por
Nicholas P. Miller*
Uma visão do relacionamento adventista com outras igrejas, no passado, presente e futuro
Para alguns cristãos, o
termo “ecumenismo” é uma palavra repugnante. Muito frequentemente, essa atitude
tem levado à intolerância doutrinária e relacional para com outros cristãos. A
apatia resultante e o desinteresse em relação a outros cristãos são
justificados por meio de argumentos vagos como “permanecer em defesa da
verdade” ou “evitar compromisso”. Mas, muitas vezes, tal apatia representa
simplesmente má vontade em ir além da familiar e rotineira zona de conforto. Ou,
pior, pode ser motivada por um senso de elitismo, até mesmo fanatismo, em
relação a outros cristãos.
A fim de evitar essas
barreiras à cordialidade, necessitamos pensar cuidadosamente a respeito de
nossa visão da igreja de Deus nos aspectos visível e invisível. Porém, temos
que ser muito cuidadosos na abordagem desse tema. Um cuidadoso estudo de nossa
história e nossos ensinamentos mostrará que há um ecumenismo positivo e outro
nocivo. O positivo diz respeito à consideração, ao cuidado, apoio prático que
deve haver entre os cristãos. O ecumenismo nocivo é uma busca mais formal, ideológica,
por uma unidade institucional e doutrinária. Vamos analisar as duas formas.
O
lado positivo
Muitos de nós talvez
fiquemos surpresos ao aprender que nossas crenças fundamentais reconhecem a validade
da igreja ecumênica. Os dicionários definem a palavra ecumênico como significando
literalmente universal. Nossa crença fundamental número 12, “O remanescente e
sua missão”, começa com estas palavras: “A igreja universal se compõe de todos
os que verdadeiramente creem em Cristo.”1 Essa declaração reconhece
que Cristo tem cristãos fiéis em muitos lugares, incluindo o
espectro das denominações cristãs.
Porém, não devemos nos
esquecer de acrescentar estas linhas: “mas, nos últimos dias, um tempo de ampla
apostasia, um remanescente tem sido chamado para fora, a fim de guardar os
mandamentos de Deus e a fé em Jesus.”2 Na verdade, cremos na função
especial que tem um remanescente visível, com uma mensagem e missão especiais. Entretanto,
nunca ensinamos que a realidade desse remanescente nega a existência da igreja
universal, invisível. Ao contrário, nossos pioneiros sempre reconheceram que,
de acordo com Ellen G. White, “há cristãos verdadeiros em todas as igrejas,
inclusive na comunidade católico-romana”.3
O movimento adventista
do século 19 foi um dos movimentos verdadeiramente ecumênicos dos tempos
modernos. Guilherme Miller era batista, mas pregava sua mensagem do advento em
igrejas de muitas denominações. Inicialmente, aqueles que se tornavam adventistas
não deixavam essas igrejas, mas, em muitos lugares, foram eventualmente
forçados a sair.
À medida que o
movimento crescia, ganhava representantes de quase todas as denominações
americanas – metodistas, batistas, presbiterianos, congregacionalistas e
conexão cristã. Depois do desapontamento de 1844, o movimento adventista, que
se tornou Igreja Adventista do Sétimo Dia, foi composto de ex-membros daquelas
igrejas.
Alguns mantêm a visão de
que nossos pioneiros se sentaram em uma sala com a Bíblia nas mãos e montaram
um conjunto inteiramente novo de crenças e práticas, reconstruindo a igreja do
Novo Testamento a partir do zero. A realidade é que os primeiros adventistas
tomaram crenças e práticas de uma variedade de grupos, esquadrinharam-nas através
do filtro bíblico, adotando e adaptando aquelas que foram aprovadas nesse
teste. De fato, algumas de nossas práticas litúrgicas não estão ordenadas nem
mesmo descritas na Bíblia, mas foram adaptadas de outras igrejas cristãs. Entre
elas estão as reuniões de oração semanais, Escola Sabatina, reuniões campais, a
ordem litúrgica, coleta de ofertas, Santa Ceia trimestral, e outras que afetam
nosso culto e práticas de testemunhar. Os adventistas do sétimo dia são, eles mesmos,
o resultado de um verdadeiro movimento ecumênico bíblico.
As
mensagens angélicas
Alguns poderiam
argumentar que, com o início da pregação das três mensagens angélicas de
Apocalipse 14, no fim dos anos 1840 (incluindo a mensagem do segundo anjo sobre
a queda de Babilônia), não mais pode haver associação com outras igrejas
cristãs que compõem a Babilônia caída. Essa simplesmente não foi a compreensão
dos nossos pioneiros. Em vez disso, eles foram ativos em compartilhar com
outros cristãos pontos em comum, principalmente contra a escravidão e em favor
da temperança e da liberdade religiosa.
Ellen G. White falou a
grandes audiências de não adventistas, defendendo leis de temperança, assim como
pregou em púlpitos de igrejas de outras denominações. Além disso, ela usou
comentários bíblicos e livros religiosos escritos por outros cristãos depois de
1844, chegando a se referir a alguns comentários não adventistas de seu tempo
como estando entre seus “melhores livros”.4
Dirigindo-se aos
pastores adventistas, estimulando-os a se envolverem no trabalho pessoal em favor
de outros pastores, ela escreveu: “Nossos pastores devem procurar aproximar-se
dos pastores de outras denominações. Orem por esses homens e com eles, por quem
Cristo está fazendo intercessão. Pesa sobre eles solene responsabilidade. Como mensageiros
de Cristo, cumpre-nos manifestar profundo e fervoroso interesse nesses pastores
do rebanho.”5
Dois pontos merecem ser
especialmente notados: Primeiro, devemos orar “por esses homens e com
eles”. Aqui, a preposição “com” implica não apenas preocupação evangelística,
mas também companheirismo. Segundo, devemos notar seu reconhecimento de que
esses pastores também são “pastores do rebanho”. Essa
fraseologia é o reconhecimento de que esses pastores de outras
denominações também estão velando sobre “o rebanho” de Cristo.
Como isso deve ser
compreendido à luz da mensagem do segundo anjo, que anuncia a queda de
Babilônia? O quarto anjo de Apocalipse 18 indica que Babilônia terá caído
completamente quando ela estiver comprometida com os poderes comerciais e civis
do mundo, e usar as forças civis para fins religiosos. Ellen G. White e os
pioneiros compreendiam a mensagem do quarto anjo como estando ainda no futuro,
e que Babilônia, ao cair, continua a abrigar fiéis cristãos com os quais
podemos e devemos nos relacionar. Somente quando esses cristãos usarem o poder
estatal a fim de perseguir aqueles dos quais discordam em questões espirituais,
teremos chegado ao ponto em que não mais podemos conviver em harmonia.6
A análise contextual do
capítulo evidencia que, mesmo em nossos dias, a mensagem do quarto anjo ainda
está no futuro. Assim sendo, muitos pastores adventistas estão envolvidos, e
muitos outros deveriam estar empenhados em visitar pastores de outras
denominações e orar com eles. Esse relacionamento também serve como base para
um trabalho conjunto em assuntos comunitários, como liberdade religiosa,
criacionismo, igualdade racial, família e casamento.
Isso enfatiza o fato de
que o ecumenismo prático é uma questão local envolvendo assuntos comunitários. Justiça
social enraizada no evangelho e na vinda de Cristo foi a base do ecumenismo
adventista histórico. Temperança, combate à escravidão e liberdade religiosa
foram esforços destinados a proteger e afirmar pobres, fracos, jovens e marginalizados.
Os adventistas necessitam ser despertados e novamente inspirados para esse tipo
de esforço interdenominacional bem orientado.
O
lado negativo
Evidentemente, também
houve limites no ecumenismo adventista dos pioneiros, particularmente no que se
refere ao ecumenismo ideológico formal. Um claro exemplo histórico desses
limites foi a Conferência Missionária Mundial de 1910, realizada em Edimburgo,
Escócia. Os adventistas assistiram a esse evento e participaram das reuniões,
mas se recusaram a apoiar a divisão de campos missionários mundiais entre as várias
denominações.7
Essa recusa pode ter
parecido uma atitude mesquinha, sectária e arrogante, mas podemos firmemente garantir
que o Senhor não abençoaria os resultados de uma concordância. Sem essa recusa,
é improvável que os adventistas do sétimo dia se tornassem a denominação
evangélica mais difundida no mundo, com mais de 17 milhões de membros em mais
de 200 países, operando o mais disseminado sistema educacional e médico no
mundo. Humildemente, reconhecemos que o poder de Deus faz com que as pequenas
coisas se tornem muito grandes, e devemos estar sempre atentos às advertências contra
a jactância de nos acharmos “ricos e abastados” (Ap 3:17).
Por si mesmo, o
crescimento não é prova de que estamos certos, embora a falta dele
provavelmente evidencie que estejamos indo na direção errada. De todo modo, há
duas questões importantes diante de nós: Por que o adventismo resistiu à
divisão do campo missionário? Qual é o princípio que levou à recusa e que
também pode limitar nosso envolvimento no movimento ecumênico formal de hoje?
Sábado
e ecumenismo
Uma razão fundamental
para essa dificuldade se centraliza em nossa crença de que o sétimo dia, o
sábado, é o dia do Senhor. O sábado ergue barreiras históricas, proféticas, teológicas
e práticas ao nosso pleno envolvimento com o moderno movimento ecumênico.
Em primeiro lugar, como
assunto prático, nosso dia especial de adoração cria uma barreira ao culto
regular com outros grupos cristãos. Esses grupos podem se reunir, sem
problemas, para o culto de adoração. Mas o compromisso central de nosso culto é
que ele se realiza em um dia em que poucas igrejas também se reúnem para adorar.
Podemos até realizar e assistir cultos em outros dias, por causa de algum
evento especial, assim como outros cristãos podem fazer o mesmo no sábado. Mas
essa não é a prática rotineira.
Em segundo lugar, nossa
observância do sábado nos tem dado grande sensibilidade para com a situação das
minorias religiosas que têm sido perseguidas pelo fato de manterem crenças
diferentes das tendências atuais da maioria. O antissemitismo tem uma longa e
desafortunada história na Europa e na América, e frequentemente a marca da intolerância
inclui a observância do sábado.
Depois do início da
Reforma, luteranos, calvinistas e católicos se uniram na perseguição e no assassinato
de anabatistas, por causa das crenças deles. Alguns anabatistas observavam o
sábado do sétimo dia e foram objeto de perseguição por causa dessa prática. Na
América do fim do século 19, adventistas foram penalizados e encarcerados por
transgredirem leis dominicais.8 Acreditava-se que os grupos minoritários
poderiam ser pressionados a aceitar as crenças da maioria, ou talvez a
minimizar crenças não defendidas por essa maioria. Diante disso, quando
cristãos começaram a se reunir em grupos, propondo unidade nos pontos em comum,
os adventistas ficaram preocupados.
Na verdade, como
adventistas, cremos que, em algum ponto no futuro, certas práticas de culto
mantidas pela maioria serão impostas por meio de leis governamentais. Assim, somos
firmemente refratários a projetos direcionados a buscar unidade por meio do
jogo da minimização teológica ou doutrinária. Temos crenças fundamentais,
distintivas, como o sábado, que a História nos mostra ser vulnerável à
minimização por parte de outros cristãos.
Em terceiro lugar,
encontramos no sábado uma autoridade teológica inerente. Cremos que o sábado
não é simplesmente um dia da semana, mas uma expressão da amorável autoridade
de Deus. O sábado nos lembra de que Ele nos criou por amor. Também nos lembra,
de modo especial, Sua autoridade como Criador. De que maneira o sábado é um memorial
único dessa autoridade? Alguns dos dez mandamentos, como leis contra roubos,
assassinatos e adultério, podem ser estabelecidos por autoridades civis,
independentemente da Bíblia. Porém, o sábado do sétimo dia foi estabelecido
apenas por uma ordem especial de Deus.
A psicologia pode nos
ensinar que seres humanos funcionam melhor e são mais saudáveis por repousarem um
dia entre os sete da semana.9 Mas não pode nos dizer que o melhor
dia para repousar seja o sétimo dia. Assim, ao observar o sábado como santo dia
do Senhor, revelamos um sinal especial de submissão à amorável autoridade de
Deus. No sábado, criação, amor e autoridade estão juntos em um expressivo
símbolo de adoração.
Como adventistas, não
cremos que sejamos salvos por causa da observância do sábado. Mas, cremos que
essa observância é um reconhecimento especial da autoridade divina, em
contraste com a autoridade humana, seja ela expressa pela tradição, por um
magistério ou pela vontade da maioria. O ecumenismo formal tende a dizer, pelo
menos na prática, que as coisas importantes para a maioria devem ser
importantes para todo o mundo. Assim, a autoridade do grupo tende a determinar
quais são as doutrinas importantes e de que maneira elas são definidas.
Acaso, não é assim que
todas as declarações de crenças são formuladas? É verdade. Porém, à mesa adventista
permanece o compromisso de tratar as Escrituras como autoridade final, a norma
pela qual todas as reivindicações da razão, da História e da experiência são
julgadas. Ao observarmos as denominações cristãs de hoje, vemos uma variedade de
abordagens de autoridade doutrinária e ensino. Há diferentes pontos de vista
sobre o papel da tradição, a importância do ensinamento do magistério, e
métodos de estudo da Bíblia, como o método crítico superior, que os adventistas
colocam abaixo da autoridade escriturística.
Autoridade
bíblica
Para os adventistas do
sétimo dia, a autoridade das Escrituras provém de Deus, falando através do
Espírito Santo a uma comunidade comprometida em observar o memorial semanal de
Sua soberania. Isso nos faz relutantes em nos unirmos a grupos para os quais a
autoridade final se encontra na tradição, nos credos, em um sacerdócio ou
magistério, ou em algo como maioria na comunidade cristã.
O movimento milerita,
como exemplo de um verdadeiro movimento ecumênico bíblico, deve ser aplaudido.
Ele estava fundamentado na busca da verdade bíblica, comprometido com a
autoridade final das Escrituras, conforme executada pelo Espírito Santo na
comunidade de crentes. Cremos que esse movimento ecumênico, universal, ocorrerá
novamente antes da segunda vinda de Cristo e que ele incluirá “toda nação, tribo,
língua e povo” (Ap 14:6).
Oremos para que minha
igreja, sua igreja e muitas outras igrejas tenham humildade a fim de que sejam parte
desse movimento. Enquanto isso, compartilhemos nossos dons, aproximemo-nos de
outros cristãos e pastores, não em busca de unidade superficial, imposta por
homens, mas a unidade genuína, biblicamente fundamentada, de acordo com o
“assim diz o Senhor!”
Tempo
de oportunidade
“Ninguém recebeu até
agora o sinal da besta. Ainda não chegou o tempo de prova. Há cristãos verdadeiros
em todas as igrejas, inclusive na comunidade católico-romana. Ninguém é
condenado sem que haja recebido iluminação nem se compenetrado da
obrigatoriedade do quarto mandamento.”
“Mas ninguém deverá
sofrer a ira de Deus antes que a verdade se lhe tenha apresentado ao espírito e
consciência, e haja sido rejeitada. Há muitos que nunca tiveram oportunidade de
ouvir as verdades especiais para este tempo. A obrigatoriedade do quarto mandamento
nunca lhes foi apresentada em sua verdadeira luz. Aquele que lê todos os corações
e prova todos os intuitos, não deixará que pessoa alguma que deseje o
conhecimento da verdade seja enganada quanto ao desfecho da controvérsia.”
“Deve-se dispensar o mais
prudente e mais firme trabalho aos pastores que não pertencem à nossa fé.
Muitos há que não sabem nada melhor do que serem desviados por pastores de
outras igrejas. Orem e trabalhem obreiros fiéis, tementes a Deus e
fervorosos..., orem e trabalhem, digo, pelos pastores sinceros que foram
ensinados a interpretar mal a Palavra da Vida. Muitos pastores que agora pregam
o erro hão de pregar a verdade para este tempo”.
Linha
divisória
“Os poderes da Terra,
unindo-se para combater os mandamentos de Deus, decretarão que todos, ‘pequenos
e grandes, ricos e pobres, livres e servos’, se conformem aos costumes da
igreja, pela observância do falso sábado. Todos os que se recusarem a se
conformar serão castigados pelas leis civis, e se declarará finalmente serem
merecedores de morte. Por outro lado, a lei de Deus que ordena o dia de
descanso do Criador, exige obediência, e ameaça com a ira divina todos os que
transgridem seus preceitos.”
“O sábado será a pedra
de toque da lealdade; pois é o ponto da verdade especialmente controvertido. Quando
sobrevier aos homens a prova final, será traçada a linha divisória entre os que
servem a Deus e os que não O servem. Ao passo que a observância do sábado falso
em conformidade com a lei do Estado, contrária ao quarto mandamento, será uma
declaração de fidelidade ao poder que se acha em oposição a Deus, é a guarda do
verdadeiro sábado, em obediência à lei divina, uma prova de lealdade para com o
Criador. Ao passo que uma classe, aceitando o sinal de submissão aos poderes
terrestres, recebe o sinal da besta, a outra, preferindo o sinal da obediência
à autoridade divina, recebe o selo de Deus”.
*Nicholas
P. Miller é professor associado de História na Universidade Andrews,
Estados Unidos.
Referências:
1. Nisto Cremos, p.
211. 2
2. Ibid.
3. Ellen G. White,
Evangelismo, p. 234.
4. Herbert Douglas, A
Mensageira do Senhor, capítulo 12.
5. Ellen G. White,
Evangelismo, p. 562.
6. ___________, O
Grande Conflito, p. 603-605. 7 F. L. Cross e E. A. Livingstone, editores, The Oxford
Dictionary of the Christian Church(Oxford: Oxford University Press, 2005);
7. George Knight,
Historical Sketches of Foreign Missions (Berrien Springs, MI: Andrews University
Press, 2005), p. 18-26.
8 George H. Williams,
The Radical Reformation (Kirksville, MO: Truman State University Press, 2000),
p. 272; Bryan Ball, The SeventhDay Men (Oxford: Clarendon Press, 1994), p. 37;
W. L. Emerson, The Reformation and the Advent Movement (Hagerstown, MD: Review and
Herald, 1983), p. 73-75; para descrição do aprisionamento, julgamento e
condenação de adventistas do Sétimo dia, no século 19, por causa da observância
do sábado, ver William A. Blakely, American State Pages and Related Documents
on Freedom in Religion (Washington, DC: Review and Herald, 1949), p. 457-512).
9. Neil Nedley, Proof
Positive (Amore, OK: Neil Nedley, 1999), p. 504.
FONTE:
Ministério
jul-ago 2014, p. 17-20.