Teologia

quarta-feira, 29 de abril de 2020

É POSSÍVEL SER CRISTÃO E MARXISTA AO MESMO TEMPO?


Ricardo André

Introdução

Na primeira metade do ano de 1984, tornei-me Adventista do Sétimo Dia, depois de participar de uma série de estudos bíblicos, num Evangelismo Público, realizado pela Igreja Adventista da Cidade do Cabo de Santo Agostinho/PE. Convencido de que os ensinos e crenças adventistas estavam em perfeita harmonia com as Sagradas Escrituras, decidi me batizar no dia 17 de agosto de 1985, e fui logo integrado ao Grupo do Bairro São Francisco. Era ainda uma criança com apenas 12 anos de idade, mas com uma firme convicção de que estava tomando a melhor decisão da minha vida, e de que Cristo estava conduzindo minha decisão. Aquele foi um dia muito feliz para mim, que marcou indelevelmente minha vida. Esse ano (2020) fará 35 anos que entreguei minha vida a Jesus através do batismo. Nunca me arrependi da decisão que tomei naquele ano.

Ao atingir a adolescência, mais precisamente aos 16 anos de idade, muitas dúvidas de natureza social povoaram minha mente. Nasci e cresci num bairro periférico da Cidade do Cabo de Santo Agostinho, onde a pobreza era marcante, centenas de crianças e jovens viviam em situação de vulnerabilidades sociais. Ao perceber essa realidade, comecei a me perguntar: Por que uns são ricos e outros são pobres? Por que uns são bem alimentados e podem estudar até a universidade, enquanto outros devem procurar emprego desde cedo? Por que existem desigualdades sociais? É justo que uns poucos tenham tanto e muitos não tenham nada? Por que existem ricos e pobres? Então, decidi buscar respostas para essas e outras perguntas que todas as pessoas, mais cedo ou mais tarde, se defrontarão com elas. Como cristão, eu já sabia pela Palavra de Deus que todas as injustiças, discriminação e outras mazelas existentes nas sociedades tinham sua raiz e origem no pecado. O pecado afeta toda a nossa existência, inclusive as relações sociais. Ele tornou o homem ambicioso e egoísta. Entretanto, complementarmente queria obter uma explicação científica.

Comecei a frequentar assiduamente a Biblioteca Pública da minha cidade para pesquisar nos livros as respostas para minhas dúvidas. Foi aí que tive contato e aproximação com o filósofo alemão Karl Marx. Além do Manifesto do Partido Comunista (obra de Marx e Engels, publicada na Europa em 1848), li diversas outras obras de autores marxistas, as quais me fizeram entender as causas das diferenças sociais existentes na sociedade capitalista. Compreendi que o capitalismo é injusto e irracional porque é fundado na “exploração do homem pelo homem”. E essa exploração da classe trabalhadora (classe dominada) por parte da burguesia (classe dominante) é o único meio desta lucrar. Nesse tipo de sociedade os trabalhadores precisam se submeter à burguesia. Recebem um salário e, em troca, sua capacidade de trabalhar fica à disposição do patrão. O patrão procura explorar o máximo essa capacidade de trabalho. Desse modo, o valor do trabalho realizado pelo operário acaba sendo maior do que o salário que recebe. Tudo o que o proletário produz além do valor do seu salário é embolsado pelo patrão. O valor da produção excedente é a origem do seu lucro. Marx chama essa diferença de mais-valia. Compreendi que o fato dos trabalhadores não possuírem quase nada está relacionada justamente a essa exploração capitalista. O produto do trabalho de milhões de homens e mulheres vão de graça para a burguesia. O capital acumulado é o resultado do trabalho não-pago. Dessa maneira, trabalhadores e capitalistas estão em classes opostas: o ganho de um representa a perda para o outro. Essa é, para a teoria marxista, a essência da luta de classes (materialismo dialético): o capitalista ganha à medida que o trabalhador perde.

Sobre isso, Marx afirmou: “Capital, por isso, não é apenas comando sobre trabalho, como dizia A. Smith. É essencialmente comando sobre trabalho não pago. (…) O segredo da auto expansão ou valorização do capital se reduz ao seu poder de dispor de uma quantidade determinada de trabalho alheio não pago.”1.

Assim, para a teoria marxista a luta de classes seria “o motor da história”. Portanto, o marxismo percebe a luta de classes como meio para o fim dessa exploração, bem como para instituição de uma sociedade onde os produtores seriam os detentores de sua produção.  

Compreendi ainda que o capitalismo é explorador, desumano e irracional por causa da propriedade privada. Como os burgueses são os detentores dos meios de produção (fábricas, terras, bancos, empresas em geral), eles submetem milhões de trabalhadores. De acordo com Marx, a única solução para acabar com a exploração é a destruição do capitalismo pelos próprios trabalhadores, tomando para si os meios de produção e o governo, suprimindo a burguesia e os seus meios de hegemonia e manutenção do poder, que constituem os conjuntos chamados infraestrutura e superestrutura, e construir uma nova sociedade, em que as terra e as empresas pertenceriam à coletividade. Tudo seria de todos, e os frutos, distribuídos de acordo com o trabalho de cada um. Ninguém teria condições de explorar os outros. Sendo, então, uma sociedade sem classes, justa e igualitária. Ele chamou essa sociedade de socialista.

Ao ser desnudado para mim a contradição das relações capitalistas e suas mazelas, logo aderir as ideias socialistas, também chamadas marxistas. A partir de então o marxismo passou a ser para mim uma chave de leitura da realidade. Ao mesmo tempo que compreendia o funcionamento da sociedade capitalista, descobria que havia partidos políticos no Brasil de inspiração socialista, denominados de “esquerda”, a exemplo do Partido dos Trabalhadores. Há mais de um século o marxismo passou a ser a principal expressão do pensamento da esquerda não somente do Brasil, mas do mundo. E que haviam partidos de direita que defendiam a permanência da ordem vigente, ou seja, o capitalismo e a desigualdade social oriundo dele, chamados de “direita”, a exemplo do PFL (hoje DEM). Tal compreensão foi determinante para que votasse pela primeira vez, aos 16 anos, em Lula para Presidente, em 1989, primeira eleição presidencial após os 21 anos de Ditadura Civil-Militar. De lá para cá nunca mais deixei de votar no PT e em outros partidos de esquerda.

A pergunta que se impõe é: como cristãos, podemos defender as ideias marxistas? Um cristão pode ser de esquerda? O propósito deste artigo é promover essa reflexão a partir de minha experiência pessoal e em alguns princípios da Palavra de Deus.

Ser marxista não significa aceitar a totalidade das ideias preconizadas por Marx

Alguns colegas, que enxergam um espectro marxista rondando o Brasil e esse espectro existiria há muito tempo, se surpreendem ao saber que defendo algumas ideias marxistas sendo cristão. Sou assaz criticado por alguns irmãos da minha comunidade religiosa por ser de esquerda. Para eles, sou um “inconverso” contraditório. Asseveram taxativamente que não dá para ser cristão e de esquerda e/ou marxista ao mesmo tempo por conta da natureza ateísta do marxismo. Certa vez, num Grupo de Whatsapp, um pastor adventista me perguntou num tom de reprovação como eu poderia defender um teoria que é, em essência, contrária ao cristianismo. De fato, em virtude de possuírem cosmovisões distintas, cristãos e marxistas muitas vezes estão situados em campos opostos. Não foi por acaso que Karl Marx, no século XIX, se referiu à religião, nos seguintes termos: “O sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo”.2 Ele ainda vislumbrava a possibilidade do desaparecimento do sentimento religioso com a eliminação da alienação, numa sociedade despojada da exploração do homem pelo homem e livre do trabalho alienado.

Se faz mister conhecer o contexto político em que estava inserido o jovem Marx para entender essa afirmação tão incisiva contra a religião. À época, a religião na Alemanha estava a serviço do Estado. E a elite dominante instrumentalizava a religião para conformar as pessoas (os dominados) a diferentes formas de opressão política e/ou econômica. Os líderes religiosos ensinavam os fiéis a se conformarem com a pobreza, com aquela ordem vigente, marcada pela exploração capitalista, impedindo desse modo que o povo se organizasse para reivindicar melhores condições de vida, melhores salários. Esse alinhamento político das igrejas cristãs com as classes socialmente dominante levou Karl Marx e outros socialistas a considerarem a religião como adversárias ideológicas dos trabalhadores. Por conta da sua condição de instrumento de conformação (e por consequência, de sujeição), a religião foi, então, metaforicamente caracterizada por Marx como um ópio, um mecanismo de alienação dos dominados. Portanto, quando Marx disse que “a religião era o ópio do povo”, ele se referia a essa religião criada pela elite social, alienante, que levava (e leva) o povo à aceitação das desigualdades e à passividade diante das injustiças. Penso que se as igrejas da Alemanha daquele período não estivessem a serviço da burguesia e estivesse do lado dos oprimidos, talvez Marx não teria formulado essa declaração.

Em seu artigo “A religião é o ópio do povo”, publicado no Blog Ativismo Protestante, o filósofo e poeta Felipe Catão torna mais clara essa frase de Marx e seus desdobramentos, à luz de seus contextos histórico, social e político:

                               "O ópio, naquele século, era um narcótico que a Companhia Britânica das Índias Orientais contrabandeava às toneladas da Índia para a China, com a intenção de contrabalancear o comércio entre o Reino Unido e a China. O interesse pelos produtos chineses (chá, seda, porcelana) era enorme, ao passo que os chineses pareciam se interessar por único produto – o ópio. A menção ao ópio é como uma metáfora, pois o cerne da questão é a exploração dos mais pobres pelos mais ricos – nesse caso, os chineses (mais pobres), o Reino Unido (mais ricos). Para Marx, a religião servia para aliviar a vida dos explorados, que se apegavam a ela como uma compensação (o sofrimento religioso compensa o sofrimento real). Havendo um sociedade sem exploradores e explorados, a religião deixaria de existir, segundo Marx. A proposta de Marx era para que a classe operária saísse do seu entorpecimento e rompesse com o círculo de exploração do seu trabalho, e que reivindicasse o que era seu de direito: o controle do seu trabalho e a posse de seus frutos como propriedades legítimas; que abandonassem a felicidade ilusória, proporcionada pela religião, e tomassem posse da felicidade real. E isso somente poderia ser conquistado com a luta de classe e com a revolução. De outro modo, os ricos e poderosos jamais iriam renunciar ao seu papel de explorador. Colocando a frase (“a religião é o ópio do povo”) dentro do seu contexto histórico-sócio-político, a crítica de Marx visava atingir as religiões dominantes de então, que não só comungavam, mas colaboravam diretamente com as classes dominantes e com os exploradores da classe trabalhadora. Religiosos exaltavam e enalteciam a experiência religiosa como a realização fundamental terrena do ser humano, negando a eles o direito à luta de classes e a prática revolucionária, como que condenando a classe operária às privações sem o direito de aspirar à vida digna.”

Contudo, a concepção negativa que Marx tinha da religião não significa a impossibilidade de um cristão adotar o marxismo como método de análise da sociedade a fim de compreendê-la tampouco a impossibilidade de diálogo entre os cristãos e os marxistas a partir de pontos convergentes. Isso não significa necessariamente abandonar a fé. Eu sou cristão e tenho simpatia por algumas ideias marxistas, e conheço inúmeros cristãos adventistas e de outras denominações cristãs que também são de esquerda. E, não entendemos desde sempre que não trocamos uma coisa pela outra. É importante esclarecer que, ao dizer que sou marxista não quero dizer que tenho total identidade com as ideias de Karl Marx. Como também os cristãos dizerem, hoje, que são protestantes, não querem com isso dizer que adotam todo o conjunto de crenças do fundador do protestantismo, o monge teólogo Martinho Lutero. Por exemplo, ele era antissemita, desenvolveu um ódio descontrolado aos judeus, defendeu até a morte deles. No seu livro “Sobre os Judeus e suas Mentiras”, escrito em 1543, Lutero dedicou parágrafos horripilantes e indesculpáveis a eles:

"Esses vermes envenenados e venenosos devem ser recrutados para trabalhos forçados ou expulsos de uma vez por todas”.

“Temos culpa em não matá-los”.

“Queime suas sinagogas. Negue a eles o que disse anteriormente. Force-os a trabalhar e trate-os com toda sorte de severidade … são inúteis, devemos tratá-los como cachorros loucos, para não sermos parceiros em suas blasfêmias e vícios, e para que não recebamos a ira de Deus sobre nós. Eu estou fazendo a minha parte”.

“Resumindo, caros príncipes e nobres que têm judeus em seus domínios, se este meu conselho não vos serve, encontrai solução melhor, para que vós e nós possamos nos ver livres dessa insuportável carga infernal – os judeus”.3

Perguntamos: como cristãos, devemos endossar essas ideias de Lutero só porque somos protestantes? É óbvio que não! É consenso entre todos os cristãos modernos que tais declarações devem ser rejeitadas com veemência, uma vez que um dos valores cristãos é o amor ao próximo. Paulo afirmou: “Não devam nada a ninguém, a não ser o amor de uns pelos outros, pois aquele que ama seu próximo tem cumprido a lei” (Romanos 13:8, NVI). Aqueles que puseram em prática esse pensamento antissemita de Lutero no passado cometeram atrocidades com os judeus. Há quem diga que essas ideias influenciaram os alemães nazistas a matarem os mais de seis milhões de judeus na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Não obstante o seu antissemitismo, reconhecemos as contribuições vitais e decisivas que o reformador do século XVI fez para o mundo cristão. Ele contribuiu para o estabelecimento da liberdade de consciência e crença na Ocidente e resgatou importantes ensinos bíblicos há muito rejeitados e espezinhados por Roma, como a Salvação unicamente pela graça de Cristo, o sacerdócio de todo crente, o princípio sola Scriptura, que elevou o papel das Escrituras à condição de padrão único e fonte normativa da teologia, bem como devolveu a Bíblia às mãos das pessoas comuns.

Ora, assim como ser protestante não requer completa adesão a todas as ideias defendidas pelo monge Lutero, ser marxista não significa aceitar acriticamente todas as ideias de Karl Marx. Por exemplo, ele era materialista, ou seja, acreditava que não existia nada além da matéria. Portanto, era ateu. Diferentemente de Marx, acredito que há algo além da matéria, que há uma realidade transcendental. Nele, há um Deus amoroso que habita no Céu, e que criou o mundo e os vários seres vivos em seis dias, há alguns milhares de anos. Essa fé está baseada em uma confiança na Bíblia Sagrada, revelação desse Deus maravilhoso, que se relaciona com seus filhos. 

Embora Marx tenha negado a existência de Deus e a religião como forma de ligação com esse Deus, reconhecemos a contribuição do marxismo, como método de análise, na produção de conhecimento filosófico, histórico e sociológico na atualidade. Indubitavelmente, Marx foi um pensador de máxima envergadura, brilhante em suas análises e que revolucionou o pensamento filosófico, rompendo barreiras e desvelando a forma de organização de nossa sociedade. O conjunto de suas análises do modo de produção capitalista continuam válidas. Afinal, o sistema capitalista permanece, e como consequência, permanece também ainda hoje a exploração das camadas mais pobres pelas camadas mais ricas da sociedade. Suas ideias continuam inspirando aqueles que acreditam que é possível construir um mundo melhor, livre da exploração capitalista.

Todavia, como cristãos, não podemos endossar todas as formas de pensar e escrever de Marx, ainda que a essência de suas ideias seja boa e bem fundamentada cientificamente. Cabe aqui evocar uma interessante admoestação do apóstolo Paulo: “Examinem tudo, fiquem com o que é bom” (1Ts 5:21, NTLH). Foi exatamente o que fiz em relação ao marxismo, examinei-o durante anos, desde a minha adolescência. Aquilo que não era bom, por conflitar com minha cosmovisão, que é baseada na Bíblia Sagrada, lancei-o fora. Porém, aquilo que é bom no marxismo eu abracei, sem, contudo, abandonar um ponto sequer da fé.

Proximidade entre os valores cristãos e os valores marxistas

O cristianismo, maior expressão religiosa do mundo ocidental, surgiu antes do capitalismo, e “foi fundad[o] sobre os ensinamentos e ministério de Jesus e fundamentada na longa história das Escrituras hebraicas e de seus profetas”.4 Um dos aspectos importantes da comunidade dos cristãos primitivos era que eles tinham tudo em comum; vendiam suas propriedades e o dinheiro era distribuídos entre os necessitados. É o que se depreende dos textos de Atos 2:42-47 e 4:32-37. Portanto, o ideal da vida cristã é a partilha, a comunhão. Este é o sentido da comunidade, expressando a ideia de uma vida em comum-unidade com os outros. Não cabia ali a propriedade privada, a exploração e a desigualdade social. Ao estudarmos o Antigo Testamento descobrimos que esse era o ideal de Deus para Israel. Após libertar os hebreus da escravidão egípcia, depois de 400 anos de opressão, Deus queria estabelecer um novo tipo de sociedade com eles, que fosse uma sociedade justa e sem opressão (Êx 22:21-23; 23:9). Para a realização desse projeto Deus estabeleceu diversas leis e mandamentos. “Entre essas leis, destacava-se a preocupação com os concidadãos nessa nova sociedade, bem como o cuidado com os estrangeiros e os mais vulneráveis. Essas pessoas não deveriam ser exploradas”5 Mas, infelizmente, cedo a nação israelita afastara-se do ideal de Deus para ela. As estruturas econômicas e políticas foram transformadas, tornando-se menos participativas levando à exclusão. Formaram-se grupos sociais que enriqueceram a partir da exploração dos outros, provocando o surgimento de pobres explorados e oprimidos.

No capítulo 1 do profeta Isaías, podemos ver evidências do estado apóstata, rebelde e corrupto de Israel, com somente uns poucos permanecendo fiéis. Os líderes do professo povo de Deus, estavam tirando vantagem dessas classes desafortunadas e se enriquecendo às suas custas. Era dever daqueles que amavam a Deus, corrigir isso. Os opressores deveriam ser refreados, e os pobres, desafortunados e oprimidos precisavam ser libertados. O Senhor chama Israel ao arrependimento e a praticar obras dignas. Entre outras coisas Ele pede: “Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva” (Isaías 1:17). Se fizerem, o Senhor promete remissão dos pecados e perdão.

Nesse contexto, ao longo dos reinados de Israel e Judá, além do profeta Isaías, Deus enviou diversos outros profetas para denunciar e advertir o pecado da injustiça contra os oprimidos, bem como para lembrar aos líderes e ao povo suas responsabilidades para com os excluídos. “Embora pareça que os israelitas não conseguiram viver o projeto de uma sociedade justa e generosa, a comunidade da igreja primitiva levou a sério a ordem de que não deveria haver pobres entre eles (Dt 15:4). Uma das expressões práticas de sua fé foi compartilhar seus recursos materiais, até mesmo vendendo terras doando o valor recebido (veja At 4:34-5:2) a fim de atender aos que não faziam parte daquela nova comunidade [...]”.6

Sobre isso, a escritora cristã norte-americana Ellen G. White escreveu: “Contra a indisfarçada opressão, a flagrante injustiça, o luxo inusitado e extravagante, despudorados banquetes e bebedeiras, a grosseira licenciosidade e deboche de seu tempo, os profetas ergueram a voz; mas seus protestos foram vãos, em vão foi a denúncia do pecado”.7

Como se vê, a primeira comunidade cristã viveu o ideal de Jesus para ela, pautada nos valores da partilha e da comunhão. O ideal de uma sociedade onde o importante é o comum, aquilo que é de todos, uma sociedade justa e sem opressão é o que exatamente propõe os marxistas ou socialistas. Com isso, não estou afirmando que Cristianismo e Socialismo representam a mesma coisa tampouco que o socialismo seja o modelo bíblico para a humanidade, mas estou querendo dizer que ambos possuem ideais ou valores que se entrelaçam, como o da partilha e da comunhão, o desejo de construir uma sociedade justa e igualitária. Os ideais preconizados pela teoria marxista e que se afirmam cada vez mais no mundo de hoje: justiça social, liberdade, solidariedade, valorização do outro, atenção aos mais fracos, entre outros, tem suas raízes numa cultura permeada pela mensagem cristã. Não há como negar isso.

Portanto, eu não vejo nenhuma contradição à minha opção cristã pretender uma sociedade que não se funda na exploração de uma classe por outra, prática pecaminosa, inclusive denunciada pelos antigos profetas hebreus. Ao contrário do que dizem muitos cristãos direitistas de que um cristão não pode ser de esquerda ou marxista, que isso significa negar a fé, ao defender uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária não me afasta da “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Judas 3), uma vez que toda a Bíblia revelam que essa era a experiência que Deus queria que Seu povo vivenciasse. Acredito profundamente que uma pessoa, mesmo não sendo marxista, ler Marx desprovido de preconceito, poderá sentir-se constrangido ao encontrar em seus escritos mais de cristianismo do que em muitos escritores cristãos.

A internet está saturada de textos e vídeos produzidos por pastores, padres e leigos militantes da direita política, na inglória tentativa de provar, e ao mesmo tempo alertando os crentes, a respeito da incompatibilidade entre o cristianismo e o socialismo, descrevendo este último como algo diabólico. A pergunta que se impõe é: Esses líderes religiosos já leram sobre o Marxismo na própria fonte ou só reproduzem de terceiros? Provavelmente, a maioria de seus críticos nunca reservou um tempo para ler uma linha de "O Capital" ou do “Manifesto do Partido Comunista”. Mas, se ocupam em passar horas a fio assistindo aos vídeos do astrólogo falido Olavo de Carvalho, ou lendo seu livro "O Mínimo que você precisa saber para não ser um idiota." Não estou dizendo com isso que todos temos a obrigação de ler todas as obras de Marx. Mas se formos honestos, ao menos, procuraremos nos inteirar de algumas ideias antes de sair por aí combatendo-as com frases prontas que ouvimos de terceiros.

Sem querer desculpar e negar os diversos erros cometidos nos diversos países que implantaram o socialismo, a verdade é que, quando esses religiosos se ocupam em alertar os cristãos dos males do regime socialista -  na concepção marxista, eles incorrem no erro de achar que o capitalismo é um sistema totalmente compatível com a ética cristã. Certa feita, li numa rede social que o capitalismo era divino e contrapunha o diabólico socialismo. Isto é um equívoco gritante. Existem muitas demandas do capitalismo que também se chocam com os princípios morais que estão na Bíblia Sagrada. Sabemos que há também muita injustiça do lado capitalista. O capitalismo, por ser um sistema que pertence a este mundo corrompido, afetado pelo pecado, causa deturpações até mesmo dentro das igrejas cristãs, notadamente as neopentecostais. A famigerada Teologia da Prosperidade é fruto de uma mentalidade que coisifica e vende tudo, até mesmo os princípios religiosos. Os adeptos dessa teologia ensinam os crentes a "determinar" as bênçãos de Deus para sua vida. Essas bênçãos são sempre em termos materiais como curas, dinheiro e aquisição de bens materiais, estimulando, desse modo, os fiéis a buscarem o lucro como finalidade da fé através do mercantilismo religioso. Nítida influência pecaminosa do capitalismo.

Se o marxismo é anticristão em seu bojo por ser materialista (porém, no meu entendimento mais justo e solidário), o pragmatismo capitalista também se torna uma antítese do cristianismo ao desprezar os mandamentos divinos e buscar o lucro de maneira autônoma, desassociado da justiça. O espírito que move este sistema é o da ganância, do egoísmo, da perda de laços de comunhão. O resultado disto é um contexto perverso que perpetua a exclusão e a miséria entre milhões de pessoas no mundo enquanto alguns ricos burgueses esbanjam muito mais do que precisam para viver. A liberdade econômica sem contrapeso ético, sem corretivo social, é, portanto, também a liberdade conferida ao mais forte para aniquilar o mais fraco, e a liberdade outorgada ao mais rico para explorar o mais pobre. É a liberdade de uns que mata a liberdade de outros. O sistema capitalista vem trabalhando há mais de um século para destruir a cordialidade entre as pessoas, a solidariedade natural que fortalece o convívio, para despertar o individualismo que se sobrepõe à qualquer partilha comum aos afetos. Portanto, o modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Capitalismo e individualismo andam de mãos dadas. Este último introjeta em cada pessoa valores anticristãos, a exemplo da competição, a riqueza pessoal, o acúmulo de posses, fazendo com que a pessoa dê pouca importância para quem ficou para trás, excluída, para quem não conseguiu o "sucesso", a "vitória" no jogo; ela pensa somente no seu sucesso, tornando-a egoísta. Egoísta, a pessoa não pensa no esforço coletivo no sentido de conquistar direitos para todos. Influência satânica nesse sistema.

Os capitalistas que se “autodenominam cristãos” negam a vida em comunhão e pregam a acumulação de riqueza a partir da exploração da maioria, a competição e o individualismo. Tal prática nega os princípios elementares das Escrituras Sagradas. Diz-nos a Palavra de Deus: "Se vocês de fato obedecerem à lei real encontrada na Escritura que diz: "Ame o seu próximo como a si mesmo", estarão agindo corretamente" (Tg 2:8). Amar o próximo pressupõe, entre outras coisas, incorporar outros valores, pautados na tolerância, na solidariedade, no respeito mútuo, no trabalho coletivo e na cooperação entre as pessoas. 

Sobre isso, Ellen G. White foi clara ao afirmar: “A Palavra de Deus não sanciona nenhum plano que enriqueça uma classe pela opressão e o sofrimento de outra”.8   

Tiago 2:8Chega a ser cômico para não dizer trágico, afirmar que o sistema capitalista é cristão.

Evidentemente, Ellen White não estava se referindo diretamente ao sistema capitalista. O contexto sugere que ela estava falando na obtenção de “lucros por meio das fraquezas” dos outros nas transações comerciais, que segundo ela, constitui-se em transgressão “dos princípios como dos preceitos da Palavra de Deus”. Entretanto, tal raciocínio se aplica perfeitamente ao sistema capitalista, pois favorece o enriquecimento de poucos (a classe dominante) a partir da exploração da força de trabalho de muitos (classe trabalhadora). Então, Deus tampouco Sua Palavra sanciona o sistema capitalista.

Na fase inicial da Revolução Industrial, na Inglaterra, meados do século XVIII, muita riqueza foi produzida, porém, milhares e milhares de pessoas não tiveram acesso a ela. Muito pelo contrário, viviam na pobreza extrema. Os trabalhadores eram submetidos a condições desumanas de trabalho, com jornadas que podiam durar mais de 15 horas, num ambiente insalubre e sem nenhuma assistência previdencial. De acordo com as Sagradas Escrituras, opressão e exploração não pode ser de Deus, mas contra Deus, como já demonstrado acima. Logo, chega a ser cômico, para não dizer trágico, asseverar que o capitalismo é cristão.

Ser de esquerda sem perder o foco no vindouro reino eterno de Deus.

De acordo com a cosmovisão bíblica, no fim da história deste mundo de pecado, Jesus virá outra vez aqui. De fato, Ele prometeu que voltaria, e Sua Palavra não falha. Ele disse: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.  Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito; vou preparar-vos lugar.  E, se eu for e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos tomarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também” (Jo 14:1-3).  Veja, Jesus prometeu levar-nos para o lugar que nos preparou nas mansões de Seu Pai. João descreve nossa nova habitação: “Ouvi uma voz forte que vinha do trono, a qual disse: — Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão os povos dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram” (Ap 21:3, 4, NTLH). O profeta Daniel afirma que esse reino que Jesus trará será eterno (Dn 2:44).

Os cristãos de esquerda ao apoiar determinado projeto político e participar de algum movimento social que busca cidadania e justiça social, não perdem o foco no vindouro eterno reino de Deus, não, como pensam muitos. Eles continuam confiante no cumprimento da grande promessa de nosso Senhor Jesus e não negligenciam seu dever cristão. Contudo, o cristão que aguarda o segundo advento de Cristo e, consequentemente, o fim da era do pecado e o início de um mundo melhor, conforme prometido por Deus em sua Palavra, como luz e sal da Terra (Mt 5:13-16), podem e devem dá sua contribuição na construção de um mundo com mais justiça social e mais fraterno, através das várias expressões do agir político – seja no sentido amplo, seja na militância partidária ou num movimento social. Isso não compete com a autoridade da Palavra de Deus, como querem alguns. Ao contrário, está em harmonia com a Bíblia. Como já destacamos, no passado, movido pelo chamado de Deus e pela compreensão de que Ele deseja a justiça, os profetas ousaram ser a voz dos oprimidos. Deus ainda hoje pede que busquemos a justiça social e lutemos contra a opressão e pelos direitos dos pobres e excluídos. Como cristãos, devemos promover as mudanças sociais que refletem os valores e ensinamentos de Jesus.  

Como cidadãos, devemos ajudar a construir um novo projeto de sociedade, onde a dignidade da vida seja prioridade. Vida digna e justa é mais do que mera sobrevivência, exige mudança e condições reais que garantam as aspirações básicas do ser humano. A força da transformação está na organização e participação popular, um dos grandes desafios para quem sonha um novo projeto de sociedade. Todavia, entendemos ser importante ressaltar que uma sociedade livre completamente das mazelas sociais não será resultado da ação dos homens, mas resultado da intervenção divina, que se dará por ocasião da volta de Jesus, que trará um Novo Céu e uma Nova Terra, “nos quais habita a justiça” (2Pe 3:13). No entanto, enquanto Ele não vem podemos atuar no sentido de construir uma sociedade melhor para nossos irmãos, mas sempre com os olhos para o Céu. Atuar na sociedade sem, obviamente, deixar de buscar prioritariamente “as coisas lá do alto” (Cl 3:1). Esse é o princípio.

A própria Igreja Adventista do Sétimo Dia em um de suas declarações oficiais destaca que as ações que visam reduzir a pobreza e promover a justiça na sociedade é uma relevante “responsabilidade social cristã”, reconhecendo, desse modo, que a fé possui uma dimensão social. Note o que diz a Declaração:

“Os adventistas [...] creem que as ações para reduzir a pobreza e suas resultantes injustiças sejam uma parte importante da responsabilidade social cristã. A Bíblia revela claramente o interesse especial de Deus pelos pobres e Suas expectativas quanto à maneira em que Seus seguidores devem auxiliar os incapazes de cuidar de si mesmos. Todo ser humano carrega a imagem de Deus e é destinatário de Sua bênção (Lc 6:20). Quando trabalhamos com os pobres, seguimos o exemplo e o ensino de Jesus (Mt 25:35, 36). Como comunidade espiritual, os adventistas do sétimo dia defendem a justiça para os pobres e abrem ‘a boca a favor do mudo’ (Pv 31:8) e contra os que privam ‘os pobres de seus direitos’ (Is 10:2; NVI). Agimos de acordo com Deus que mantém ‘o direito do necessitado’ (Sl 140:12)”.9

Ao inserir neste artigo essa citação da Declaração da Igreja Adventista não queremos dizer que ela está estimulando que seus membros participem de alguma partido político ou integrem-se a algum movimento social. Longe disso! Mas, participar de conselhos municipais, de ONGs, e mesmo apoiar ou militar num determinado partido de esquerda ou algum movimento social que propõem mudanças sociais favorecedora dos mais pobres e dos trabalhadores, indubitavelmente, é compatível com a orientação do referido documento.

Muitos adventistas que tiveram a oportunidade de ler em sua lição da Escola Sabatina, em 2019, esse trecho da Declaração Oficial da igreja, de pronto entenderam que “defender a justiça para os pobres” refere-se exclusivamente a distribuição de cestas básicas para as famílias necessitadas da própria igreja, bem como para os pobres fora dela. Ledo engano! A distribuição de cestas básicas e outras ações assistenciais têm seu valor no sentido de atender à necessidade imediata dos pobres, mas não produzem real transformação nas condições de vida deles, não os tiram da situação de pobreza. Para além do assistencialismo, promover a “justiça para os pobres”, requer a participação efetiva dos cristãos comprometidos com as transformações sociais, em instituições que possam ser instrumentos de reivindicação dos seus direitos. São essas instituições ou movimentos organizados que têm força não somente para reivindicar ao poder público os direitos dos pobres e dos trabalhadores, mas também de propor a implementação de políticas públicas que promovam a melhoria de vida deles.

Há uma interessante citação da Lição da Escola Sabatina, 3º Trimestre de 2019, que, em certo sentido, anima os cristãos adventistas a participarem de movimentos reivindicatórios:

“Às vezes os membros da igreja evitam o envolvimento em protestos e na defesa de causas por medo de ser vistos como muito políticos. Leia Jeremias 22:1-3, 13-17. Jeremias, outro profeta envolvido na defesa de causas, intercedeu em favor dos oprimidos perante os líderes do governo de sua época".10 Em seguida a Lição insere um trecho do texto do Pastor Jean Paulsen, ex-presidente da Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, o qual reproduzimos abaixo:

“Há uma grande diferença entre procurar ser ouvido no discurso público e procurar exercer poder político. Como igrejas e indivíduos, não só temos o direito, mas também a obrigação de ser uma voz moral na sociedade, de falar com clareza e eloquência sobre o que está relacionado aos nossos valores. Direitos humanos, liberdade religiosa, saúde pública, pobreza e injustiça são algumas das áreas que temos a responsabilidade dada por Deus de defender aqueles que não podem falar por si mesmos”11

Desconstruindo mitos

Muitos pastores e padres alinhados a direita política no Brasil, volta e meia, pregam alertando os cristãos a respeito do “perigo vermelho”, contra o marxismo, contra o “comunismo”, termo sempre empregado por eles para confundir os fiéis, usando a velha e covarde arma de citar frases isoladas de sua estrutura textual e fora de seu contexto. Principalmente com o advento das redes sociais, os fiéis passaram a ser bombardeados com inúmeras informações sobre a esquerda socialista vendidas como verdadeiras. Expressões como “a esquerda comunista não respeita a liberdade religiosa, vai fechar as igrejas” ou “a esquerda quer destruir a família”, repetidas à exaustão, acabam por se tornar verdadeiros dogmas em muitas igrejas evangélicas. Por conta disso, o PT e os outros partidos da esquerda passaram a ser demonizados por muitos cristãos que se tornaram presas fáceis desse engodo. Neste contexto, muitas vezes, ao defendermos políticas sociais, temos que escutar de muitos cristãos que “isso é influência da praga do marxismo cultural”, “ser de esquerda virou crime”, “a ditadura comunista estava sendo implantada no Brasil pelo governo do PT” e coisas do tipo. Isso tornou-se uma paranoia. Avaliar as seguintes situações, é importante para compreendermos que isso não passa de mito e simplismo ideológico do discurso reacionário. Então vamos lá!

1) A esquerda marxista brasileira defende a liberdade religiosa

Particularmente, acredito que a maior vantagem do marxismo, como teoria, é que ele é um movimento crítico e, por isso, ele renasce com nova força da reflexão sobre seus próprios erros e permite que continue sendo interpretado e experimentado com maior rigor e eficácia. O marxismo é um pensamento em movimento, diferente do positivismo que é estático e conservador. Hoje, muitos marxistas, não obstante compreenderem que a religião continua sendo instrumentalizada pela burguesia como ideologia a serviço da dominação, não acreditam no fim da religião, mas defendem o respeito e o diálogo com os cristãos. Muitos marxistas mesmo sendo ateu defendem a construção de uma sociedade socialista com liberdade de expressão e de crença. Eles têm a convicção que qualquer partido que queira representar os trabalhadores e o povo precisa ter uma atitude de profundo respeito a essa religiosidade.

É importante ressaltar um fato pouco conhecido pelos brasileiros. No Brasil a liberdade de religião se consagrou na Constituição de 1946. Nela, o escritor baiano Jorge Amado, deputado constituinte, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi o autor da proposta que estabeleceu a ampla liberdade de culto religioso no Brasil. Note que foi um comunista que, a época da elaboração da Constituição de 1946, apresentou a proposta constitucional que garantiu a liberdade religiosa no Brasil. Até então, havia liberdade apenas à Igreja Católica Apostólica Romana. Evangélicos, espíritas e afro-brasileiros sofriam discriminações, preconceitos e violências. Dessa maneira, desde há muito os partidos de esquerda (pelo menos a maioria) cultivam o respeito e o apoio à liberdade de culto. Não apenas com palavras, mas com atos políticos concretos.

Atualmente, são variados os episódios e momentos que evidenciam esse compromisso de marxistas com liberdade de religião. Aliás, são inúmeros exemplos de diálogo e mesmo de ações políticas e sociais conjuntas entre as bases de alguns partidos e organizações e líderes de religiões diversas. Desse modo, cada vez mais cresce o números de cristãos marxistas, que frequentam templos católicos, evangélicos, espíritas ou terreiros afro-brasileiros.

2) A esquerda marxista não defende o fim da família

A partir de uma interpretação distorcida de fragmentos das obras de Marx e Engels, “A ideologia Alemã” e “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, diversos líderes religiosos reacionários criaram um discurso falacioso de que os dois filósofos alemães odiavam a família e pregavam a supressão dela. A verdade é que Karl Marx nunca pregou o ódio à família, tampouco o fim dela.

Em 2016, O Dr. José Luis Derisso escreveu um interessante artigo que responde com muita propriedade essa questão, nos seguintes termos:

“Na obra de Marx e Engels, propriedade, divisão do trabalho e família são pensados a partir da dinâmica histórica. Em A Ideologia Alemã prenuncia-se a tese posteriormente desenvolvida em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, tese esta que sustenta que a família é um elemento dinâmico – notem que apesar do título, em nenhuma passagem destas duas obras fala-se em origem ou suposto fim da família, apenas que a mesma deriva das hordas animais; contrariamente sustenta-se que a mesma assume formas distintas de acordo com o nível de complexidade das relações sociais, atingindo a forma da família monogâmica/patriarcal com a instituição da propriedade privada. Engels demonstra que a evolução da família se relaciona e é determinada pelo desenvolvimento das formas de propriedade, sendo que o declínio do matriarcado se associa ao surgimento do rebanho como propriedade do chefe da família, fenômeno que se explica pelo fato deste ter sua origem na atividade da caça que de acordo com a divisão do trabalho nas sociedades primitivas competia ao macho. A utilização da expressão “origem da família” no título da obra de Engels associasse à ideia de que a família é um produto histórico-cultural e, portanto, dinâmica, diferente da horda animal que a antecede. Isto fica evidente no fato de que Engels apresenta uma sucessão de modelos de famílias historicamente constituídas, sem teorizar sobre um suposto desaparecimento da instituição familiar, e muito menos que tal desaparecimento seria um pressuposto para a destruição da propriedade privada e implantação do comunismo”.12

Como se vê, Karl Marx tinha o entendimento de que havia vários modelos históricos de instituições familiares em distintas sociedades. Entretanto, os inimigos do marxismo sustentam, de forma desonesta, que a teoria marxista está na base da conspiração contra a família, com o objetivo nítido de enganar os incautos, a fim de arregimentá-los no combate a esquerda. Sendo assim, passam a falsa ideia de que o marxismo quer destruir a família em si, e não o patriarcalismo - mesmo porque para estes religiosos a família patriarcal, a propriedade privada e a sociedade dividida em classes de indivíduos desiguais constituem obras do Criador.

Particularmente, não acredito na família patriarcal. Sinceramente, não acredito que tal modelo tenha sido uma criação de Deus, mas humana. Ao fazer tal afirmação não quero dizer que a “família” não tenha sido uma instituição divina. Longe disso! Diferentemente de Marx e Engels, acredito profundamente que a família monogâmica foi uma criação de Deus, porém, penso que o modelo de família patriarcal foi fruto de relação sociocultural.  Mas, o que é uma “família patriarcal”? De acordo com o Dicionário de Direito de Família e Sucessões, “é a família em que a autoridade e os direitos sobre os bens e as pessoas concentram-se nas mãos do pai. Seu sentido, além de uma patrilinearidade, é um sistema social político e jurídico que vigorou no mundo ocidental até o século XX. Embora ainda persistam sinais de patriarcalismo, ele perdeu sua força. [...] A partir da consideração do sujeito de direito como sujeito de desejos, passou a ser inadmissível que mulher e filhos fossem assujeitados ao poder e desejo de um patriarca. E, assim, a família perdeu sua rígida hierarquia, despatrimonializou-se, ou seja, ela deixou de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução e passou a ser o espaço do amor, do afeto e o locus de formação e estruturação dos sujeitos”.

De acordo com a Dra. Sheila de Castro Faria, no Brasil, no período colonial, esse modelo de família patriarcal, compreendia uma família numerosa, composta não só do núcleo conjugal e de seus filhos, mas incluindo um grande número de criados, parentes, aderentes, agregados e escravos, submetidos todos ao poder absoluto do chefe de clã, que era, ao mesmo tempo, marido, pai, patriarca.13 Nesse modelo o homem (o patriarca) era tudo e a mulher era nada - posto que não tinha vontade própria, nem tempo do qual dispor livremente. Dessa forma, o patriarca constitui-se em um núcleo econômico e um núcleo de poder, cuja vontade era lei para todos os demais membros da família. Esse modelo de família foi sendo alterado ao longo dos anos, simplesmente deixou de existir na maior parte do mundo moderno.

Novas configurações familiares foram surgindo ao longo tempo no Brasil, bem como em outras partes do mundo. E isso nada tem que ver com o Marxismo. Às vezes é simplesmente um movimento de direitos humanos ou um entendimento liberal de empoderamento, de dar voz às pessoas, que irritam os conservadores, que não são necessariamente do pensamento marxista. A maioria das famílias hoje não é mais numerosa, o pai não exerce mais o poder absoluto. Sua autoridade é compartilhada com a mulher; a mulher não é mais vista como propriedade do homem, nem inferiorizada, mas vista como um ser igual ao homem, e que se inseriu no mercado de trabalho, logo, o homem não é mais o único provedor. As famílias hoje mão possuem escravos. Não vejo que essas mudanças culturais sejam desvirtuamento do evangelho.

A escritora cristão Ellen G. White acreditava na igualdade entre o homem e a mulher. Enfatizou ela: “Quando os maridos exigem completa sujeição de suas esposas, declarando que a mulher não tem voz ativa ou vontade na família, mas deve mostrar inteira submissão, estão colocando suas esposas numa posição contrária à Escritura. Interpretando desta forma a Escritura, violam o desígnio do casamento. Esta interpretação é utilizada simplesmente para que possam exercer governo arbitrário, que não é sua prerrogativa. Mas lemos em continuação: "Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a Si mesmo se entregou por ela." Efés. 5:25. Por que devem os maridos se irritar contra suas esposas? Se o esposo lhe descobriu erros e abundância de faltas, irritação de espírito não remedia o mal”.14

Ademais, nos países que implementaram o socialismo inspirados nas ideias de Marx, nenhum deles destruíram a família. A centro-esquerda no Brasil assumiu o governo através do PT, entre os anos de 2002-20015. Nunca houve uma ação do governo no sentido de promover a desintegração da família. Portanto, não há razão nenhuma para se acreditar nessa ideia estapafúrdia.

Conclusão

Concluo minha reflexão retomando a questão levantada no início: “Pode um cristão ser marxista? Pastores e padres direitistas com base na argumentação falaciosa classificada, na filosofia, como falácia do falso espantalho, dirão que não. Porém, eu diria que pode, sim! Até porque contribuir para a construção de uma sociedade sem classes e sem desigualdades sociais, está coerente com o propósito cristão de que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10:10). Incompatível mesmo com o evangelho é um cristão capitalista que defende um sistema explorador e excludente, que mantém na pobreza milhões de homens e mulheres.

Penso que se o cristão seguir o princípio paulino de “examinar tudo e reter o que é bom”, não vejo nenhum risco para a sua vida espiritual. Eu sou um exemplo claro dessa experiência. Embora possuindo ideias marxistas, nunca abandonei minha fé em Deus nem em Sua Revelação, a Bíblia Sagrada, como único critério para a fé e o viver cristão; continuo aceitando integralmente as 28 crenças fundamentais dos Adventistas do Sétimo Dia; continuo sendo um membro envolvido nas atividades da igreja e tendo hábitos espirituais adquiridos desde a minha infância, como a frequência a igreja, a leitura diária da Bíblia Sagrada e a prática diária da oração.

Nesse tempo de intensa polarização política sobre ser de “esquerda” ou de “direita” prevalecente atualmente na sociedade brasileira foi extrapolada para as igrejas cristãs. Muitos crentes estão digladiando-se, brigando a respeito de pautas defendidas pela esquerda ou pela direita. Penso que os cristãos não deveriam enveredarem-se por esse caminho tortuoso. Isso só gera ódio, ressentimento e divisão entre o povo de Deus. Isso não é bom para a vida espiritual dos que se envolvem em brigas políticas. Acho até que um debate político respeitoso entre os cristãos é salutar.

É preciso que se entenda que vivemos num país democrático, e que cada pessoa é livre para escolher ser de “esquerda”, de “direita” ou de ser “nenhum nem outro”. Esses três grupos presente nas igrejas precisam respeitarem-se mutuamente e ser tolerantes com os que divergem deles. Agora, penso ser um erro ainda maior quando pastores tornam-se figuras atuantes nas redes sociais, com uma forte militância contra a esquerda e os evangélicos progressistas. Não há nada de errado em pastores terem posições políticas, desde que resguardado o respeito ao legítimo pluralismo das opções politico-partidárias das suas ovelhas. Como cidadãos, eles têm todo o direito de terem suas convicções políticas de direita, mas precisam ser mais reservados para não estimular a polarização entre os crentes e introduzir a divisão nas igrejas que eles cuidam. 


Cabe aqui destacar uma relevante recomendação da escritora cristã Ellen G. White especificamente para os pastores Adventistas: “Os mestres, na igreja ou na escola, que se distinguem por seu zelo na política, devem ser destituídos sem demora de seu trabalho e suas responsabilidades; pois o senhor não cooperará com eles. O dízimo não deve ser empregado para pagar ninguém para discursar sobre questões políticas. Todo mestre, ministro ou dirigente em nossas fileiras, que é agitado pelo desejo de ventilar suas opiniões sobre questões políticas, deve-se converter pela crença na verdade, ou renunciar à sua obra”.15

Ao eles se preocuparem em combater e demonizar a esquerda e suas bandeiras como um inimigo a ser vencido, estão fazendo o jogo sujo da direita conservadora, que não admite a ascensão social dos pobres, que são contra toda e qualquer política pública que promova a ascensão social das camadas populares.

Essa desnecessária combatividade de alguns líderes religiosos ultraconservadores contra os partidos de esquerda, acabam levando-os a perderem o rumo e o foco da missão que Jesus Cristo lhes designou, que é ir ao mundo e proclamar as boas novas de salvação (Mt 28:18-20), que é ensinar as pessoas que Jesus as aceita e oferece o Seu perdão; é anunciar que Jesus irá voltar em breve para  estabelecerá seu Reino de justiça e paz, que jamais terá fim, e conceder a vida eterna aos que creram nEle (Jo 14:1-3; Dn 2:44; I Ts 4:16-18). Temos vistos alguns pastores pentecostais, a exemplo de Silas Malafaia e Marcos Feliciano, que por se ocuparem em fazer militância política contra partidos de esquerda nas redes sociais, nos programas de televisão e nos púlpitos de suas igrejas, têm perdido a credibilidade e o respeito entre uma parcela significativa dos cristãos evangélicos no Brasil. Penso que o melhor que os cristãos têm que fazer é pregar o “evangelho eterno” (Ap 14:6-12), sem fazer referência ou mesmo comprar briga com partido A ou B ou com os movimentos sociais.


Referência


1. MARX, Karl. O Capital, Livro 1, Vol. 2, p. 617.

2. MARX, Karl. “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. In: Temas de Ciências Humanas. Vol. 2. São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977, p. 2).

3. Fabio Previdelli. O antissemitismo de Martinho Lutero e a perseguição contra judeus. Aventuras na História. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/o-antissemitismo-de-martinho-lutero-e-a-perseguicao-contra-judeus.phtml>. Acesso em: 24 de abr. 2020.

4. Lição da Escola Sabatina, 3º Trim. 2019, ed. do Professor, p. 111.

5. Ibidem, p. 22.

6. Ibidem, p. 111.

7. WHITE, Ellen G. Profetas e Reis. Tatuí, SP: CPB, 2007.  p. 282.

8. ___________. A Ciência do Bom Viver, SP: CPB, 2004, p. 187.

9. Declaração Oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia Sobre a Pobreza Mundial, 24 de junho de 2010. Citado em Lição da Es Escola Sabatina, 3º Trim. 2019, ed. do Professor, p. 154.

10. Lição da Escola Sabatina, 3º Trimestre 2019, ed. do Professor, p. 67.

11. Jan Paulsen, Serving Our World, Serving Our Lord” [Servindo ao Nosso Mundo, Servindo ao Nosso Senhor], Adventist World, Edição da Divisão Norte-Americana, maio de 2007, p. 9, 10)”. Citado em LES, 3º Trim. 2019, ed. Professor, p. 67.

112. José Luis Derisso. Marxismo e história da família: resposta aos opositores da chamada “ideologia de gênero” na educação. Disponível em: < https://www.fe.unicamp.br/eventos/histedbr2016/anais/pdf/1029-2729-1-pb.pdf>. Acesso em: 20 de abr. 2020.

13. FARIA, Sheila de Castro. “Família”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 216-362.

14.WHITE, Ellen G. O Lar Adventista, Tatuí, SP: CPB, 2005, p.116.

15. WHITE, Ellen G. Fundamentos da Educação Cristã. Tatuí, SP: CPB, 2007. p. 477.




sábado, 25 de abril de 2020

DEUS E A ESCRAVIDÃO


Glauber S. Araújo*

O Senhor revelado no Antigo Testamento seria um escravocrata?

“Gostaria de vender minha filha como escrava, conforme orienta Êxodo 21:7. Atualmente, qual seria um preço justo no mercado?” A pergunta me deixou em estado de choque, ao perceber que não estava lendo um inquérito do século 18, mas uma carta aberta a Laura Schlessinger, a apresentadora de um programa de rádio que oferece dicas práticas para o cotidiano, com base em princípios fundamentados no Antigo Testamento.1 O tom sarcástico do pedido, no entanto, revelava as verdadeiras intenções da inquiridora.

Embora o comércio de escravos não mais seja aceito na maior parte do mundo, essa pergunta remete a uma preocupação muito atual: como devemos interpretar e aplicar os textos do Antigo Testamento em nossa vida? Alguns textos apresentam um verdadeiro desafio, especialmente no contexto pós-moderno em que vivemos. À primeira vista, eles parecem até descrever um Deus “controlador, mesquinho, injusto e intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista e malévolo”, só para citar algumas das injúrias levantadas por Richard Dawkins em sua famosa obra Deus, um Delírio.2

Tome, por exemplo, Levítico 25:44-47 (NTLH): “Se precisarem de escravos ou escravas, vocês poderão comprá-los dos povos vizinhos do seu país. Também poderão comprar os filhos dos estrangeiros que moram no meio de vocês. Essas crianças que nascerem na terra de Israel poderão ser compradas como escravos.” Esse texto parece indicar que o Criador do universo recomenda que tenhamos escravos, certo? Deveríamos obedecer a essa ordem e comprar escravos para nosso lar, em pleno século 21?

Essa pergunta, embora pareça absurda, levanta questões atuais, referentes à relevância da Bíblia para nosso mundo pós-moderno. Ela chega a ameaçar a compreensão acerca do próprio caráter divino; pois, como deveríamos nos submeter à vontade de um Deus que aprova a escravidão, quando sabemos que essa é uma prática desumana e cruel? Conforme Sam Harris argumentou em Letter to a Christian Nation: “Todo o mundo civilizado concorda em afirmar que a escravatura é uma abominação. Que tipo de instrução moral obtemos do Deus de Abraão sobre esse assunto?”3

Ao lermos o Antigo Testamento, temos a impressão de que os escravos no antigo Israel eram tratados como animais e objetos. Como compreender esses textos bíblicos quando ensinamos e pregamos a respeito de um Senhor que ama, salva, perdoa e trata todos os seres humanos como iguais? Que tipo de moralidade estamos promovendo quando convidamos todos a seguir a Bíblia? Como amar um Deus que aparentemente aprovou um sistema que aliena e desumaniza seus próprios filhos?

Diferenças notáveis

Ao procurar compreender os textos do Antigo Testamento que se referem à escravidão, devemos nos lembrar de que eles não autorizam o mesmo tipo de escravidão que ocorreu entre os séculos 17 e 19. Céticos e ateus usam textos bíblicos para distorcer a imagem que temos de Deus. À primeira vista, aparentemente o Senhor parece ser injusto e malévolo. No entanto, quando analisamos a questão de modo mais profundo, percebemos que o tipo de escravidão sancionada por Deus era muito diferente daquela que alimentamos em nossa imaginação. A escravidão que ocorria em Israel diferia bastante daquela em que os negros africanos sucumbiram, conforme retratada por Hollywood em filmes como Django Livre (2012) e Doze Anos de Escravidão (2013). Christopher J. H. Wright adverte corretamente: “Devemos eliminar de nossa mente imagens como os galeões romanos de Ben-Hur, as gargalheiras, os navios negreiros e as plantações de cana ligadas à escravidão moderna, quando lemos a palavra ‘escravo’ no Antigo Testamento.”4 Existem várias diferenças entre ambos os tipos de escravidão.

Uma das diferenças está em como alguém se tornava escravo. No Antigo Testamento, um israelita poderia ser vendido unicamente por um motivo: dívida financeira (Lv 25:39, 47).5 Por exemplo, um ladrão, quando capturado, deveria devolver o dobro daquilo que havia roubado (Êx 22:1-4). Como a maioria dos ladrões normalmente não tem o suficiente, era muito difícil eles conseguirem fazer isso. Assim, Deus permitiu que eles quitassem sua dívida por meio de trabalho manual.

Em alguns casos, as pessoas endividadas também poderiam vender-se como escravas (Lv 25:39, 47) e saldar sua dívida por meio do trabalho (2Rs 4:1). Um bom exemplo disso pode ser encontrado na história da fome no Egito nos dias de José. Quando os egípcios haviam gastado todo seu dinheiro e suas posses para comprar alimento de Faraó, eles decidiram vender-se como escravos em troca de mantimento. Esse acordo foi mantido entre o povo e Faraó até que a seca/fome passasse (Gn 47:19). Assim, a servidão de um escravo hebreu não produzia mudanças em sua condição social ou pessoal – após completar seu tempo de serviço, ele estava livre para retomar seus negócios.6

Portanto, a escravidão era tida como um ato voluntário, isto é, ninguém deveria ser vendido à força como escravo.7 Conforme a lei israelita, se alguém sequestrasse um compatriota para fazê-lo escravo deveria ser sentenciado à morte (Êx 21:16). Essa foi uma realidade totalmente diferente daquela enfrentada pelos escravos negros.

Outro equívoco muitas vezes disseminado se refere ao status de escravo quando comparado ao de servo comum. Na Bíblia, o termo hebraico ebed ou grego doulos pode ser traduzido como “escravo” ou “servo”. Paulo, por exemplo, ao identificar-se como “servo de Jesus Cristo” (Rm 1:1), empregou a mesma palavra grega para se referir a Onésimo, o escravo que estava retornando à casa de Filemom (Fm 16). Conforme Wright indica em sua obra Old Testament Ethics for the People of God, considerando a imagem mental que criamos de escravidão, a expressão “escravo” “não foi muito feliz em traduzir” a palavra hebraica ebed, “que basicamente significava um trabalhador com vínculo empregatício”, sendo às vezes usada para aludir a “cargos elevados, quando era o caso de servos da realeza”.8 Embora seja comum crer que escravos eram propriedade de seus senhores, tratados e usados sem quaisquer direitos pessoais, os escravos do Antigo Testamento tinham direitos pessoais e poderiam, em muitos casos, galgar posições importantes no governo da nação, como foi o caso de José (Gn 41:39-45). De fato, eles eram, em sua maioria, “trabalhadores domésticos. […] Eles complementavam, mas não substituíam, o trabalho dos membros livres do lar. […] Esse tipo de serviço pode ser visto como experimentalmente pouco diferente daquele desempenhado por empregos pagos em uma economia monetária”.9

Um israelita vendido como escravo não poderia permanecer nessa condição por mais do que seis anos (Êx 21:2). Independentemente do valor da dívida, o tempo máximo permitido para o trabalho escravo era esse. No sétimo ano, ele deveria voltar livre para seu lar. Quando isso ocorresse, o senhor era instruído a fornecer liberalmente recursos “do teu rebanho, da tua eira e do teu lagar; daquilo com que o Senhor, teu Deus, te houver abençoado, lhe darás” (Dt 15:14).

Se, por algum motivo, um escravo fugisse, os israelitas eram instruídos a acolhê-lo e protegê-lo. Não havia captura de escravos fugitivos em Israel. Eles eram livres para escolher onde gostariam de viver e que atividade apreciariam empreender (Dt 23:15-16). Além disso, não deveriam sofrer opressão nem violência. Essa era uma lei peculiar e impressionante, especialmente quando consideramos o tratamento que escravos africanos recebiam quando fugiam de seus senhores. No Brasil, por exemplo, as penalidades recaiam não somente sobre os escravos que fugiam, mas também sobre aqueles que lhes ofereciam abrigo. Essa questão da violência estabelece uma diferença gritante, quando comparamos a escravidão do Antigo Testamento àquela ocorrida na América do Sul. Enquanto nos países sul-americanos era esperado que os donos infligissem dor a seus escravos, as leis israelitas proibiam os senhores de aplicar qualquer tipo de tratamento violento. Se um escravo fosse tratado de forma cruel, ele ganhava sua liberdade (Êx 21:26), enquanto seu mestre, recebia o castigo (v. 20). A própria violência infligida ao escravo lhe servia de passaporte para a liberdade. Portanto, os senhores de escravos tinham todo o cuidado quando se tratava desse assunto, pois qualquer descuido representaria a perda de um trabalhador. Esses regulamentos claramente mostram que as leis do Antigo Testamento estavam preocupadas com o bem-estar e a integridade física do escravo.10 Portanto, embora a “escravidão” fosse autorizada por Deus no Antigo Testamento, era muito distinta do que se vê nos romances e filmes modernos.

Além disso, essa prática israelita destoava de como assírios, hititas ou babilônios tratavam seus escravos. Tome, por exemplo, o código de Hamurabi. No caso de um escravo sofrer algum tipo de dano físico ou castigo (perder um olho ou dente), era seu dono que deveria receber a compensação pelo prejuízo, não o escravo. “As leis de Esnuna e o código de Hamurabi jamais consideravam o escravo como parte injustiçada.”11 Outro exemplo desse tipo de prática ocorreu nos dias do Império Romano. Certa vez, um senador foi assassinado por um escravo. O escravo pagou por seu crime não somente com sua vida, mas com a de 400 membros de sua família!12

Enquanto as leis das nações vizinhas eram mais severas contra seus escravos, as leis de Israel serviam para proteger da violência, agressão e injustiça.13 Nesse sentido, a sociedade israelita era atraente para escravos estrangeiros que estivessem em busca de refúgio e uma vida com dignidade. De fato, eles dispunham de maior segurança econômica e legal do que aqueles que, embora tecnicamente livres, não tivessem terras, fossem empregados ou simples artesãos.14 O Anchor Bible Dictionary ressalta que “na Bíblia, encontramos o primeiro apelo no mundo literário a um tratamento humano para escravos, com base em seu valor próprio, e não no lucro que seus mestres desfrutariam”.15

Assim, em vez de tratar escravos como objetos, propriedades ou seres desumanizados, os regulamentos veterotestamentários os elevavam a um nível de dignidade previamente desconhecido. Walther Eichrodt, teólogo alemão e especialista em Antigo Testamento, reforça essa singularidade em Israel: “Na avaliação de danos provocados a propriedades, no tratamento de escravos, no estabelecimento de castigos contra ofensas indiretas e na rejeição de castigos que envolvem mutilações, o valor da vida humana é exaltado a um patamar incomparavelmente maior do que o valor material […] Isso só se tornou possível graças à profundidade de um conceito até então nunca considerado – a nobreza do ser humano, algo que hoje é um conceito fundamental para a conduta moral.”16

A abolição da escravatura

Quando lidamos com a questão da escravatura na Bíblia, uma pergunta sempre reaparece: “Por que Deus simplesmente não acabou com tudo?” Se os israelitas sofreram tanto sob a escravidão do Egito, por que o Senhor permitiu que essa prática continuasse depois de livres?

É um equívoco assumir que, porque Deus não aboliu a escravidão, Ele não tenha Se pronunciado sobre o assunto. Todos os textos do Antigo Testamento sobre o tema são um protesto de Deus contra os sistemas escravistas mantidos pelas nações vizinhas de Israel. Devemos nos lembrar de que, no caso de Israel, a escravidão era uma medida desesperada para pessoas que não tinham um dispositivo de segurança contra crises financeiras. O próprio Jesus nos lembrou que sempre haveria pobres entre nós (Mt 26:11). Como Israel deveria se tornar uma teocracia, o Senhor permitiu um sistema que, em tempos de fome e crise financeira, daria chances às pessoas de sobreviver por meio de trabalho honroso, em vez de atos criminosos.

Os donos de terras e plantações eram incentivados a, além de permitir que os famintos colhessem grãos durante o tempo de colheita (Lv 23:22), tratar seus escravos como companheiros necessitados, dignos de respeito humano. Jesus, inclusive, enquanto ensinava Seus discípulos, estabeleceu os fundamentos que, uma vez postos em prática, transformariam cada pessoa da sociedade e conduziriam à abolição dos males sociais. A simples observância da regra de ouro seria suficiente para prevenir a escravidão de seres humanos.17

Conclusão

Conforme vimos, as leis veterotestamentárias não caracterizam um Deus tirano e cruel. Ao contrário, elas apresentam um Deus misericordioso e amável, que conhece a realidade da pobreza, da fome e da miséria, a ponto de permitir um sistema que sustentaria os necessitados durante os tempos de crise. As leis escravistas do Antigo Testamento tinham como intenção a proteção de pessoas vulneráveis a possíveis tratamentos humilhantes. Se os senhores de escravos durante os séculos 17 a 19 tivessem seguido os regulamentos do Antigo Testamento, a história teria transcorrido de forma diferente. Isso só confirma o fato de que a Bíblia continua sendo um livro relevante para assuntos contemporâneos. Por meio dela, podemos compreender que todo ser humano foi criado à imagem de Deus e, portanto, é digno de valor, cuidado e respeito.18

Referências

1. “An open letter to Dr. Laura Schlessinger”, <dailykos.com>, acesso em outubro de 2016.

2. Richard Dawkins, Deus, um Delírio (São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2007), p. 55.

3. Sam Harris, Letter to a Christian Nation (Nova York, NY: Alfred Knopf, 2006), p. 14.

4. Christopher J. H. Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2011), p. 333.

5. A. Negev, “Slavery and Work”, The Archaeological Encyclopedia of the Holy Land, 3ª ed. (Nova York, NY: Prentice Hall Press, 1990).

6. Ibid.

7. Paul Copan, Is God a Moral Monster? (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2011), p. 127.

8. Wright, p. 333.

9. Ibid.

10. Wright, p. 335.

11 R. Tuente, “Escravo”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Lothar Coenen e Colin Brown, eds. (São Paulo, SP: Vida Nova, 2000), v. 1, p. 674.

12. Don F. Neufeld, “Escravo”, Dicionário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: CPB, 2016), p. 433.

13. Copan, p. 139.

14. Wright, p. 333.

15. Muhammad A. Dandamayev, “Slavery (Old Testament)”, Anchor Bible Dictionary, David N. Freedman, ed., v. 6 (Nova York, NY: Doubleday, 1992).

16. Walther Eichrodt, Theology of the Old Testament, (Londres: SCM Press, 1967), v. 2, p. 321.

17. Neufeld, p. 433.
18. Artigo publicado originalmente em inglês na Compass Magazine.

*William de Moraes Glauber S. Araújo, mestre em Ciência da Religião (Universidade Metodista de São Paulo), é editor de livros na Casa Publicadora Brasileira

FONTE: Revista Ministério MAR-ABR 2017, p. 28-30.