hebreus. Um desses grupos foi liderado pelo capitão aposentado José Bates e pelo casal Tiago White e Ellen G. White. Depois de reexaminarem as profecias, esse grupo compreendeu que havia um santuário real no Céu (Hb 8:1-5; Ap 11:19) e que a “purificação do santuário” de Daniel 8:14 não tinha nada ver com a Terra, mas com o Santuário Celestial, do qual o santuário terrestre era cópia ou tipo, e que, ao invés de Jesus voltar nessa data, Ele entrou como nosso Sumo Sacerdote no segundo compartimento do Santuário celestial, o Santo dos Santos, para iniciar o juízo investigativo predito na profecia de Apocalipse 14:6 e 7, e antes prefigurado no ritual do Dia da Expiação do santuário terrestre (Lv 16).

“Levítico 16 trata de um ritual de “purificação” do santuário israelita, incluindo a “purificação” (taher) de seu altar externo (v. 19), mediante as aplicações do sangue sacrifical pelo sumo sacerdote. Essa remoção de pecados e impurezas no comando central terreno de Deus representa a restauração ou a justificação do Seu santuário. O governo de Deus só é vindicado quando ele reconfirma as pessoas leais a quem já perdoou ao longo do ano (ver Lv 4-5) e quando rejeita aqueles que cometeram “transgressão” (Lv 16:16). [...] Depois de uma primeira fase de expiação, na qual Deus perdoava os israelita arrependidos que levavam ao santuário os sacrifícios durante todo o ano (Lv 4:20, 26, 31, 35; etc.), ocorria o Dia da expiação, que era uma espécie de segunda e última fase de expiação. Essa segunda fase purificava o santuário dos pecados do povo, representando o fato de que Deus como juiz foi vindicado, isentado da responsabilidade judicial na qual havia incorrido por perdoar pessoas culpadas (ver 2Sm 14:9), atitude que um juiz justo não adota (Dt 25:1; 1 Rs 8:32). O supremo sacrifício de Cristo, para o qual apontavam os sacrifícios de animais ao longo do ano e no Dia da Expiação, torna possível que Deus seja ao mesmo tempo justo e justificador (mediante o perdão) daqueles que creem (Rm 3:26). (Roy E. Gane. “O Que é a ‘Purificação do Santuário’ de Daniel 8:14?”, Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia. Tatuí, SP: CPB, 2019, p. 213).

Portanto, estamos vivendo no antitípico Dia da Expiação, em que Cristo, como nosso Sumo Sacerdote, entrou no Lugar Santo dos Santos ou santíssimo, em 1844, para realizar a segunda e última fase de Sua obra de expiação (purificação) dos pecados do seu povo registrados nos livros no Céu (Hb 8:1, 2; 7:25). “Quando, portanto, se ouve um adventista dizer, ou se lê na literatura adventista, mesmo nos escritos de Ellen G. White, que Cristo está fazendo expiação agora, deve-se compreender que queremos dizer que Cristo está agora fazendo aplicação dos benefícios da expiação sacrifical que efetuou na cruz; que está tornando eficaz para nós individualmente, conforme nossas necessidades e petições” (Questões sobre Doutrina. “Expiação Sacrifical Provida e Aplicada”. Tatuí, SP: CPB, 2009, p. 260).

Aqueles crentes entenderam que essa era uma parte importante do plano de salvação. A partir disso, no devido tempo, surgiu um grande movimento religioso mundial: A Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta recebeu uma grande missão: Anunciar a última mensagem de salvação a todo mundo. Ultrapassar os limites territoriais, culturais e linguísticos para alcançar toda a população da Terra, apresentando a tríplice mensagem angélica descrita em Ap 14:6-12, e chamar a atenção do mundo para o juízo e Sua segunda vinda. Para isso fundaram-se instituições médicas e educacionais em muitas parte do Globo. Foram erigidas igrejas, escolas, hospitais e casas publicadoras para ajudar a levar o evangelho eterno a toda não, tribo, língua e povo. Essa Igreja encara com seriedade a ordem: “Importa que profetizes novamente” (Ap 10:11).

Ellen G. White, co-fundadora da Igreja Adventista, afirmou: “Em sentido especial, os adventistas do sétimo dia foram postos no mundo como vigias e portadores de luz. A eles foi confiada a última mensagem de advertência a um mundo a perecer. Sobre eles incidiu a maravilhosa luz da Palavra de Deus. Foram incumbidos de uma obra da mais solene importância: a proclamação da primeira, segunda e terceira mensagem angélica. Não existe nenhuma obra de tão grande importância. Eles não devem eles permitir que nenhuma outra coisa lhes absorva a atenção. As mais solenes verdades já confiadas a mortais nos foram dadas para as proclamarmos ao mundo” (As Três Mensagens Angélicas [CPB 2023], p. 13).

Os primeiros adventistas reconheceram que a pregação das três mensagens angélicas começou de modo sequencial no contexto do movimento milerita. Ellen White escreveu: “A primeira e a segunda mensagens foram dadas em 1843 e 1844, e estamos agora sob a proclamação da terceira; mas todas as três mensagens devem ainda ser proclamadas” (Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 88, 89).

Com base nos capítulos 7 a 9 de Daniel, temos anunciado que o juízo investigativo que precede a segunda vinda de Cristo começou em 1844 e será concluído pouco antes desse glorioso evento. “Esse juízo procura essencialmente vindicar o povo de Deus, conforme se vê em Daniel 7, onde os santos são julgados e absolvidos. O povo de Deus permanece num atitude de completa dependência de Deus nas circunstâncias mais angustiosas. Os registros de sua vida são examinados e seus pecados, apagados; ao mesmo tempo, o nome dos falsos crentes é retirado dos livros (cf. Êx 34:33; Lv 23:29, 39). Aqueles cujo nome é conservado nos livros, inclusive os santos mortos, herdam o reino (Dn 7:22; 12:1, 2). Assim o santuário é purificado.” (Ângel M. Rodriguez, “O Santuário”, Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Tatuí, SP: CPB, 2011, p. 455, 456).

Quando essa obra investigativa terminar, é proferida a sentença de juízo. Então, Jesus virá como justo juiz para executar a sentença. O livro do Apocalipse descreve o momento do término da obra de julgamento e o consequente fim do tempo da graça, nos seguintes termos: “O santuário ficou cheio da fumaça da glória de Deus e do seu poder, e ninguém podia entrar no santuário enquanto não se completassem as sete pragas dos sete anjos” (Ap 15:8, NVI). Note que quando o santuário celestial enche-se “da fumaça da glória de Deus e do seu poder”, as pessoas são impedidas de terem acesso ao santuário, numa clara indicação de que o tempo de graça se acabou e a intercessão em favor dos pecadores não mais existe, de maneira que a ira de Deus não misturada com misericórdia e graça é experimentada pelos pecadores impenitentes como consequência de sua resistência e oposição ao evangelho. Uma realidade completamente oposta a do tempo da graça, quando somos exortados a “aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade” (Hb 4:16, NVI).

No final do juízo investigativo ou pré-advento, a sorte de todas as pessoas estará irrevogavelmente decidida para a vida ou para a morte. Não haverá um segundo tempo de graça para ninguém. Ao encerrar-se a obra de julgamento não haverá mais oportunidades de salvação para ninguém. O Espírito Santo não apelará mais à consciência das pessoas para se arrependerem de seus pecados, pois Se terá retirado da Terra. Nesse tempo cumprir-se-á as palavras de Cristo registradas em Ap 22:11, 12: “Continue o injusto a praticar injustiça; continue o imundo na imundícia; continue o justo a praticar justiça; e continue o santo a santificar-se. Eis que venho em breve! A minha recompensa está comigo, e eu retribuirei a cada um de acordo com o que fez” (NVI).

A doutrina do Santuário como chave hermenêutica

Para além de uma crença distintiva dos adventistas, a verdade do santuário é, indubitavelmente, a chave teológica fundamental do sistema doutrinário adventista. É a partir do estudo do santuário terrestre e seu ritual que passamos a entender o plano de salvação ou o evangelho, bem como verdades essenciais das Sagradas Escrituras. O santuário permite entendermos não somente as doutrinas bíblicas, mas a própria identidade e missão da igreja.

Essa perspectiva levou Ellen G. White a declarar que “a compreensão correta do ministério no santuário celestial constitui o alicerce de nossa fé” (Evangelismo [CPB, 1978], 221). Isso porque lá está “Cristo. Nele se encontra o sistema completo da verdade divina” (Ellen G. White, E Recebereis Poder, p. 29). Dessa forma, Ellen G. White interpretou o desapontamento milerita de 1844 a partir dessa visão hermenêutica: “O assunto do santuário foi a chave que desvendou o mistério do desapontamento de 1844. Revelou um sistema completo de verdades ligadas harmoniosamente entre si, o qual mostrava que a mão de Deus havia dirigido o grande movimento adventista e indicava novos deveres ao esclarecer a posição e obra de Seu povo” (O Grande Conflito [CPB, 2006], p. 423).

Nessa declaração, depreende-se que Ellen White nitidamente entendia que o santuário era uma chave hermenêutica que abriu a visão dos pioneiros adventistas para a compreensão de um sistema completo de verdades, a exemplo distinção de leis, lei de Deus, sábado, expiação, mediação, justificação, santificação, segunda vinda de Cristo, recompensa dos justos e dos ímpios e completa destruição do mal.

À semelhança dos discípulos de Jesus, que as antigas profecias previam a vinda de Cristo como rei no ano 31 AD, sofrendo grande decepção ao vê-lo pendurado numa cruz, os pioneiros do adventismo sofreram um grande desapontamento em 1844. Certamente, a mão de Deus estava conduzindo tudo, mas o que foi necessário para entender isso? A resposta é: a chave do santuário que abriu a visão não apenas para o que tinha acontecido, mas para a missão do movimento profético adventista. Assim foi possível compreender melhor a posição e obra desse povo.

A doutrina do sábado como dia do Senhor e de guarda é um exemplo emblemático da compreensão do santuário como um “sistema harmonioso de doutrinas”. A Bíblia revela que as tábuas dos Dez Mandamentos foram depositadas na arca da aliança (Êx 40:20, 21; Hb 9:3, 4). Esta ficava no lugar santíssimo do santuário terrestre, compartimento mais importante. Ao apóstolo João foi mostrado o santuário celestial. Ele afirmou: “Abriu-se, então, o santuário de Deus que se acha no céu, e foi vista a Arca da Aliança no seu santuário, e sobrevieram relâmpagos, vozes, trovões, terremoto e grande saraivada” (Apocalipse 11:19). Uma vez que a lei de Deus, que inclui o sábado, foi guardada no lugar mais importante do Santuário, compreendemos a importância do sábado na nossa adoração a Deus.

No dia 3 de abril de 1847, Ellen G. White teve uma visão do Santíssimo, no templo do Céu. Contemplou a arca aberta e, dentro dela, as tábuas da lei. Um halo especial de luz incidia sobre o quarto mandamento (Vida e Ensino, p. 84, 85). A partir desse momento, ficou claro para os pioneiros que a aceitação da verdade do santuário envolvia o reconhecimento dos requisitos da lei de Deus e a obrigatoriedade da guarda do sábado do quarto mandamento, não como meio de salvação, mas como fruto de um relacionamento salvífico com Jesus (Ef 2:8-10; Jo 15:10). Todos os 10 mandamentos dados por Deus devem ser guardados pelos cristãos, assim como o foi pelo próprio Cristo (Tg 2:10-12; Jo 15:10).

É importante ressaltar que no processo de formação das doutrinas distintivas dos adventistas, no período que se seguiu ao desapontamento de 1844, elas não surgiram a partir das visões de Ellen G. White, como muitos críticos da igreja afirmam. Antes, essas doutrinas foram fruto de intenso estudo das Sagradas Escrituras. Como afirmou o historiador da IASD George Knight, “as visões de Ellen White desempenharam mais o papel de confirmar as doutrinas do que dar-lhes origem” (Em Busca de Identidade. Tatuí, SP: CPB, 2011, p. 88).

Como se vê, percebe-se nitidamente que, sem a doutrina do santuário, perderíamos nossa identidade como povo especial. Para além disso, careceríamos de base como movimento profético, ficaríamos destituídos do sentido de missão e, consequentemente, sem razão de existir, como bem observou o estudioso e erudito adventista Leroy Edwin Froom: “Se não existe santuário no Céu, e nele não há operado um grande Sumo Sacerdote, e se já não existe mensagem da hora do juízo a ser, por ordem divina, pregada atualmente, então não há lugar para nós no mundo religioso, nem missão e mensagem denominacionais distintas, nem desculpas para ficarmos como entidade eclesiástica separada” (Ministério Adventista, julho/agosto de 1971, p. 13).

Na mesma linha, o teólogo Adriani Milli Rodrigues escreveu: “Deus configurou o santuário para ser uma chave que abre nossa compreensão no que diz respeito aos Seus planos se cumprindo ao longo da história; isto é, um processo profético que culminou no surgimento de um povo escolhido para a missão especial de proclamar as três mensagens angélicas, último convite divino ao mundo. Portanto, se perdermos a noção do santuário, consequentemente não teremos uma visão doutrinária completa nem uma concepção clara da identidade profética da igreja e para onde ela caminha” (Revista Adventista, outubro de 2023).

Seis semanas depois do desapontamento de 22 de outubro de 1844, Guilherme Miller escreveu muitas linhas demonstrando claramente que não tinha perdido a esperança na volta de Jesus. Ele escreveu: "Tenho fixado minha mente em outro tempo, e pretendo permanecer aqui até que Deus me conceda mais luz. E esse tempo é hoje, hoje e hoje, até que Ele venha e eu veja aquele por quem minha alma anseia" (George Knight, Adventismo: Origem e impacto do movimento milerita. Tatuí, SP: CPB, 2015, p. 210).

A doutrina do santuário aponta inequivocamente para esse glorioso dia da volta de Jesus. Ao final do dia mais importante do povo de Israel, o dia da expiação, quando o sumo sacerdote saía, voltando de dentro do santíssimo, simbolizava que os pecados chegariam ao seu fim, simbolizava a erradicação do mal do Universo. Semelhantemente, quando Cristo sair do santuário celestial e disser as palavras de Apocalipse "está feito" (16:17), todas as vidas estarão decididas para sempre, Jesus virá a esta terra e levará todos os seus súditos, herdeiros de um novo reino, que não passará, o eterno Lar Paterno. Ele prometeu: "Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver” (João 14:1-3, NVI).

Caro amigo leitor, continuemos a aguardar a volta de Jesus. Ele virá! Alegremo-nos por isso! Você está pronto para encontrar-se com Ele?  “A passos furtivos aproxima-se o dia do Senhor; mas os homens supostamente grandes e sábios não conhecem os sinais da vinda de Cristo e do fim do mundo” (Ellen G. White, Testemunhos Seletos, v. 3, p. 13). Que possamos ouvir dos lábios do Mestre as boas-vindas para a eterna Pátria celestial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

AS LENTES DO SANTUÁRIO


 Adriani Milli Rodrigues*

Mais do que uma crença distintiva do adventismo, o santuário é a chave para entendermos toda a verdade bíblica

O fato de o santuário ser o centro da teologia e do pensamento adventista tem sido mal interpretado por algumas tradições religiosas. Existe a ideia de que, ao fazermos isso, substituímos Jesus por uma estrutura da antiga aliança, o que seria um indicativo de que ainda precisamos descobrir a graça. De certo modo, isso deriva de outro elemento comum em grande parte da tradição cristã, a saber, a compreensão de que o Antigo Testamento ficou para trás. Nesse caso, o santuário seria coisa do passado, uma vez que toda a sua base de articulação é o AT. Outra objeção frequentemente apresentada é a de que, se Cristo perdoa e esquece nossos pecados, por que haveria a necessidade de um juízo investigativo?

Afinal, se Jesus é o centro das Escrituras, por que enfatizamos tanto o santuário? Não estaríamos caindo no legalismo? Que respostas poderiam ser dadas a essas críticas?

Na realidade, não há dicotomia entre o santuário e Jesus. Ao enfatizarmos o ministério sacerdotal de Cristo, por exemplo, de modo algum estamos diminuindo a cruz, mas valorizando a obra que nosso Salvador passou a desempenhar no Céu depois do Calvário. Semelhantemente, tudo no santuário construído no deserto apontava para o plano da salvação por meio do Cordeiro de Deus. Mas alguns ainda têm dificuldade de entender isso, o que é um reflexo da tendência de separar Jesus das doutrinas. Você já ouviu pessoas dizerem que amam Jesus, mas não querem saber de doutrinas? De fato, é possível falarmos de doutrinas sem que Jesus esteja no centro delas, mas é igualmente perigoso quando ocorre o inverso.

Certa vez, após uma palestra que proferi, alguém me abordou dizendo que seu interesse era somente por temas cristocêntricos. Ver sua igreja se dividir por causa de discussões doutrinárias tinha lhe causado bloqueios e traumas. Para exemplificar que uma coisa está ligada a outra, procurei mostrar que a convicção a respeito da divindade de Cristo e Sua encarnação, ensinamentos com os quais ela concordava plenamente, tem que ver com cristologia (doutrina de Cristo); a realidade do pecado e a necessidade de um Salvador que morreu numa cruz remete à soteriologia (doutrina da salvação); e a crença de que Cristo voltará pela segunda vez, de maneira visível, diz respeito à escatologia (doutrina dos eventos finais). Só para citar alguns exemplos.

Uma abordagem verdadeira sobre Cristo leva ao campo doutrinário, sem o qual não é possível conhecê-Lo verdadeiramente. Sem contar que as diferenças doutrinárias também revelam, em última instância, tipos diferentes de Cristo. Afinal, estamos falando do Cristo que supostamente “aboliu” a lei ou do que não a revogou? Daquele que virá secretamente para salvar alguns ou do que voltará de maneira visível para salvar a todos? Você compreende?

Ao falar sobre o santuário precisamos fugir de informações soltas, levando as pessoas a entenderem que ele está dentro de uma lógica narrativa

Como podemos perceber, os detalhes fazem a diferença. Nesse sentido, a forma como enxergamos o Antigo Testamento é fundamental para entendermos a obra salvífica de Cristo sem perder de vista o significado de Sua ministração em nosso favor no santuário celestial.

ÚTERO INTELECTUAL

O teólogo escocês Thomas F. Torrance compreendia que Israel é o “útero intelectual” da compreensão messiânica, no sentido de que o Antigo Testa­mento fornece “ferramentas conceituais” para o entendimento prévio e adequado de Cristo (Incarnation: The Person and Life of Christ [InterVarsity Press, 2008], p. 41). De maneira similar, podemos dizer que o santuário, tema crucial do Antigo Testamento e centro da vida de Israel, não é uma mera doutrina entre outras, mas um princípio hermenêutico de articulação de outras doutrinas. Toda ideia, para ser melhor assimilada, precisa passar por um processo de “gestação”. Isso porque a aprendizagem requer tempo para a melhor articulação do conhecimento. No processo educativo de Deus também é assim. O Antigo Testamento representa cerca de 4 mil anos de revelação. Ou seja, o Messias não caiu de paraquedas, por assim dizer. Havia uma estrutura para que, quando Ele viesse, pudesse ser devidamente reconhecido e compreendido. É verdade que nem todos do Seu próprio povo O reconheceram/aceitaram, mas pessoas de outras nações vieram para adorá-Lo, a começar pelo contexto de Seu nascimento.

Encontramos de maneira abundante o santuário no Antigo Testamento. É o lugar no qual as ideias foram sendo processadas e os conceitos formados, não de maneira abstrata. Tendo em vista que os rituais do santuário não mais fazem parte do nosso cotidiano, essa realidade pode ser mais teórica para nós hoje. Mas, no dia a dia do povo do Antigo Testamento, consistia em algo absolutamente prático, palpável e concreto. Tratava-se de um sistema pedagógico, tendo uma função hermenêutica.

NEUTRALIZAÇÃO HERMENÊUTICA DO SANTUÁRIO

É provável que estejamos acostumados a pensar no santuário como um tema doutrinário entre outros, no contexto do pensamento bíblico-adventista. Mas esse pensamento é absolutamente problemático para nossa compreensão doutrinária. Mais especificamente, considerar o santuário como um tema entre outros significa neutralizar a força do santuário no pensamento adventista, visto que o santuário tem caráter eminentemente hermenêutico na articulação teológico-doutrinária. Em outras palavras, neutralizar hermeneuticamente o santuário consiste em tirar dele o caráter de “útero intelectual”, a partir do qual interpretamos o todo do pensamento bíblico-doutrinário. Por isso, a doutrina do santuário não pode ser colocada apenas como mais uma entre outras. Na verdade, ela é a doutrina por meio da qual enxergamos as demais. Essa é sua função hermenêutica ou interpretativa.

CHAVE DE INTERPRETAÇÃO

Assim como uma casa com vista panorâmica, o santuário é a janela por meio da qual vemos o plano da salvação de uma perspectiva ampliada. Usando outra analogia, podemos dizer que ele também funciona como uma placa indicativa. O santuário dos israelitas não cumpria uma função em si mesmo, mas abria a compreensão para entender outras coisas.

O santuário permite entendermos não somente as doutrinas bíblicas, mas a própria identidade e missão da igreja

Ellen White também interpretou o que ocorreu nos primórdios do adventismo por uma ótica semelhante: “O assunto do santuário foi a chave que desvendou o mistério do desapontamento de 1844. Revelou um sistema completo de verdades ligadas harmoniosamente entre si, o qual mostrava que a mão de Deus havia dirigido o grande movimento adventista e indicava novos deveres ao esclarecer a posição e obra de Seu povo” (O Grande Conflito [CPB, 2021], p. 358).

Nessa declaração, percebemos que a pioneira usou ainda outra metáfora, ao comparar o santuário a uma chave hermenêutica que abriu a visão para a compreensão de um sistema completo de verdades. Assim como os primeiros discípulos diante da crucifixão, os pioneiros do adventismo ficaram desapontados com o fato de Jesus não ter retornado em 22 de outubro de 1844. Certamente, a mão de Deus estava conduzindo tudo, mas o que foi necessário para entender isso? A resposta é: a chave do santuário que abriu a visão não apenas para o que tinha acontecido, mas para a missão do movimento profético adventista. Assim foi possível compreender melhor a posição e obra desse povo.

COMPREENSÃO CORRETA

Por mais que possa parecer complexo, o tema do santuário precisa ocupar um lugar central no púlpito de nossas congregações e na vida dos membros. Visto da perspectiva correta, ele nos ajuda a ter a compreensão precisa das doutrinas como um sistema harmonioso e uma noção clara da identidade da igreja.

Se você fosse explicar para alguém de outra denominação cristã o que é a Igreja Adventista, o que diria? Que nossa igreja é praticamente igual às demais, com a diferença que guardamos o sábado e evitamos comer alguns tipos de alimentos? Esse pode ser um resumo do adventismo, mas trata-se de uma definição bastante limitada.

O livro de Salmos pode ser um bom ponto de partida para explorarmos essa riqueza de perspectivas em nossas igrejas, pois ele conecta o santuário à experiência religiosa e à vida de adoração

Vamos pensar no sábado, por exemplo, a partir da ótica de um “sistema harmonioso de doutrinas”. Qual é a relação do sétimo dia com o santuário? Em primeiro lugar, é preciso ter em vista a importância do sábado para a lei de Deus, que tem total conexão com o santuário. De fato, a lei não apenas está presente nessa estrutura, mas se encontra no compartimento mais importante, uma vez que foi colocada no lugar santíssimo. Desse modo, quando colocamos a lei dentro do santuário, podemos entendê-la melhor. O santuário é o ambiente que abriga a lei de Deus, e ela é a referência principal, que inclui o sábado, para todos os ritos e serviços do santuário. Se o santuário é a forma privilegiada do povo de Deus contar com a presença relacional do Senhor, os mandamentos de Sua lei dizem algo acerca dessa presença. Assim, quando inserimos nossa compreensão da observância do sétimo dia no contexto do santuário, particularmente em termos de detalhamento da presença relacional de Deus com Seu povo, compreendemos de maneira mais ampla seu papel e significado.

Além disso, Deus configurou o santuário para ser uma chave que abre nossa compreensão no que diz respeito aos Seus planos se cumprindo ao longo da história; isto é, um processo profético que culminou no surgimento de um povo escolhido para a missão especial de proclamar as três mensagens angélicas, último convite divino ao mundo. Portanto, se perdermos a noção do santuário, consequentemente não teremos uma visão doutrinária completa nem uma concepção clara da identidade profética da igreja e para onde ela caminha.

No passado, era comum que alguém que deixasse de ser adventista não se filiasse a nenhuma outra denominação. Hoje parece que o quadro mudou um pouco. Será que, em parte, esse fenômeno não está atrelado ao risco de perda dessa identidade profética?

LÓGICA NARRATIVA

Sem dúvida, o tema do santuário está presente ao longo da Bíblia. Mas existem alguns pontos de concentração, dentre os quais destacam-se os que estão no quadro abaixo.

Evidentemente, poderíamos começar falando sobre o santuário em Gênesis, uma vez que ali vemos altares, sacrifícios e outros elementos interligados. Porém, de modo detalhado, o santuário aparece de maneira mais forte em Êxodo. Aliás, é curioso notar que a saída do Egito ocupe menos da metade do livro (apenas os primeiros 12 capítulos). Dos capítulos 13 ao 40, o tema predominante é o santuário. De fato, o clímax do livro é a inauguração do santuário, cuja conclusão está no último capítulo. Êxodo apresenta instruções detalhadas sobre o santuário (capítulos 25-30) e, então, traz informações específicas sobre a construção do tabernáculo no deserto (capítulos 35-40), enfatizando que o que fora construído estava de acordo com a orientação divina, conforme indicada anteriormente.

Mas há algo que introduz o tema da construção do santuário: a aliança. Antes, o povo era dominado pelo faraó, que o escravizou. Contudo, após a libertação do Egito, Deus Se torna o rei dos israelitas, lutando por eles e guiando-os em meio às intempéries do deserto. O Senhor desejava que eles fossem Seu povo e que Ele fosse o Deus deles. Essa linguagem bíblica da aliança denota um relacionamento sendo estruturado.

O povo passou a ter uma constituição, uma lei que regeria o relacionamento com Deus. No processo de estruturação da aliança, vemos as tábuas da lei, escritas pelo Senhor no “cartório do Sinai”, sendo entregues a Moisés. As vias do contrato estavam sendo autenticadas pelo próprio Deus. No entanto, Ele não entregou somente as tábuas da lei. Moisés desceu o Sinai trazendo também o plano de construção da estrutura que iria abrigá-las (compare 35:18 com 24:12 e veja o conteúdo apresentado entre essas duas passagens). O santuário seria o palácio do Rei e Sua lei estaria ali.

Por isso, o primeiro item do santuário a ser descrito é a arca da aliança, dentro da qual se encontrariam as duas tábuas da lei (veja 25:10-16). Curiosamente, o santuário é descrito de dentro para fora. E o livro de Êxodo termina no capítulo 40 com a inauguração dessa estrutura.

Uma vez inaugurado, o tabernáculo precisava funcionar. Então, temos o livro de Levítico dizendo como seria a dinâmica de todo esse complexo que envolveria serviços sacerdotais, rituais de sacrifício e festas no calendário da nação. E todo o serviço do santuário descrito em Levítico tem que ver com o fato de a lei estar ali. Com base nos serviços do santuário, podemos aprimorar nossa compreensão de como os rituais desempenhavam um papel essencial na conexão entre a presença de Deus e o relacionamento do Seu povo com Ele. Tais serviços informam, de maneira bastante concreta, nossa compreensão da grandeza e da santidade de Deus, bem como do Seu amor e Seu desejo de Se relacionar e salvar Seu povo. Além disso, os rituais do santuário nos ensinam sobre a realidade do pecado, da purificação, do perdão e da salvação, entre outros temas teológicos.

Por sua vez, o livro de Salmos pode ser chamado de “gigante adormecido do santuário”, pois trata do tema mais do que imaginamos. Para a maioria das pessoas, esse não é o primeiro livro da Bíblia que vem à mente quando se pensa no tema. No entanto, Salmos apresenta muita coisa sobre o santuário. Aliás, ele era o hinário do templo, trazendo, inclusive, os cânticos de peregrinação para o próprio santuário.

O Salmo 23, um dos mais conhecidos, termina com a seguinte declaração: “Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do Senhor para todo o sempre” (v. 6). Aliás, o livro de Salmos pode ser um bom ponto de partida para explorarmos essa riqueza de perspectivas em nossas igrejas, pois ele conecta o santuário à experiência religiosa e à vida de adoração.

Isso mostra que o santuário não está presente apenas nos livros de Daniel e Apocalipse, que abordam o tema da perspectiva profética, e em Hebreus, onde vemos Cristo atuando como nosso sumo-sacerdote no santuário celestial, feito não por mãos humanas (Hb 9:24). Além disso, ele se situa dentro de uma lógica narrativa, articulando um sistema harmonioso de crenças no contexto da história do relacionamento de Deus com Seus filhos. O santuário é, portanto, a chave para avaliarmos a vida de maneira diferente, compreendendo adequadamente as verdades bíblicas. A partir de uma sólida compreensão do nosso relacionamento com Deus à luz do ritual do santuário, podemos apreciar de forma ainda mais ampla a história do grande conflito e o triunfo do reino de Deus, conforme aprendemos com a mensagem profética de Daniel e Apocalipse, que tem como referência Cristo no santuário celestial, como lemos em Hebreus.

Nesse contexto espiritual e profético, precisamos estudar e proclamar a mensagem do santuário para enxergarmos mais e melhor as verdades bíblicas, com suas harmoniosas conexões conceituais e práticas, o que torna nosso relacionamento com Deus algo muito mais significativo e profundo.

 

*ADRIANI MILLI RODRIGUES é coordenador da graduação em Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)

 

Matéria publicada originalmente na Revista Adventista de outubro/2023.

TRÊS ANJOS, UM EVANGELHO


 Ángel Manuel Rodriguez*

Uma interpretação cristológica de Apocalipse 14:6 a 12

O que você prega todas as semanas? A resposta deve ser óbvia: O evangelho da salvação pela fé na morte sacrifical de Cristo. Sua obra salvadora deve colorir e determinar o conteúdo de qualquer sermão. Um pregador adventista não tem outra opção porque no próprio cerne do verso bíblico que resume nossa missão e mensagem está o evangelho, ou seja, Apocalipse 14:6 a 12: as três mensagens angélicas. Neste artigo, sugiro uma interpretação cristológica da passagem.1

Primeira mensagem angélica

Os três anjos “representam aqueles que recebem a verdade e com poder abrem o evangelho diante do mundo”.2 O fundamento exegético para essa afirmação encontra-se em Apocalipse 14:6 a 12. O primeiro anjo proclama o evangelho eterno à raça humana no fim do conflito cósmico (v. 6). A passagem termina com a bênção do Espírito Santo sobre aqueles que mantêm juntos a lei de Deus e o evangelho da salvação pela fé na obra salvadora de Cristo (v. 12). O segundo anjo proclama a ruína do falso evangelho da Babilônia (v. 8), e no centro da terceira mensagem está uma referência maravilhosa ao Cordeiro de Deus (v. 10).

O anjo não descreve o conteúdo do evangelho, mas o chama de “evangelho eterno” (v. 6). Não há outro evangelho eterno senão aquele que anuncia ao mundo que a salvação vem por intermédio de Jesus Cristo (Mt 24:14). Esse evangelho é apresentado em Apocalipse 1:5, quando João se refere a Jesus como Aquele que “nos ama e, pelo Seu sangue, nos libertou dos nossos pecados”.

O amor de Deus foi visivelmente manifestado na morte sacrificial de Cristo. Essa linguagem soteriológica é transmitida ao longo do livro usando a imagem do Cordeiro que foi morto. Os seres celestiais proclamam que o Cordeiro é digno de adoração porque Ele foi morto, e com o sangue Dele comprou para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5:9). É Cristo como o Cordeiro que foi exaltado ao trono de Deus (Ap 22:3), que, como Guerreiro, derrotou o inimigo por meio de Sua morte sacrificial (Ap 17:14) e compartilha essa vitória com Seu povo (Ap 12:11). A figura do Cordeiro é uma expressão do amor sacrificial de Deus, por meio do qual somos redimidos.

As três mensagens estão integradas em uma mensagem, o evangelho eterno, que é poderoso o suficiente para nos salvar e encerrar o conflito cósmico.

A proclamação do evangelho é seguida por um chamado aos habitantes da Terra para temer a Deus (Ap 14:7). O conceito de temor a Deus pressupõe que o Senhor é um Ser transcendental e imponente, que se manifesta à humanidade envolto em luz radiante e impenetrável e faz a terra tremer (Êx 19:16, 18, 19). Este Ser majestoso oferece aos seres humanos, em um ato de amor, o privilégio de se tornar Deus deles (Dt 4:20; 5:26, 27; 7:6). Aqueles que reconhecem Nele um Deus amoroso demonstram isso submetendo-se a Ele e à Sua vontade. O primeiro anjo convoca os seres humanos a escolher esse Deus glorioso como seu Deus.

A frase “dar glória a Deus” é usada na Bíblia para expressar a disposição dos pecadores em reconhecer que eles são culpados e que Deus é justo ao condená-los (Js 7:19; 1Sm 6:5; Jo 9:24; cf. Sl 51:4). Às vezes, é uma expressão de contrição e arrependimento que reconhece a justiça de Deus (Jr 13:16; Ap 11:13). O anjo convida todos, com base na obra divina de redenção, a se arrepender e admitir que o Senhor é amoroso e justo.

O chamado é urgente porque a hora do juízo chegou e está em andamento. Na Bíblia, o Dia da Expiação era um tipo do dia do julgamento. Em Apocalipse 11:19, João é levado em visão ao lugar santíssimo do santuário celestial, em antecipação ao dia antitípico da expiação. Em Apocalipse 14:7, somos informados de que o momento profético, ou “hora”, do dia antitípico da expiação chegou. Deve-se escolher a Deus e arrepender-se (cf. Dn 8:14).

O chamado angélico convida os pecadores a adorar o Criador (Ap 14:7), ecoando a linguagem do mandamento do sábado, o sinal e selo do poder santificador de Deus. O sétimo dia nos lembra Daquele que nos criou e que, por intermédio do Cordeiro, nos redimiu. Adoração é um ponto-chave no conflito cósmico, e os seres humanos são encorajados a adorar a Deus e não ao querubim caído e seus aliados

(Ap 14:9). No momento em que o Criador e o sábado foram rejeitados ou ignorados, Deus insiste que todos devem se curvar diante da Fonte de vida.

Segunda mensagem angélica

O segundo anjo anuncia a queda de Babilônia, um símbolo da independência e da busca pela autopreservação por meio das realizações humanas (Gn 11). As descrições das intenções do querubim caído e do rei da antiga Babilônia coincidem: ambos queriam ocupar o lugar de Deus na Terra

(Is 14:3-23). Contudo, o reino literal de Babilônia ruiu. No tempo do fim, o dragão criará uma Babilônia mística por intermédio da qual tentará ocupar o lugar de Deus e receber a adoração que Lhe é devida. Babilônia é constituída por uma falsa trindade: a besta do mar (Ap 13:1), o cristianismo apostatado da Idade Média; a besta da terra (v. 11), o protestantismo apostatado, representado pelos Estados Unidos; e o dragão, a obra de Satanás por meio do espiritualismo.

Babilônia é a tentativa do dragão de unificar o cristianismo apóstata por meio de eventos milagrosos que visam legitimar sua afirmação de ser de origem divina. Ela oferece ao mundo seu evangelho corrompido, chamado de “vinho” (Ap 14:8). Jesus deu vinho a Seus discípulos como símbolo de Sua morte sacrificial (Mt 26:27, 28). No tempo do fim, Babilônia oferece à humanidade seu próprio vinho, um meio de salvação por meio da submissão ao querubim caído. Nestes últimos dias, o dragão mudará de muitas maneiras o mapa religioso, político, filosófico e econômico por meio da realização de milagres que vão persuadir muitos de que ele é, de fato, Deus. Devemos antecipar mudanças radicais no mundo, cuja magnitude é difícil de imaginar.

A Babilônia mística ainda está se revelando. Os três espíritos demoníacos que saem da boca do dragão, da besta e do falso profeta vão ao mundo a fim de uni-lo para a batalha do dia do Senhor (Ap 16:13, 14). Enquanto isso, as três mensagens angélicas são proclamadas com o objetivo de preparar o mundo para a vinda de Cristo. Como resultado dos dois movimentos, o mundo será polarizado entre aqueles que serão fiéis ao Cordeiro e ao dragão. No entanto, a vitória do Cordeiro, o verdadeiro evangelho, está assegurada, e Babilônia cairá para não mais se levantar (Ap 16:19; 17:14; 19:20).

Terceira mensagem angélica

A mensagem do terceiro anjo é o último apelo de Deus aos habitantes da Terra para que escolham o lado do Cordeiro no conflito cósmico. É uma questão de lealdade e compromisso final. Enquanto o dragão anuncia que aqueles que não o adorarem e rejeitarem o nome e a marca da besta serão eliminados (Ap 13:15-17), o terceiro anjo alerta que os seguidores do dragão enfrentarão a ira divina no juízo final (Ap 14:9-11).

A lealdade ao dragão e seus aliados exige o recebimento do nome e da marca da besta. Os ímpios se identificarão com o caráter e as aspirações da falsa trindade.

A lealdade se expressa em ações que manifestam a natureza do objeto de lealdade. Apropriar-se do nome e da marca da besta significa que eles pertencem ao dragão e supostamente serão protegidos por ele. Ao se submeter à autoridade da falsa trindade, a vontade de Deus se torna irrelevante para os ímpios.

A marca da besta é a falsificação do selo de Deus, o sábado. O domingo se torna o símbolo da autoridade do dragão sobre aqueles que o seguem, sua autoridade para mudar a lei de Deus, e isso facilita a sua adoração. Adoramos o Criador no sábado do sétimo dia e, no fim do conflito cósmico, os ímpios adorarão a criatura por meio de sua obediência ao domingo.

O terceiro anjo anuncia que aqueles que são leais ao dragão experimentarão a ira de Deus (Ap 6:16, 17). Em seguida, o anjo passa a explicar como é a ira divina, usando a linguagem do vinho, fogo e enxofre. De acordo com o anjo, a ira de Deus é como o vinho que não foi misturado com água, mas cujo poder intoxicante foi aumentado pela adição de certas especiarias. O ponto da metáfora é que a ira escatológica do Senhor não será misturada com misericórdia, ou seja, não haverá espaço para arrependimento. Os ímpios cairão e não se levantarão novamente.

A segunda metáfora é tirada da experiência de uma pessoa que foi diretamente exposta ao enxofre. A ira de Deus é comparada à intensa dor que uma pessoa sente quando o enxofre em chamas cai sobre sua pele. É extremamente doloroso! Há um segundo ponto nessa metáfora, a saber, que o que é queimado perece para sempre. A ira de Deus resultará na morte eterna dos ímpios.

A intensidade do sofrimento dos ímpios no juízo final é descrita como um tormento, uma dor sobre a qual a pessoa não tem controle e que experimentará durante um período de tempo não especificado (Ap 14:11). Essa experiência ocorre “diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro”. Os estudiosos sugerem diferentes maneiras de interpretar essa frase, ignorando a óbvia. A imagem é tirada da vinda de Cristo com Seus anjos na parousia. É a linguagem de uma cristofania usada para indicar que Jesus aparecerá aos ímpios durante o julgamento final. Eles estarão diante do Cordeiro que foi morto! Olharão para a cruz de Jesus, rejeitada por eles, mas onde o amor magnífico de Deus foi revelado ao Universo.

Essa é a melhor e única evidência que Deus apresenta ao tribunal cósmico para demonstrar que o anjo caído estava errado, e que Ele é inquestionavelmente um Deus amoroso e justo. Na presença do Cordeiro, os ímpios se veem como realmente são, miseráveis pecadores com um profundo sentimento de culpa, percebendo que estarão eternamente separados do Pai. A compreensão dessa separação eterna é realmente muito dolorosa, um tormento. Na cruz, Jesus experimentou a dor lancinante da separação de Deus para que mais ninguém tivesse que passar por isso. No entanto, os ímpios desconsideraram o sangue do Cordeiro que foi morto e serão atormentados pelo amor que escolheram ignorar. Paradoxalmente, o amor de Deus, constituindo a alegria dos mundos não caídos e despertando a mais profunda gratidão no coração dos redimidos, é um tormento para os ímpios, Satanás e seus anjos.

O conflito cósmico termina pacificamente com o reconhecimento universal e a declaração de que o Senhor é um Deus de amor. O poder persuasivo do sacrifício do Cordeiro derrota as forças do mal. João antecipou esse momento quando escreveu: “Então ouvi que toda criatura que há no Céu e sobre a Terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: ‘Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o domínio para todo o sempre’” (Ap 5:13).

As três mensagens angélicas estão incorporadas em uma mensagem, o evangelho eterno, que é poderoso o suficiente para nos salvar e encerrar o conflito cósmico. Talvez seja bom perguntar novamente: o que você vai levar ao púlpito na próxima semana? Pregue o Cordeiro!

 

*Ángel Manuel Rodríguez, ex-diretor do Instituto de Pesquisa Bíblica da Igreja Adventista do Sétimo Dia

 

Referências

 

1. Este artigo é um resumo de “The Closing of the Cosmic Conflict: Role of the Three Angels’ Messages”, a ser publicado em Artur Stele (ed.), The Word: Searching, Living, Teaching, v. 2 (2021).

2. Ellen G. White, A Verdade Sobre os Anjos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2005), p. 246.

 

FONTE: Revista Ministério, Nov-Dez 2021

domingo, 15 de outubro de 2023

A TERRA PRÉ-EXISTENTE: REFLEXÕES SOBRE A IDEIA DE QUE A TERRA JÁ EXISTIA ANTES DA SEMANA DA CRIAÇÃO EM GÊNESIS 1


 Ricardo André

INTRODUÇÃO:

A narrativa da criação em Gênesis 1 é uma das histórias mais conhecidas da Bíblia e é fundamental para muitas tradições religiosas, especialmente o Cristianismo e o Judaísmo. A passagem descreve a criação do mundo em seis dias, culminando com a criação do homem e da mulher no sexto dia, e Deus descansando no sétimo dia.  No entanto, existe uma questão intrigante que tem sido debatida ao longo dos séculos: a Terra já existia antes da semana da criação?

Os primeiros versículos de Gênesis 1 fornecem um ponto de partida para explorar essa questão. Eles afirmam: "No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus se move sobre as águas" (Gênesis 1:1-2, NVI). Alguns estudiosos argumentam que esses versículos sugerem a existência prévia da Terra, que estava "sem forma e vazia" antes do ato criativo descrito no restante do capítulo.

Há várias interpretações sobre o estado da Terra antes da criação da luz, dos céus, das plantas e dos animais. Alguns acreditam que a Terra pré-existente era um caos desordenado e vazio, enquanto outros veem como uma matéria-prima não organizada, esperando uma intervenção criativa de Deus.

INTERPRETAÇÕES TEOLÓGICAS:

1) A Teoria criacionista tradicional: Alguns grupos religiosos, defendem a interpretação literal do Gênesis 1. Eles acreditam que a Terra foi criada em sua forma atual, com uma semana de criação literal que ocorreu há cerca de 6.000 anos. Nessa perspectiva, a Terra não existia antes dessa semana. Ainda segundo essa teoria, Gênesis 1:1 é parte do primeiro dia da semana da criação. Desse modo, o verso 2 descreve a condição da Terra imediatamente após a criação dos “céus e da Terra” – o nosso planeta e o céu atmosférico que o circunda – e antes da criação da luz. O quarto mandamento da lei de Deus afirma: “Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou” (Êx 20:11). De acordo com a teoria criacionista tradicional, a expressão “tudo o que neles existe” inclui a matéria-prima dos céus e da Terra.

Ainda segundo essa interpretação, a criação ex nihilo (a partir do nada), argumenta que Deus criou o universo a partir do zero, sem utilizar preexistências. Isso é consistente com a ideia de um Deus todo-poderoso que não depende de elementos pré-existentes para criar.

Essa teoria foi defendida pelos reformadores protestantes do século XVI, Martinho Lutero e John Calvino. A escritora cristã Ellen G. White também defendia essa interpretação. É o que se depreende de sua afirmação: “A teoria de que Deus não criou a matéria ao trazer à existência o mundo não tem fundamento. Na formação de nosso mundo, Deus não dependeu de matéria preexistente” (Testemunhos Para a Igreja, v. 8, p. 258).

É importante ressaltar que, um dos problemas com essa teoria é que se o planeta Terra foi criado no primeiro dia (“no princípio”), o relato de Gênesis 1 informa que o Sol pareceu três dias depois, no 4º dia da semana literal da criação (Gn 1:14-18). Caso a Terra fosse mais antiga que o Sol, em torno do que ela teria orbitado até o 4º dia da criação? Com a palavra os que defendem a ideia da criação em uma única etapa.

2) A teoria criacionista da Terra Antiga: Outra interpretação teológica aceita por muitos é o criacionismo da Terra Antiga. Segundo essa visão, a Terra já existia antes da semana da criação, e os "dias" de Gênesis 1 podem ser entendidos como períodos de tempo significativos, não necessariamente dias literários de 24 horas. As Testemunhas de Jeová é um dos grupos religiosos que promovem essa teoria.

Na obra A Vida – Qual a sua origem? A evolução ou a criação?, da Sociedade Torre de Vigia, ed. de 1985, afirma-se: “A primeira parte de Gênesis indica que a Terra já poderia existir bilhões de anos antes do primeiro “dia” de Gênesis, embora não diga por quanto tempo (p. 26). Mais adiante é dito que “pareceria razoável que os “dias” de Gênesis abrangessem, igualmente, longos períodos – milênios” (p. 27). Entretanto, a ideia de que os dias da semana da criação representaram longos períodos de anos não encontra apoio bíblico.

A palavra hebraica traduzida por dia é “yom” (Nisto Cremos: As 28 Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia [CPB, 2018], p. 89). De fato, o termo “yom” pode referir-se a um período de mais de 24 horas. Mas no caso dos dias da criação, nem de perto isto pode ser, pois quando “a Bíblia emprega a palavra “dia” associada a um numeral em um relato histórico, “dia” sempre se refere a um dia normal; por exemplo, “no primeiro dia”, “no segundo dia”, etc. (Nm 7:12-78; 29:1-35)” (Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 106). Isto ocorre nos dias da semana mencionados em Gênesis. Vejamos:

1) “Houve tarde e manhã, o primeiro dia” (Gênesis 1.5);

2) “Houve tarde e manhã, o segundo dia” (verso 8);

3) “Houve tarde e manhã, o terceiro dia” (verso 13);

4) “Houve tarde e manhã, o quarto dia” (verso 19);

5) “Houve tarde e manhã, o quinto dia” (verso 23);

6) “Houve tarde e manhã, o sexto dia” (verso 31);

Deve-se ressaltar também outros fatos importantes que nos impedem de crer que Deus tenha criado o mundo em milhares de anos ao invés de criá-lo em “dias”: Os versos de Gênesis 1 falam que a semana da criação era composta de “tarde e manhã”, e não de “milhares de anos”. “A declaração literal: ‘Foi tarde [com as horas sucessivas da noite], e foi manhã [com as horas sucessivas do dia], dia um é claramente a descrição de um dia astronômico, isto é, um dia com a duração de 24 horas. [...] A duração do sétimo dia necessariamente determina a extensão dos outros seis” (Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia [CPB, 211], v. 1, p. 191).

O teólogo Jirí Moskala destaca: “Outros textos bíblicos também interpretam os sete dias da criação de forma literal. Por exemplo, o quarto mandamento contém a frase: “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a Terra [...] e, ao sétimo dia, descansou” (Êx 20:11); e, em Êxodo 31:17, os israelitas são instruídos a guardar o sábado “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a Terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento”. Em ambos os textos, os seres humanos recebem instrução para seguir o exemplo de Deus e descansar no sétimo dia” (Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 106, 107). Portanto, o quarto mandamento não faria qualquer sentido se cada dia da criação representasse milhares de anos. “A admissão de que os acontecimentos da primeira semana exigiram milhares de milhares de anos, fere diretamente a base do quarto mandamento [...]. É a incredulidade em sua forma mais traiçoeira, e portanto mais perigosa; seu verdadeiro caráter se acha tão disfarçado que é tal opinião mantida e ensinada por muitos que professam crer na Bíblia” (Ellen G. White, Patriarcas e Profetas [CPB, 2007], p. 111).

Na tentativa de dá uma base bíblica a sua teoria de que os dias da criação representam longos períodos de anos, as Testemunhas de Jeová citam em suas literaturas o texto de 2 Pedro 3:8, que diz: “Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia.” Pedro não está dizendo que cada dia da criação equivale a mil anos pelas seguintes razões:

1) Ele não estava falando da criação do Gênesis, mas, da volta de Jesus. Por isso, o argumento dele é o de que o Senhor sabe melhor que ninguém o dia que tem de voltar a esse mundo para terminar com o pecado.

2) A conjunção comparativa – como (como mil anos) está apenas comparando um dia de 24h com mil anos porque Deus é eterno e, para Ele, não faz diferença um dia de mil anos. Pedro não usou o termo “um dia é mil anos”. Portanto, ele comparou um dia com mil anos e não afirmou que um dia é mil anos.

3) A teoria da lacuna ou do “intervalo passivo”: Muitos cristãos defendem a existência de uma "lacuna" ou “intervalo” de tempo entre os versículos de Gênesis 1:1, 2 e 1: 1:3-31, argumentando que a expressão “no princípio criou Deus os Céus e a Terra” refere-se à criação do Universo, incluindo a Terra em seu estado bruto, há bilhões de anos. Portanto, quando a História começou, a Terra já estava aqui, mas ainda era tohu vhohu (“sem forma e vazia”), escura e úmida. Na última parte do versículo 2 diz-se que o Espírito Santo pairava por sobre as águas, mostrando a existência da água bem antes da semana da criação. Depois disso, em outro estágio, a 6.000 anos atrás, Deus organizou os elementos em nosso planeta e fez surgir nele a vida, em seis dias consecutivos de 24 horas. No sétimo dia, Ele terminou Sua obra e descansou (Gn 2:2). Para esses cristãos, essa teoria se harmoniza com as descobertas científicas sobre a idade da Terra, que indicam que o planeta tem bilhões de anos. Essa abordagem busca manter a integridade da fé religiosa sem negar os avanços da ciência nesse aspecto.

Importante dizer que, os cristãos que promovem essa teoria não pretendem, de forma alguma, endossar as datações geológicas de milhões de anos adotadas pelos evolucionistas. A ideia de que as camadas geológicas e os fósseis ali contidos datam de milhões de anos confronta com o relato bíblico da criação, que revela que a criação da vida é recente.

QUAL TEORIA É SUSTENTADA PELA IGREJA ADVENTISTA?

Para responder a essa pergunta citamos a Enciclopédia Adventista do Sétimo Dia: “Os adventistas sempre defenderam a crença na criação ex nihilo – que Deus não dependeu de matéria preexistente quando trouxe a Terra à existência. Eles geralmente admitem como fato consumado que, no primeiro dia da criação, Deus criou a matéria que compunha a Terra e a seguir prosseguiu com a obra dos seis dias. Desde o início, porém, tem havido alguns adventistas para quem Deus, mediante Sua palavra, criou a substância da Terra antes dos eventos ocorridos nos seis dias literais da criação” (p. 357). (Citado em Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 103).

Como se vê, a teoria predominante entre os adventistas é a criacionista tradicional. Contudo, nem sempre foi assim. Nos primórdios do adventismo, a teoria da lacuna era predominante entre os pioneiros adventistas. MC Wilcox em 1898 escreveu: “Quando Deus criou, ou trouxe à existência, o céu e a terra? 'No princípio.' Quando foi esse 'início', quanto tempo durou, é inútil conjecturar; pois não é revelado. É evidente que foi um período anterior aos seis dias de trabalho” ("O Evangelho em Gênesis Um", The Signs of the Times, 24.27 (7 de julho de 1898): 16). Hoje, ainda há muitos adventistas que sustentam a teoria do “intervalo passivo”. Estou entre eles. Até porque, como afirmou o teólogo adventista Gerhard Pfandl, “o primeiro capítulo de Gênesis admite, portanto, duas teorias: a do intervalo passivo e a criacionista tradicional” (Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 103).

Embora as Sagradas Escrituras não digam explicitamente que o Universo e a própria Terra já existiam muito antes do início da vida na Terra, temos boas razões bíblicas para acreditar nessa interpretação. Em primeiro lugar, em Jó 38:4-6, Deus afirma que houve seres vivos, chamados de “filhos de Deus”, que rejubilaram enquanto Ele “lançava os fundamentos da Terra”. A implicação lógica desse texto é que seres preexistentes viviam no Universo antes da criação da Terra. Acreditar que todo o Universo passou a existir a partir da semana da criação traz sérias dificuldades para o intérprete desse texto. Em Segundo lugar, a serpente estava presente no jardim do Éden antes que Adão e Eva pecassem (Gn 3:1; Ap 12:9), sem que haja qualquer referência à sua origem, sugerindo que ele já existia naquela semana inicial. O livro de Ezequiel descreve Satanás no jardim do Éden como coberto de pedras preciosas (Ez 28:13).

Ainda em referência a Lúcifer, Isaías 14 diz-nos que, quando ele rebelou-se contra Deus, alguns elementos cósmicos já existiam: ele desejava subir “acima das estrelas de Deus” (v. 13) e “acima das mais altas nuvens” (v. 14), evidenciando nitidamente que o Universo, com seus elementos básicos (tempo, matéria e vida), já existiam antes da semana da criação.

Em terceiro lugar, o próprio relato de Gênesis 1:1-3 deixa claro que, quando Deus criou a luz, no primeiro dia, o Espírito de Deus “pairava por sobre as águas”. O teólogo adventista William H. Shea, ao comentar essa passagem no Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, reconhece “o fato de que a Terra inerte se achava em um estado aquoso antes dos acontecimentos da semana da criação” (p. 469). Vale ressaltar que, na história do adventismo, a teoria de que a Terra poderia ter sido criada em um estado aquoso, sem forma e vazia antes da semana da criação não é totalmente nova. De acordo com o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, várias pessoas, desde os tempos do pioneiro adventista Uriah Smith, década de 1860, tinham a compreensão de “que o testemunho bíblico sugere, ou pelo menos permite sugerir, que a substância da Terra e do sistema solar tenha resultado, pelo menos em parte, de atividade criadora ocorrida anteriormente à semana da Criação (v. 1, p. 24).

Em quarto lugar, ao lermos o relato dos dias da criação em Gênesis 1, notamos que cada dia é introduzido com a expressão “e disse Deus”, e concluído com “houve tarde e a manhã, o primeiro dia”, “houve tarde e a manhã, o segundo dia”, e assim sucessivamente. Acontece, que esse padrão repetitivo empregado para cada dia da criação não é usado nos versículos 1 e 2, o que sugere a ideia de que esses versos não fazem parte do primeiro dia da criação (v. 3-5), mas a um tempo ou período muito anterior a semana da criação. Desse modo, não obstante os eventos ocorridos na semana da criação tenham acontecido entre 6 e 10 mil anos, as Sagradas Escrituras apontam diversas evidências de que o Universo, assim como a própria Terra em seu estado físico, é muito mais antigo que isso.

Particularmente, não tenho dúvidas de que, o relato da criação apresenta a ação de Deus em dois momentos distintos: o primeiro, criando a matéria e a energia (Gn 1:1, 2); e o segundo, dando forma a essa matéria e trazendo à existência seres vivos (Gn 1:3-31). Crer dessa forma não significa diminuir o poder criador de Deus. Sendo soberano, ele pode escolher criar como desejar, seja de uma vez ou em etapas, sem que isso signifique apoio à teoria da evolução.

Vale aqui destacar um pensamento relevante de Ellen G. White: “Na verdadeira ciência não pode existir coisa alguma contrária aos ensinamentos da Palavra de Deus, uma vez que ambas são originadas do mesmo Autor. A correta compreensão das duas sempre provará que se encontram em mútua harmonia” (Testemunhos Para a Igreja, v. 8, p. 258). A ciência mostra que o Universo e o próprio planeta Terra são muito mais antigos que a vida na Terra. Nesse aspecto, as Sagradas Escrituras e a ciência estão, como afirmou Ellen White, “em mútua harmonia”, e nos mostra que ciência e Bíblia, quando há “correta compreensão das duas”, podem andar de mãos dadas.

CONCLUSÃO:

A questão de que a Terra já existia antes da semana da criação em Gênesis 1 é um tópico complexo que tem sido desafiado por teólogos e estudiosos ao longo da história. As duas interpretações teológicas, como a teoria criacionista tradicional e a teoria da lacuna prevalecentes no meio adventista, fornecem maneiras diversas de abordar essa questão. Cada cristão é livre para escolher a que melhor responde as suas necessidades. Independentemente da visão que alguém adote, é importante lembrar que a mensagem fundamental de Gênesis 1 é uma crença na criação divina e no poder criativo de Deus.

A discussão sobre a Terra pré-existente não deve obscurecer o ponto central da passagem, que é o reconhecimento de que o relato da criação em Gênesis foi um fato histórico, de um Deus amoroso que criou todas as coisas visíveis e invisíveis, em seis dias de 24 horas. Portanto, embora esse debate teológico possa ser interessante e desafiador, ele não deve desviar a atenção da fé fundamental nas Escrituras Sagradas e na importância da adoração a Deus como Criador. A doutrina da criação deve nos levar a uma experiência de admiração e obediência a Deus Yahweh, à semelhança do que ocorreu com o profeta Isaías (cap. 6).