Teologia

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

PAULO E A LEI


Leandro Velardo

Considerações exegéticas sobre Romanos 6:14

Entre os diversos temas que se destacam em Romanos, a relação significativa entre “lei” e “graça” foi um dos mais estimados pelo apóstolo Paulo. No entanto, na história do cristianismo, essa correspondência se tornou, usando uma expressão popular, um “tabu” teológico. Por isso, no pensamento e na experiência de não poucos cristãos, a declaração do Salmo 85:10 é estranha e distante: “A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram” (ACF).

Ellen White não nos deixou no escuro quanto à identidade do autor último desse raciocínio: “O engano de Satanás é que a morte de Cristo introduziu a graça para tomar o lugar da lei.” Em uma espécie de paráfrase de Romanos 3:31, ela ainda acrescentou: “Essa preciosa graça oferecida aos homens por meio do sangue do Salvador estabelece a lei de Deus.”1

Debaixo da lei ou da graça?2

Quando lemos a declaração “não estais debaixo da lei, e sim da graça”, e ao nos familiarizarmos com o debate teológico que ela tem gerado, uma das questões que está por trás de toda discussão é o que Paulo quis dizer com o termo “lei” em Romanos 6:14. As respostas mais representativas são: (1) a lei de Moisés e; (2) a lei como princípio geral.

Contudo, independentemente da opção escolhida, ainda é necessário definir o que ela “conota”. Algumas propostas em relação ao que compreende “lei” em Romanos 6:14 são: (1) os termos “lei” e “pecado” trabalham de modo complementar, afirmando que viver sob a lei é viver sob o poder do pecado (D. J. Moo, T. R. Schreiner ); (2) Paulo se referiu à capacidade da lei para expor e condenar pecadores (C. E. B. Cranfield); (3) “lei” indica uma “distinção” entre judeus e gentios (J. D. G. Dunn); e (4) o uso de “lei” em Romanos 6:14 confirma o estado de escravidão dos seres humanos frente ao pecado (J. Murray). A partir de uma visão dicotômica entre “lei” (nómos) e “graça” (charis), alguns têm questionado a própria natureza da lei divina, colocando em dúvida sua validade no contexto da experiência cristã. Lendo com atenção, porém, é extremamente improvável que Paulo tivesse depreciado a lei que em outros lugares do mesmo documento ele exaltou e caracterizou como normativa (cf. 3:31; 7:12, 14, 22, 25; 8: 4 7; 13:8-10).3

Outros tentam esclarecer a questão observando que a frase traduzida como “não estais debaixo da lei”, em sua língua original, não tem o artigo definido antes da palavra “lei” (lit. “não estais debaixo de lei”). Entretanto, em grego koiné, quando não existe artigo indefinido, um substantivo sem artigo pode ser “indefinido”, “qualitativo” ou “definido”. Nesse caso, apesar das tentativas,4  a ausência ou a presença do artigo no uso paulino do termo não nos permite afirmar um princípio linguístico e interpretativo conclusivo.5 Por outro lado, um princípio semântico consensual entre os eruditos é que o uso de nómos reflete a polivalência da expressão hebraica torah.

Isso implica que “lei”, na literatura paulina, compreende uma variedade de nuances (por exemplo, Rm 7:7; 8:2; 1Co 14:21; Gl 4:21; 6:2). Desse modo, o contexto imediato do texto no qual se insere a palavra é o que determinará, em última instância, o significado dela.

Na primeira seção do v. 14, a partícula gár (“porque”) não só introduz o material explicativo, que aumenta ou apoia o que o precede, mas também conecta linguisticamente os versos 12 a 14. A oração continua com a expressão “terá domínio” (ACF), que traduz a força do futuro do indicativo kyrieusei (de kurieuo, “dominar”, “governar”). O termo tem sido traduzido de maneiras distintas em diversos idiomas: ora como futuro (indicativo), ora como presente (indicativo) e ainda na forma imperativa (simples).6

Apesar da falta de consenso das diferentes versões bíblicas e dos exegetas paulinos sobre as implicações hamartológicas de kyrieusei – uma “ordem” (J. A. Fitzmyer, B. M. Newman, E. A. Nida) ou uma “promessa” (T. R. Schreiner, F. Godet, L. Morris, J. Murray, D. J. Moo, J. D. G. Dunn)? – entendo que o contexto imediato (v. 12-14) e mais amplo (capítulos 5-8), com a dimensão qualitativa de hamartia e a natureza do futuro do indicativo,7 permitem sugerir que o apóstolo não estava afirmando a “impecabilidade” dos cristãos, mas a possibilidade que eles têm de viver à altura da fé que professam.8

Como parece evidente, a intensidade refletida na fraseologia paulina conceitua uma atitude condescendente (epithymia [v. 12]) e servil (hupakouo [v. 12]) diante do pecado por meio das expressões sugestivas “reine” (basileueto [v. 12]) e “domínio” (kyrieusei [v. 14]). A proposta cristã, em sua manifestação teológica mais pura e elementar, procura restaurar a relação entre Deus e a humanidade. Isso significa abandonar uma “filosofia de vida” inclinada para o pecado (“instrumentos de iniquidade [adikías]” [v. 13]), e adotar uma “teologia de vida” (“instrumentos de justiça [dikaiosynēs]” [v. 13]); ou seja, um estilo de vida que, superando a percepção mesquinha e limitada inerente ao ser humano, adote como base a Revelação. O enfoque paulino, de claro alcance existencial, pressupõe uma transformação comportamental do cristão (cf. 6:6, 16, 17, 18, 19, 20, 22). Confessar que Jesus de Nazaré é o Messias inclui reconhecê-Lo como Salvador e Senhor (“o senhorio de Cristo”, cf. “Não [mé] reine... o pecado” [v. 12]; “Nem [medé] ofereçais... ao pecado” [v. 13]).

As fórmulas “debaixo da lei” (hypo nómon) e “debaixo da graça” (hypo chárin) (ACF), na segunda parte do v. 14, mostram a razão que sustenta a declaração do início do texto (note o uso de gár novamente). O pano de fundo teológico da expressão “debaixo da lei” emerge de um modelo salvífico centrado na lei (nomocêntrico), que reduz a experiência religiosa ao “fazer” (cf. Rm 3:20). Somado a isso, a estrutura sintática hypo + acusativo revela que a palavra “debaixo”, em nossas traduções modernas, envolve a ideia de “controle”. Alonso Schökel percebe, com sensibilidade inquestionável, essa peculiaridade linguística: “já que não vivem submetidos [hyponómon] à lei” (Bíblia de Nuestro Pueblo).

Dificilmente se pode ignorar o forte contraste entre a impotência do homem e a força do pecado, que termina envidando seus esforços para, assim, condená-lo ao desespero. A convicção do apóstolo se expressa em uma linguagem de escravidão e submissão que não “vitimiza” o homem, mas que o encontra em sua ignorância egocêntrica (“salvação pelas obras”). Em oposição, “debaixo da graça” aponta para o poder salvífico do sacrifício expiatório de Cristo. No conjunto do pensamento soteriológico de Paulo, a mensagem parte da macrohistória (“conflito cósmico” [5:12-21]) para explicar a micro-história (“nossa vida” [6:12-14]).

Nesse contexto, o batismo é o ponto de inflexão por meio do qual o cristão aceita, e experimenta, a oferta divina (6:4).9 Somente pela graça e misericórdia de Deus, podemos exclamar como o apóstolo: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2:20 [NVI]).

Com base no que foi dito até aqui, Romanos 6:14 é uma peça fundamental da teologia paulina do batismo (6:1-14). A singularidade do versículo 14 é que ele lança luz sobre a vida cotidiana dos que aceitaram em sua vida a intervenção salvífica e o senhorio de Cristo.

Conclusão

A frase “não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (ACF), permite-nos vislumbrar uma mensagem claramente cristocêntrica. O texto não discute a continuidade nem a descontinuidade de determinada “lei”, mas dá testemunho de uma hermenêutica cuja reflexão teológica gravita em torno da obra e da pessoa de Jesus. Como era de se esperar, as projeções não deixam nenhuma área da existência humana fora do quadro teórico e, sob a orientação divina, permitem que o homem veja um Deus tão transcendente quanto imanente. Finalmente, é possível intuir que o tema e a grande contribuição de Romanos é manifestar de forma categórica nossa dependência vital de Jesus e Sua justiça, a fim de nos conscientizar de nossa inescapável, patética e autodestrutiva condição pecaminosa.

*Leandro Velardo é Professor da Faculdade de Teologia da Universidad Adventista del Plata, Argentina.

Referências:

1 Ellen G. White, Fé e Obras, <egwwritings.org>, p. 26.

2 As referências ao texto grego do Novo Testamento correspondem ao Novum Testamentum Graece, eds. E. Nestlé, et al. (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012).

3 Ver N. T. Wright, Paul and the Faithfulness of God (Minneapolis: Fortress Press, 2013), v.1, p. 513, nota 153.

4 Ver E. De Witt Burton, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Galatians (New York: C. Scribner’s sons, 1920), p. 447-460; S. Westerholm, “Torah, Nomos and Law”, em Law in Religious Communities in the Roman Period: The Debate Over Torah and Nomos in Post-Biblical Judaism and Early Christianity (Waterloo, Canadá: Wilfrid Laurier University Press, 1991), p. 45-56. Uma contribuição recente sobre a utilização do artigo em grego pode ser encontrada em R. D. Peters, The Greek Article: A Functional Grammar of -items in the Greek New Testament with Special Emphasis on the Greek Article (Leiden: E. J. Brill, 2014).

5 Cf. J. H. Moulton e N. Turner, A Grammar of New Testament Greek, Volume 3: Syntax (Edinburgh: T. & T. Clark, 1963), p. 177.

6 Encontramos o mesmo uso de kurieuo em uma inscrição de meados do século 2 d.C. (G. H. R. Horsley et al. eds., New Documents Illustrating Early Christianity [AHDRC, 5 vols.; Austrália: Macquarie University, 1981-1989], v. 2, p. 105)

7 Acerca do futuro do indicativo ver F. Blass, A. Debrunner e R. W. Funk, A Greek Grammar of the New Testament and other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago, 1961), p. 183; C. F. D. Moule, An Idiom Book of New Testament Greek (Cambridge: Cambridge University Press, 1959), p. 10; S. E. Porter, Idioms of the Greek New Testament (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999), p. 44; M. Zerwick, El Griego del Nuevo Testamento (Navarra: Verbo Divino, 2006), p. 125-126. Embora tenha sido sugerida uma influência semítica, por vezes, a função do futuro do indicativo no Novo Testamento está alinhada com o grego clássico e helenístico. Ver F. Rodríguez Adrados, Nueva Sintaxis del Griego Antiguo (Madrid: Gredos, 1992), p. 469-471.

8 Os intérpretes reconhecem uma “tensão escatológica”. Ver, por exemplo, R. N. Longenecker, The Epistle to the Romans: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2015), p. 616.

9 “Fazendo do batismo o sinal de entrada para Seu reino espiritual, Cristo o estabeleceu como condição positiva à qual têm que atender os que desejam ser reconhecidos como estando sob a jurisdição do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja, v. 6, <egwwritings.org>, p. 91).

FONTE: Revista Ministério, Set-Out – 2016, p. 23, 24



domingo, 19 de agosto de 2018

A PRIMEIRA PEDRA


Ricardo André

Na manhã do 8º dia da Festa dos tabernáculos1, ocorreu um incrível incidente na vida de Jesus, que está repleto de lições objetivas e espirituais para todos nós. Assim que os primeiros raios do sol começam a desafiar a completa escuridão da noite anterior, Jesus deixa o Monte das Oliveiras, deixando também para trás as árvores que tinham sido o Seu refúgio durante a noite, e Se encaminha para o templo (João 8:1, 2)2. É quando Ele está assentado num dos terraços do templo, à luz ainda anêmica da manhã, falando de pérolas perdidas e filhos desgarrados, que os judeus trouxeram, à presença de Jesus, uma mulher encontrada em adultério e pediram-Lhe que sentenciasse o castigo que ela merecia. Ela é colocada no meio dos Seus ouvintes, atraindo para si todos os olhares. “E disseram a Jesus: "Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério” (João 8:4). Seus acusadores eram os representantes da Lei e da Religião, os escribas e fariseus. Mas não se limitaram a mencionar o delito, apressaram-se em indicar também a sentença legal: “Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres” (Verso 5).

Ali, em pé, cabeça baixa, tremendo, sua beleza instiga a multidão a exterminá-la. Muitos desses homens, não muito tempo antes, estiveram ávidos por seu corpo. Agora estão sedentos por seu sangue. Ela fora pega no próprio ato. A lei diz que deve ser apedrejada. Como Jesus irá julgá-la?

À primeira vista, muitos de nós somos tentados a tomar posição favorável ao lado dos acusadores, em nosso zelo por defender a moral e os bons costumes. Todavia, à medida que nos detemos analisando este episódio na vida de Cristo, concluímos que aqueles homens não passavam de acusadores vis, a serviço da hipocrisia. Senão, vejamos:

1) Eram injustos e misóginos, pois prenderam a mulher e deixaram sem culpa o seu cúmplice – responsável pela mesma transgressão. Influenciava-os um falso moralismo, que tolera a imoralidade no homem e a condena na mulher. Aberração grosseira, o emprego de dois peso e duas medidas para o mesmo delito.

2) Eram falsos, pois acusaram como pretexto para encontrar em Jesus algo que O incriminasse diante das autoridades. Se autorizasse o apedrejamento, iriam acusá-Lo aos romanos. Por julgar sem ser juiz; e se a absolvesse da culpa, O acusariam aos judeus, como transgressor da lei de Moisés. Quanta perversidade oculta sob o manto de um falso moralismo!

Naquele momento, Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão. Escreve o quê? João não diz claramente. “Este é o único relato em que se diz que Jesus escreveu algo. De fato, muita coisa tem sido escrita sobre isso, mas nada do que Ele escreveu foi preservado. As palavras que Ele escreveu na poeira do solo logo foram apagadas pela movimentação de pessoas dentro do templo”3. A escritora cristã Ellen G. White acredita que Cristo escreveu os pecados deles. Jesus havia escrito ao mundo os pecados dos acusadores da mulher para que todos pudessem ler, da mesma maneira que a haviam exposto perante o mundo. Diz ela: “Ali, traçados perante eles, achavam-se os criminosos segredos de sua própria vida. O povo, olhando, reparou na súbita mudança de expressão e adiantou-se, para descobrir o que estavam eles olhando com tal espanto e vergonha. Com toda a sua professada reverência pela lei, esses rabis, ao trazerem a acusação contra a mulher, estavam desatendendo às exigências da mesma”4 Quando Seus acusadores não receberam nenhuma resposta imediata vinda da parte dEle, continuaram instigando Jesus para que tomasse uma posição... até que Ele fica literalmente em pé, demonstrando que estava pronto a dar Seu veredito, tendo as mãos ainda sujas de terra. Ele então solenemente decreta: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela" (Verso 7). A infeliz pecadora, coberta de vergonha, em sua angústia, fechou os olhos, aguardando uma saraivada de pedras.

Conforme a lei, as testemunhas deviam ser os primeiros a atirarem pedras (Dt 17:7). Mas em vez de julgarem a mulher, eles mesmos acharam-se julgados por Aquele que conhece os nossos mais escondidos pensamentos e intenções. Nenhum deles podia afirmar estar sem pecados. É possível que diante de Deus alguns deles fossem mais culpados do que aquela mulher.

Sentindo-se ridicularizados, “foram saindo, um de cada vez, começando com os mais velhos”. A mulher pecadora ficou só, na presença de Jesus. Chega então o momento em que ela deve morrer. Ela treme. As palavras de Jesus aos seus acusadores definem claramente o único meio pelo qual ela poderia morrer. Somente um Ser sem pecado deveria atirar a primeira pedra. Jesus é o único que possui tal qualificação. Então ele pôs-Se em pé e perguntou-lhe: “Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?" Mulher. Até agora, ela permanece sem nome. Quando seus acusadores se referem a ela como “esta mulher” que foi “surpreendida em adultério” (João 8:4), essa é uma tentativa para diminuí-la, para desumanizá-la, definindo-a apenas por seu passado, uma trama calculada para não permitir que o coração da multidão se movesse e sentisse por ela qualquer simpatia. Usada desta forma, é uma palavra que significava a desgraça dela e ressaltava a sua vergonha. Na boca de Jesus, a palavra se transforma. Deixa de ser pejorativa para transformar-se em uma promessa. A palavra reveste-se então do mais profundo sentimento de emoção e respeito, reveladas na pergunta que Ele lhe faz: “Ninguém a condenou?" Ainda não se atrevendo a manter qualquer esperança, plenamente consciente de sua culpa diante da lei, ela fala por meio de um momento de silêncio que tem o peso das pedras espalhadas a seus pés.       “Ninguém, Senhor”, disse ela. E dos lábios de Jesus ouviu as palavras permeadas de ternura e de misericórdia: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado" (Versos 9-11).

“Comoveu-se-lhe o coração, e ela se atirou aos pés de Jesus, soluçando em seu reconhecido amor e confessando com amargo pranto os seus pecados.

“Isto foi para ela o início de uma nova vida, vida de pureza e paz, devotada ao serviço de Deus. No reerguimento dessa alma caída, operou Jesus um milagre maior do que na cura da mais grave enfermidade física; curou a moléstia espiritual que traz a morte eterna. Essa arrependida mulher tornou-se um de Seus mais firmes seguidores. Com abnegado amor e devoção, retribuiu-Lhe a perdoadora misericórdia.

“Em Seu ato de perdoar a essa mulher e animá-la a viver vida melhor, resplandece na beleza da perfeita Justiça o caráter de Jesus. Conquanto não use de paliativos com o pecado, nem diminua o sentimento da culpa, procura não condenar, mas salvar. O mundo não tinha senão desprezo e zombaria para essa transviada mulher; mas Jesus profere palavras de conforto e esperança”.5

Incrível! Os escribas e fariseus, sem o querer, concederam à mulher pecadora a maior de todas as bênçãos. Levaram-na à presença do Único que salva o pecador da culpa e do poder do pecado.

Considere como o único Ser sem pecado Se recusou a destruir a vida de uma mulher pega com um homem que não era seu marido. Atente para a Sua compaixão por ela, por estar sofrendo e ferida em Sua presença pura. Quanto mais nós, que perdemos o senso da justiça, não deveríamos largar as pedras que seguramos em nossas mãos, prontas para punir os outros? Não deveríamos, muito mais, usar essas mãos para erguer os outros do pó, onde a dor e os golpes da vida ali os colocaram? Não deveríamos nós, muito mais, reconhecer claramente e cultivar sem reservas o espírito dAquele que “é tardio em censurar, pronto a perceber o arrependimento, pronto a perdoar, a animar, a pôr o que se extraviou na vereda da santidade e a nela firmar-lhe os pés”?6

Caro amigo leitor, o que Jesus fez por aquela trêmula mulher, Ele faz por cada um de nós. A Bíblia revela a extensão do esquecimento perdoador de Cristo. Isaías exultou: “Lançaste para trás de ti todos os meus pecados” (Isaías 38:17). De acordo com o profeta Miquéias, Ele lança “todos os nossos pecados nas profundezas do mar” (Miquéias 7:19). “Como se fossem uma nuvem, varri para longe suas ofensas; como se fossem a neblina da manhã, os seus pecados” (Isaías 44:22). Louvado seja Deus!

Referências:

1. Comentário Bíblico Adventista, v. 5, p. 1093.

2. Todas as passagens bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional.

3. Ibdem, p. 1094.

4. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí – SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 461.

5. Ibdem, p. 462.

6. Ibdem.















terça-feira, 14 de agosto de 2018

UM SANTUÁRIO NO TEMPO


Elijah Mvundura*

Ignorar o sábado é, na verdade, recusar-se a adorar a Deus, rejeitando-O como nosso Originador

Nos Salmos, nos deparamos com o povo de Israel em adoração. Sua adoração principal ocorria no sábado, “um santuário no tempo”.1 Esse conceito, de santuário no tempo, em vez de um lugar, representa uma reestruturação radical da cosmologia pagã. Os deuses pagãos se revelavam em lugares e pelos elementos da natureza. Porém o Deus de Israel é santo, qadosh, que significa “separado”. Ele é separado, independente de toda a realidade criada. E o lugar de Seu encontro com os seres humanos é no tempo, no sábado, e na História. Como Abraham Heschel, acertadamente, destaca: “Quando a História começou, havia apenas uma santidade no mundo, a santidade do tempo.”2

Na verdade, a primazia do tempo sobre o espaço como lugar de culto pode ser inferida também da construção do tabernáculo (espaço sagrado), a qual foi precedida pela lembrança de se manter a santidade do sábado (Êx 35:2). O sábado também precede a ordem para reverenciar o santuário (Lv 19:30; 26:2). Esse privilégio conferido ao tempo desvaloriza ou dessacraliza o espaço. Elementos da natureza se tornam matéria, meros objetos, a criação de Deus. Eles deixam de ser deuses ou médiuns do divino. Dessacralizados, eles passam a ser capazes de “à sua própria maneira, em uma língua que não é nem perceptível para o ouvido nem compreensível para os seres humanos”,3 declarar a glória de Deus e se proclamarem como obra das Suas mãos (veja Sl 19:1).

Na verdade, quando lemos no Salmo 19 que “os céus declaram a glória de Deus”, é como se estivéssemos ouvindo uma voz “que zomba das crenças dos egípcios e babilônios”,4 especialmente sua exaltação do sol, da lua e das estrelas. Não somente isso, mas nos versículos 7-11 o salmo conscientemente transfere para a Torá os poderes jurídico-morais que os egípcios e babilônios atribuíam ao sol.

Também é fascinante que na tríplice mensagem angélica de Apocalipse 14, esses princípios básicos ressurjam em meio ao conflito final da história terrestre.

 A ordem moral

Embora a natureza proclame a glória divina de maneira majestosa, a natureza – quer no céu ou na Terra – não pode prover valores morais nem direção espiritual para os seres humanos. A amoralidade da natureza é a razão pela qual o Salmo 19:7- 11 se refere à lei divina (Torá) para nossa direção moral. Todas as competências jurídico-morais e até mesmo a terminologia empregada na Torá ecoam numa adoração aos astros, porém “o vocabulário não tem conotação pagã e assume uma nova dimensão. Não é YHWH, o Deus de Israel, contra o deus do sol, mas Sua lei, que é o foco do contraste”.5

Em outras palavras, a polêmica contra o paganismo é na realidade sobre a lei de Deus e sua soberania sobre o ser humano. No versículo 11, o salmista se apresenta como servo de Deus e submisso à soberania da lei do Senhor.


Para entender o que essa submissão implicava, devemos lembrar que a entrega da lei no Sinai foi precedida por “um duplo êxodo – o dos patriarcas quando deixaram a Mesopotâmia e o grande êxodo do Egito”. Ambos foram “um veemente repúdio às versões egípcia e mesopotâmica da ordem cósmica”.6 Assim, no Sinai, vemos Deus estabelecendo uma ordem social para a nação israelita que espelhava a modalidade estrutural da criação. Em Gênesis 1 observamos que Deus criou o mundo por meio de um processo de separação e distinção. Ele separou a luz das trevas, os céus da terra, a terra da água, e os encheu de espécies distintas de plantas e animais. Criou Adão, e depois Eva de uma costela separada de Adão. Coroando tudo isso, Ele separou o sétimo dia de outros dias, e fez o santo sábado.

A história da criação termina com o sábado. O decálogo se refere explicitamente à criação no quarto mandamento (Êx 20:11). Portanto, o sábado é a ligação histórica entre a criação e o decálogo ou o Sinai e o concerto divino, apontando para Deus como originador de ambos. Na verdade, a frase “Lembra-te do dia de sábado” assume que o sábado teria sido uma prática corrente antes do Sinai. Então, novamente, a menção explícita de que “em seis dias o Senhor fez os céus e a Terra, o mar, e tudo o que neles há” (v. 11) alude diretamente às separações e distinções utilizadas por Deus na criação, as quais Ele empregou novamente no Sinai.

Santo versus profano

A intenção divina foi estabelecer uma nova ordem moral, plena em santidade. É por isso que em Levítico, cujo tema central é a santidade, as separações se estendem às atividades mundanas. “Não acasalar diferentes espécies de animais.” “Não plantar dois tipos diferentes de semente.” “Não usar vestuário de dois tipos de material” (Lv 19:19). O ponto crucial aqui, como Lucien Scubla observou, é que “os homens não devem unir as coisas que Deus separou. Há uma estreita relação entre a criação do mundo em Gênesis e as proibições em Levítico e Deuteronômio. [...] A criação divina é um processo que vai da desordem para a ordem. Portanto, essas declarações nos proíbem de retornar à desordem, misturando coisas que o próprio Deus separou”.7

Na verdade, o paganismo de imoralidades e monstruosidades grotescas decorre da mistura do sagrado com o profano, do humano com o divino, do natural com o sobrenatural. Em resumo, isso é uma inversão da ordem da criação. Ao misturar as coisas que Deus separou, ele recria o caos primitivo o qual influencia a esfera moral. Sem distinções entre o sagrado e o profano, tudo é aceito como sagrado e moral. Iniquidade é apresentada como piedade. Obliterar as distinções entre o sagrado e o profano leva à maldade desenfreada. “Seus sacerdotes cometem violência contra a Minha lei e profanam Minhas ofertas sagradas; não fazem distinção entre o sagrado e o comum; ensinam que não existe nenhuma diferença entre o puro e o impuro; e fecham os olhos quanto à guarda dos Meus sábados, de maneira que sou desonrado no meio deles. Seus oficiais são como lobos que despedaçam suas presas; derramam sangue e matam gente para obter ganhos injustos. Seus profetas disfarçam esses feitos enganando o povo com visões falsas e adivinhações [...] O povo da terra pratica extorsão e comete roubos; oprime os pobres e os necessitados e maltrata os estrangeiros, negando-lhes justiça” (Ez 22:26-29).

Assim, ignorar o sábado é, na verdade, recusar-se a adorar a Deus, rejeitando-O como nosso Originador. “A reivindicação divina à reverência e culto acima dos deuses dos gentios tem por base o fato de que Ele é o Criador, e que a Ele todos os outros seres devem sua existência.”8 “O quarto mandamento é o único de todos os dez em que se encontra tanto o nome quanto o título do Legislador.”9 O sábado nos mostra que Deus é o legítimo Proprietário da Terra; portanto, negar isso é usurpar as prerrogativas divinas.

O caráter inclusivo do sábado é demonstrado em Isaías 56. Estrangeiros e eunucos que se apegavam à aliança divina e aceitavam a santidade do sábado se tornavam membros efetivos na congregação de Israel, desfrutando suas bênçãos espirituais: “Pois a Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (v. 7). Isso lembra a promessa abraâmica de bênção universal (Gn 12:3). Essa promessa encontra seu cumprimento em Apocalipse 14:6, 7 na proclamação do evangelho eterno a toda nação, tribo, língua e povo. Na adoração todos se tornam um. Assim como a promessa de Abraão era uma negação implícita do totalitarismo de Babel, edificada para formar uma unidade contra Deus, a mensagem do primeiro anjo nega a oferta semelhante de Babilônia, a Grande (v. 8).

As três mensagens angélicas

Significativamente, o sábado é o ponto crucial desta negação. “O paralelismo verbal entre Apocalipse 14:7: ‘fez os céus, a Terra, o mar’ com Êxodo 20:11: ‘fez os céus e a Terra, o mar’ [...] juntamente com paralelos temáticos e estruturais, mostra que a porção posterior da fala do primeiro anjo constitui uma alusão clara e direta ao quarto mandamento de Êxodo 20:11.”10 E o quarto mandamento, por sua vez, se refere diretamente à criação; às distintas ordens divinas que se contrapõem ao abrangente universo pagão, com sua confusão do humano com o divino, do material com o espiritual, e do religioso com o político.

A íntima ligação entre o sábado e a santidade é o que faz do sábado o teste da verdade na batalha final entre o bem e o mal, entre Cristo e o anticristo. Com efeito, uma vez que “o mundo todo está sob o poder do Maligno” (1Jo 5:19, NVI), celebrar o sábado é passar de um universo amoral para seu oposto. Recusar-se a mover é recusar adorar o Deus Criador. É por isso que as três mensagens angélicas são apresentadas no contexto do julgamento, acompanhadas pelo terrível aviso do derramamento iminente da ira de Deus. Esse aviso é um ato de misericórdia – para que possamos escapar do “fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos” (Mt 25:41).

Referências:

1. Abraham Joshua Heschel, The Sabbath: Its Meaning for Modern Man (Nova York: Farrar,
Straus and Giroux, 1951), p. 29.

2. Ibid., p. 9.

3. Nahum M. Sarna, On the Book of Psalms: Exploring the Prayers of Ancient Israel (Nova York: Schocken Books, 1993), p. 80.

4. Henri Frankfort et al., The Intellectual Adventure of Ancient Man: An Essay on Speculative Thought of the Ancient Near East (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1964), p. 363.

5. Ibid., p. 92.

6. Peter L. Berger, The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion (Nova York: Anchor Books, 1967), p. 115.

7 Lucien Scubla, Contagion: Journal of Violence, Mimesis, and Culture , v. 12, 13 (2006), p. 16.

8. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 239.

9. Ibid., p. 216.

10. John T. Baldwin, Creation, Catastrophe and Calvary (Hagerstown, MD: Review and Herald,
2000), p. 19.

*Elijah Mvundura é escritor e reside em Calgary, Canadá.

FONTE: Revista Ministério, Maio-Junho de 2015, p. 16, 17.


segunda-feira, 13 de agosto de 2018

A SEGUNDA BESTA


Márcio Costa*

O desenvolvimento da compreensão adventista a respeito de Apocalipse 13:11

Se você for a um dos Centros de Pesquisa Adventista espalhados pelo mundo, seguramente verá desenhos, pinturas ou até mesmo peças de gesso que representam feras com chifres, cabeças ou asas nas formas mais assustadoras possíveis. Essas imagens estão descritas no livro de Daniel e Apocalipse e ilustram os poderes geopolíticos apresentados nas profecias, a fim de ajudar o observador a ter uma dimensão daquilo que o profeta visualizou.

As bestas em profecias geralmente estão relacionadas com a perseguição daqueles que seguem a Deus. Elas trabalham em associação com o dragão (Satanás) e “pelejam contra os santos” ou forçam a adoração a ele. A partir de 1843, o milerismo, movimento iniciado por Guilherme Miller que está na gênese da Igreja Adventista do Sétimo Dia, passou a usar painéis gráficos para apresentar sua compreensão escatológica. Em 1850, esse recurso, avançado para a época, foi utilizado pelos adventistas sabatistas e, posteriormente, também pelos adventistas do sétimo dia, em 1863.

Um detalhe que chama atenção é que a besta de dois chifres que emergiu da terra (cf. Ap 13:11) não aparece nos gráficos mileritas. Conforme intérpretes do movimento, essa profecia havia sido recentemente cumprida. De acordo com a compreensão deles, o animal simbolizava Napoleão Bonaparte e, os dois chifres, a França e a Itália. Essa conclusão foi publicada por Josué Himes, pioneiro milerita, que propôs que a besta era um símbolo do sistema de governo europeu, naquele tempo dominadopelo imperador francês.1

Da Europa para a América do Norte

Entretanto, a partir de setembro de 1850, os adventistas sabatistas provenientes do milerismo passaram a rejeitaras ideias de Himes. Ao estudar o assunto de Babilônia em Apocalipse 17:1, 5 e 15, eles chegaram a um novo entendimento. Os pesquisadores viam na segunda besta uma combinação entre a Igreja e o Estado. Abandonando a proposta de Himes, Hiram Edson, um dos pioneiros sabatistas, chegou a declarar que “é certo que essa besta de dois chifres não se aplica ao reino de Bonaparte”. Ele foi mais além, indicando que o animal simbolizaria “Roma Protestante” e, ao mesmo tempo, a sétima cabeça da besta que emergiu do mar. Ao finalizar, também sugeriu que “os dois chifres são os poderes civil e eclesiástico”.2

Em maio de 1851, John Andrews fez uma análise bem mais detalhada sobre as propostas de Hiram Edson e expandiu ainda mais a compreensão sabatista acerca da besta de Apocalipse 13:11. “Nós entendemos, então, essa besta de dois chifres como o símbolo do poder civil e religioso, que é diferente em muitos aspectos daqueles [poderes] que o precederam.” Até esse ponto, os dois estudiosos concordavam. Entretanto, Andrews não estava convencido de que a besta seria Roma Protestante. Em seu estudo, ele também analisou criteriosamente os poderes conhecidos até seus dias. De forma cautelosa, chegou a argumentar que os Estados Unidos da América preenchiam todos os requisitos da besta; contudo, não afirmou isso categoricamente.3

Em 1851, José Bates, ao contrário de Andrews, não se intimidou em apresentar suas conclusões com relação à besta de dois chifres. Ele também era um estudioso das profecias e havia proposto, em 1847, que o selo de Deus e a marca da besta estavam ligados à adoração no sétimo e primeiro dia da semana, respectivamente. Bates e Otis Nichols, o responsável pela publicação do gráfico de 1850, vinham debatendo o assunto há algum tempo e, após verificar os argumentos de Andrews, Bates afirmou que a besta de Apocalipse 13:11 era os Estados Unidos da América.4

Na sequência, John Loughborough fez novas propostas que acenderam um intenso debate nas páginas da Review and Herald, periódico oficial dos adventistas sabatistas. Em abril de 1854, ele publicou um livreto de 52 páginas com afirmações bem mais refinadas sobre o assunto, confirmando as evidências de Andrews.5

Finalmente, John Andrews revisou e expandiu sua pesquisa anterior e, dessa vez, concluiu o pensamento que havia lançado em 1851. Em abril de 1855, ele afirmou que “o único governo civil entre todos que já existiram, exibindo a aparência semelhante à de cordeiro, conforme o símbolo, são os Estados Unidos”.6

Os Estados Unidos na profecia

A propagação desse novo entendimento passou a ser enfatizada nos periódicos e nas pregações sabatistas. Urias Smith, que foi editor da Review and Herald por cerca de 50 anos e se destacou por seus estudos em escatologia, considerou, em dezembro de 1856, que tal interpretação da besta de dois chifres era consistente. A partir daí, começaram as projeções acerca das possíveis decisões do governo norte-americano que afetariam os adventistas sabatistas. Nas campanhas evangelísticas, pregadores públicos como C. W. Sperry e H. G. Buck reportaram que, em seus sermões, a “argumentação durava o dia inteiro, tratando dos desafios dos últimos dias e da paciência dos santos”. A compreensão a respeito da besta de dois chifres rapidamente se tornou o assunto central entre os sabatistas em seus encontros, evangelismos e publicações.7

Para entender melhor a razão do impacto desse assunto, devemos nos lembrar de que a Primeira Emenda da Constituição norte-americana afirma que “o Congresso não fará nenhuma lei no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo seu livre exercício”. Ainda hoje esse texto é muito utilizado na defesa de uma rígida separação entre Igreja e Estado e na alegação de que as atividades de ambas devem ser limitadas à sua respectiva esfera. Thomas Jefferson, um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos, afirmou em sua carta aos batistas de Danbury, Connecticut: “Eu contemplo com soberana reverência aquela emenda de todo o povo americano, a qual declara que sua legislação não deverá fazer ‘nenhuma lei no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo seu livre exercício’, desse modo, construindo um muro de separação entre Igreja e Estado.”8

Por conta da ênfase na distinção dessas duas instituições, a interpretação adventista da besta de Apocalipse 13:11 tornou-se um ponto escatológico tão conhecido que gerou grande interesse dentro da própria denominação. Com o tempo, surgiram departamentos de Liberdade Religiosa, revistas temáticas, associações e, até mesmo, interlocutores entre a igreja e o governo. Tudo isso em favor da manutenção do livre exercício da fé, embora o prognóstico seja muito negativo.

No futuro, espera-se que a pressão política nos Estados Unidos leve à aprovação de leis federais que sejam abertamente inconstitucionais. Estima-se que ocorrerá um movimento religioso-político em que os representantes populares, interessados apenas em benefícios e notoriedade, cedam ao erro de outorgar regras persecutórias. Eles instituirão a obrigatoriedade de observância do primeiro dia da semana, que constituirá a “marca da besta” (cf. Ap 13:16, 17).

A interpretação de Ellen White

Ellen White, por sua vez, manteve uma postura distinta em meio a todo o calor da descoberta e da reação dos adventistas sabatistas. Ela estava a par do debate que agitou o grupo em meados de 1850, mas preferiu não ser tão direta em suas conclusões. Em 1861, em um de seus primeiros comentários sobre a besta de dois chifres, a escritora contrastou os adoradores de Deus com os da besta. Também enfatizou que o nome Adventista do Sétimo Dia naturalmente elevava-se como um repúdio à falsa adoração.9

No relato (sem data) de sua visão a respeito da besta de dois chifres, Ellen White estava muito mais preocupada com as interferências da besta no trabalho evangelístico que ainda necessitava ser feito do que propriamente com o significado do símbolo. Ela não citou o nome do país nem do sistema de governo, deixou de lado toda a análise histórica dos demais pioneiros e preocupou-se com a legislação religiosa que será imposta.

Por fim, em 1884, a autora citou nominalmente os Estados Unidos como a besta de dois chifres. Em sua análise, o poder que a nação recebe vem da existência simultânea do Estado e da Igreja. Para ela, nem a Igreja nem o Estado sozinhos seriam suficientes para o empoderamento da besta. Desse modo, ambas as instituições necessitam ser controladas por Satanás, a fim de que ele consiga impor a tribulação que pretende provocar. Assim, o mal que sobrevirá não será fruto do governo americano em sua forma estabelecida, mas em sua forma corrompida pelo inimigo. Uma legislação religiosa “seria abertamente contrária aos princípios deste governo, ao espírito de suas instituições livres, às afirmações insofismáveis e solenes da Declaração da Independência, e à Constituição”. Dentro dos princípios de estabelecimento do governo norte-americano, isso seria inaceitável.10

De acordo com a escatologia adventista, as ações inconsistentes dos Estados Unidos trarão consequências aos membros da denominação espalhados ao redor do mundo. Além da perseguição interna, Ellen White afirmou que outros países seguirão o exemplo norte-americano e se levantarão para aprovar leis que restringirão a liberdade religiosa. Apesar do prognóstico desfavorável, os adventistas do sétimo dia defenderão o sábado bíblico. Para ela, “uma grande crise aguarda o povo de Deus”.11

Em suma, ao observar uma ilustração da besta de dois chifres de Apocalipse 13:11, devemos ser levados a ponderar a respeito da perda da liberdade religiosa e da perseguição que decorrerá disso. Precisamos considerar que as leis religiosas a ser impostas nos Estados Unidos serão adotadas por outras nações, afetando mundialmente “os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 14:12). O tempo urge por engajamento diligente na fé e na missão da igreja, a fim de que, ao nos depararmos com o cumprimento da profecia, possamos reconhecer os sinais dos tempos, conforme nos alertam as bestas e os diagramas expostos nos Centros de Pesquisa Adventista.

Referências

1 Joshua V. Himes, “Watchmen! Give Them Warning from Me!”, Signs of the Times, 21/2/1844, p. 15. Ver também LeRoy Edwin Froom, The Prophetic Faith of Our Fathers: The Historical Development of Prophetic Interpretation, (Washington, D.C.: Review and Herald, 1946-54), v. 4, p. 850.

2 Hiram Edson, “The Third Angel’s Message”, Review and Herald, Extra, setembro de 1850, p. 9.

3 J. N. Andrews, “Thoughts on Revelation 13 and 14”, Review and Herald, 19/5/1851, p. 84.

4 Joseph Bates, “The Beast with Seven Heads”, Review and Herald, 5/8/1851, p. 4; O. Nichols, “From Bro. Nichols”, Review and Herald, 2/9/1851, p. 22.

5 H. C. S. Caurus, “From Bro. Caurus”, Review and Herald, 18/10/1853, p. 120; J. B. Frisbie, “From Bro. Frisbie”, Review and Herald, 8/11/1853, p. 142; John N. Loughborough, The Two-Horned Beast, the United States (Rochester, NY: Review and Herald, 1854); T. M. Steward, “From Bro. Steward”, Review and Herald, 15/8/1854, p. 6; James White, “New Tracts”, Review and Herald, 4/4/1854, p. 88.

6 J. N. Andrews, “Three Angels of Revelation”, Review and Herald, 3/4/1855, p. 202. Roswell F. Cottrell também contribuiu com essa discussão. R. F. Cottrell, “Speaking of the Image”, Review and Herald, 12/12/1854, p. 134.

7 Uriah Smith, “One Year Ago”, Review and Herald, 11/12/1856, p. 44; ibid., “The Two-Horned Beast, and How He Has ‘Come up’”, Review and Herald, 28/8/1856, p. 136; ibid., “The Two Horned Beast”, Review and Herald, 12/3/1857, p. 148; C. W. Sperry e H. G. Buck, “Tent Meetings in Jamaica, Vt.”, Review and Herald, 25/9/1856, p. 165; Moses Hull, “Extract from Letters”, Review and Herald, 25/9/1860, p. 15.

8 Thomas Jefferson, “Jefferson’s Letter to the Danbury Baptists”, The Library of Congress Information Bulletin, junho de 1998.

9 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), v. 1, p. 223.

10 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 442.

11 Ellen G. White, Eventos Finais (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), p. 144.

*Márcio Costa, doutor em Teologia Histórica (Andrews University), é professor do Seminário de Teologia do Instituto Adventista Paranaense.

FONTE: Revista Ministério de Jul-Ago de 2017, p. 28 e 29.



domingo, 12 de agosto de 2018

EM BUSCA DA ETERNIDADE


Ricardo André

Os seres humanos têm sempre diante de si um grande desafio: ninguém quer morrer. Particularmente, não tenho medo de morrer, mas não quero morrer. Ninguém em perfeita condições mentais quer morrer, pelo contrário, quer viver o maior número possível de anos na face da terra. Quer viver eternamente cada dia. Isso ocorre porque não fomos criados para a finitude e limitação desta vida mundana. Fomos criados para viver para sempre – e em plenitude, por isso que a morte nos causa tanta perplexidade. E a vida terrena, tanta ansiedade.

Este desejo humano é inevitável e universal. Segundo as Sagradas Escrituras, ele existe em nossos corações porque fomos criados “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1:26-28) para vivermos precisamente desta maneira. Como revela o texto de Eclesiastes 3:11: Deus “pôs no coração humano o anseio pela eternidade”. Fomos criados para viver feliz e eternamente. Morremos por causa do pecado que entrou no mundo através do primeiro casal humano, Adão e eva, que fazendo mau uso da sua faculdade de escolhas, desobedeceu ao amorável Criador (Gn 3; Rm 6:24). "A morte passou a todos os homens", afirmou o apóstolo Paulo. Romanos 5:12. Ela constitui o exorbitante preço do pecado. Portanto, a morte é algo estranho, terrível, uma intrusa que o homem quer sempre driblar e fugir. A ciência médica tem procurado prolongar a vida humana o mais possível através do uso de remédios e tecnologia avançada. Assim tem conseguido grandes avanços para dominar as doenças.

O uso de potentes computadores permite ver e expor todos os órgãos do corpo numa tela, em questão de minutos, podendo o médico analisar e ver tudo o que acontece dentro do corpo. O uso do raio laser permite fazer cirurgias e quebrar pedras nos rins em questão de segundos, evitando grandes cortes abdominais.

Uma enorme polêmica foi criada no campo da medicina, quando em 1964, um médico e pesquisador da NASA, chamado Robert C. W. Ettinger, congelou um paciente que morreu de câncer para ressuscitá-lo quando houvesse recursos médicos para curá-lo de seu mal. Ettinger, apoiado por Jean Rostand, famoso biólogo e pesquisador da genética humana, criou também o primeiro dormitório-frigorífico da história. Ettinger escreveu um livro: “Perspectiva de Imortalidade”. “Se você morrer aos 40 anos”, diz o autor, “há grandes possibilidades de nunca morrer. Quando seu coração parar de bater, antes que seu cérebro e coração entrem em decomposição, sua família o colocará num refrigerador cuja temperatura será de 273 graus abaixo de zero, ou seja, o zero absoluto. Daí em diante, seu único risco será uma pane de eletricidade. Você dormirá cem ou duzentos anos. Quando acordar, a ciência terá feito tais progressos que todos os órgãos defeituosos do seu organismo poderão ser substituídos”.

Será que a morte vai ser ludibriada? Será que o homem vai conseguir, finalmente, através da ciência, viver para sempre? Estas questões entre outras, geraram discussões étnicas-religiosas no campo da medicina.

Nossa Firme Esperança

Os cientistas jamais encontrarão a chave para a vida eterna no código genético humano. Essa chave está em outro lugar. Como cristãos, nós buscamos na Bíblia a solução para tais problemas, e no maravilhoso texto de Tito 1:2 temos a solução para o anseio da eternidade que abrigamos em nosso coração: “fé e conhecimento que se fundamentam na esperança da vida eterna, a qual o Deus que não mente prometeu antes dos tempos eternos”.

Deus tem a eternidade Consigo e nos dará uma vida eterna, se enquanto vivermos na Terra, aceitarmos o plano da salvação que Cristo nos oferece de graça, através do Seu sacrifício na cruz. A Palavra de Deus afirma que, por causa desse sacrifício de Jesus, um dia, a morte será finalmente destruída (I Co 15:26, 27), e todos os que estão nos sepulcros ouvirão a voz de Cristo, “e os que tiverem feito o bem, [sairão] para a ressurreição da vida” (Jo 5:28, 29). O apóstolo Paulo em I Coríntios 15:52 descreve esta cena: “Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados”. Inegavelmente, será um momento muito glorioso. Será a vitória final de Jesus sobre as tristezas, dores, doenças, e a morte! Esta certeza nos conforta e nos anima na jornada, enquanto aguardamos o grande dia da volta de Jesus. O mal não ocorrerá outra vez (Na 1:9).

Esta ESPERANÇA está baseada sobre um sólido e indestrutível fundamento... Sim, ela se baseia na realidade de um Cristo vivo (v.14). A ressurreição do Senhor é o fundamento de nossa esperança (I Ped. 1:2, 3). Assim como Deus, o Pai, trouxe Jesus, nosso Salvador, dentre os mortos na manhã de Sua ressurreição no jardim, fora dos muros de Jerusalém, assim com Ele também trará nossos queridos mortos à vida novamente.

Quando ocorrerá a ressurreição dos mortos justos?

Quando se dará esse tão maravilhoso acontecimento? Por ocasião do regresso de Jesus, pois assim se expressou o apóstolo inspirado: "Porquanto o Senhor mesmo, dada a Sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor." I Tessalonicenses 4:16 e 17. (Ver também 2Tm 4:7, 8; Ap 22:12). Quando Jesus voltar, todo aquele que aceitou o maravilhoso plano da salvação e procurou harmonizar sua vida com a vontade divina, segundo a melhor luz que possuía, será trasladado para as mansões celestiais. Os mortos ressuscitarão e nós reencontraremos nossos entes queridos que partiram e poderemos tê-los em nossa companhia por todo o sempre. É por ocasião da volta de Jesus que os salvos de todos os tempos receberão a tão almejada imortalidade (I Co 15:22, 23; 51-54). Todos eles ressuscitarão em corpos glorificados. Não vão ficar doentes, não vão envelhecer nem ter problemas de saúde. Os salvos serão glorificados física e espiritualmente. Terão vida eterna.

“Que manhã gloriosa será a da ressurreição! Que cena maravilhosa se abrirá quando Cristo vier, para Se fazer admirado em todos os que creem! Todos os que passaram pela humilhação e pelos sofrimentos de Cristo serão participantes de Sua glória. Pela ressurreição de Cristo, todo santo crente que adormece em Jesus sairá, triunfante, de seu cárcere. Os santos ressurgidos proclamarão: ‘Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?’ (1Co 15:55, RC). […] Jesus Cristo triunfou sobre a morte e rompeu os grilhões do túmulo, e todos os que no túmulo dormem participarão da vitória; sairão das sepulturas, como fez o Vencedor” (Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 271, 272).

Naquele dia, esposo e esposa se reecontrarão. Como disse Paulo: “Consolem-se uns aos outros com essas palavras” (1Ts 4:18, NVI). Poderemos também abraçar familiares e amigos que nós pensávamos nunca mais rever. Essa é a maravilhosa esperança da ressurreição. Nossa esperança não se baseia numa vida logo após a morte, nem em processos de reencarnação, mas na ressurreição dos mortos.

No Mundo do Amanhã que Deus trará para todos os que crerem nele não haverá mais morte. Ele nos promete: “Ele enxugará de seus olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem lamento, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas." (Ap 21:4).

Caro amigo leitor, não quer você se preparar para aquele inesquecível e glorioso dia? Você pode hoje mesmo tomar a sua decisão por Jesus. Que Deus o abençoe e que nos conceda a graça de estarmos juntos, em breve, nas mansões eternas! Amém!





quinta-feira, 9 de agosto de 2018

A PRESCIÊNCIA DIVINA: RELATIVA OU ABSOLUTA?


Alberto Ronald Timm, PhD

A doutrina da presciência divina tem sido marcada por vários conflitos ao longo da história do cristianismo. Já no início do século V, encontramos a controvérsia pelagiana, na qual, de um lado estava Agostinho, defendendo a doutrina da predestinação e da "graça divina irresistível", e do outro, Pelágio e Céstio, superenfatizando a "liberdade da vontade humana". [1]

Durante o período da Reforma dos séculos XVI e XVII, podemos salientar que, mesmo entre os adeptos da Confissão de Augsburgo (1530), houve por algum tempo desacordo entre alguns teólogos sobre a questão "da eterna presciência e eleição de Deus". [2] Porém, como ponto culminante, podemos considerar a reação que o calvinismo produziu especialmente na Holanda, e que envolveu os Países Baixos protestantes.

A maior expressão dessa reação encontramos em Jacó Arminius (1560-1609) e seus discípulos, cuja doutrina é conhecida como arminianismo. Essa controvérsia assumiu caráter político e intensificou-se a tal ponto que, num sínodo nacional em Dort (1619), p arminianismo foi condenado, e um de seus defensores, João van Odenbarneveldt, foi decapitado em 13 de maio de 1619, e Grotius, condenado à prisão perpétua, muito embora conseguisse fugir posteriormente. [3]


Ainda hoje, o cristianismo se encontra dividido neste aspecto da teologia; e, para chegarmos a algumas conclusões mais consistentes, mencionaremos primeiramente algumas das principais maneiras como tem sido interpretado o assunto e, então, procuraremos nos deter ao máximo no conceito bíblico e em suas implicações sobre outros aspectos da teologia bíblica.


Teorias Sobre a Presciência Divina


As várias teorias sobre a presciência divina podem ser reunidas em dois grupos principais: os que crêem na presciência divina absoluta, e os que advogam a presciência divina relativa, isto é, não absoluta. O primeiro grupo, que crê na presciência divina absoluta, pode ser dividido em dois subgrupos: um afirmando que a presciência divina não é causativa em si mesma, sendo, deste modo, compatível com o livre-arbítrio humano; e o outro, asseverando a presciência divina causativa, ou seja, que ela implica em predestinação absoluta ou determinismo, negando, portanto, o livre-arbítrio humano.

Entre os que creem na presciência divina absoluta e não-causativa, encontra-se a maioria dos cristãos ortodoxos e fundamentalistas, entre os quais estão os Adventistas do Sétimo Dia. Eles afirmam que Deus prevê o futuro nos seus mínimos detalhes, bem como todas as ações dos seres livres, sem que isto implique em determinismo ou predestinação.

Já os que asseveram a predestinação divina absoluta e causativa, colocam grande ênfase sobre a "soberania de Deus", [4] afirmando que todas as coisas ocorrem pela vontade divina. Seus maiores defensores são os seguidores da dupla predestinação de Calvino; porém, suas raízes já podem ser encontradas em Santo Agostinho, segundo o qual, a graça divina é destinada àqueles a quem Deus escolhe. Ele, portanto, predestina aqueles que Ele quer predestinar, "para o castigo e para a salvação". Sendo que o número em cada um dos casos está fixado. [5]

Do outro lado estão os que acreditam numa presciência divina relativa, ou seja, que Deus não conhece o futuro no sentido absoluto. Para estes o ponto crucial é que, "se Deus conhece todas as coisas de antemão, toda a liberdade de ação parece ser excluída". [6] "Foi essa dificuldade que levou Cícero, Marcião e os socinianos a negarem a presciência absoluta de Deus. Os jesuítas tentaram harmonizar a presciência divina e a liberdade humana por sua doutrina de um conhecimento médio (mediato); isto é, um conhecimento contingente do futuro; por exemplo, Deus conhece o que Ele irá fazer SE Davi for a Queila, e igualmente SE ele não for; etc.

A teologia católica romana aceita este conhecimento mediato. Os arminianos e os luteranos não são hostis a ele. Agostinho e todos os teólogos reformados rejeitaram-no absolutamente." [7] Ainda entre os defensores dessa posição estão os que advogam a "Onisciência Aberta", isto, é, que Deus prevê o futuro apenas parcialmente — pelas consequências naturais de fatores presentes e passados, pelas Suas próprias ações (o que Ele há de fazer), e pelo fato de conhecer todas as opções disponíveis aos seres humanos; porém não as próprias ações livres. [8] E o Dr. Herman Bavinck (1854-1921), um dos maiores teólogos reformados, esclarece que esta posição "está baseada sobre o conceito pelagiano do livre-arbítrio; e torna Deus dependente do homem". [9]


Predestinação e Livre-Arbítrio


Predestinação e livre-arbítrio são dois conceitos aparentemente contraditórios. Como a Bíblia estabelece a ambos, não podemos advogar apenas um deles, em detrimento do outro; pois "quando argumentamos dedutivamente, com base na onisciência e na onipotência de Deus, o livre-arbítrio humano parece ser obliterado. Por outro lado, quando argumentamos dedutivamente, com base no livre-arbítrio humano, a presciência e o poder divino de determinar as ações parecem excluídos". [10] Assim surge a indagação: Até que ponto Deus determina os acontecimentos humanos, e até que ponto o homem é livre em suas ações?

A doutrina da predestinação calvinista "sustenta que desde toda a eternidade passada, todas as coisas foram ordenadas de antemão, de tal modo que elas terão de ocorrer necessariamente dentro do tempo, incluindo a salvação final ou a reprovação final dos homens". [11] Essa doutrina afirma ainda que Cristo morreu apenas pelos "eleitos de Deus", para os quais a graça salvadora de Deus é concedida incondicionalmente; enquanto que para o restante da humanidade não há esperança de salvação.

A doutrina da predestinação nem sempre tem sido apresentada da mesma forma; porém, desde os dias da controvérsia com o arminianismo, duas concepções diferentes têm sido advogadas: o supralapsarianismo e o infralapsarianismo; a primeira afirmando que o primeiro pecado do homem, que o levou à queda, havia sido predestinado; e a segunda, que esse pecado de Adão foi meramente um objeto da presciência divina. [12] Em outras palavras, o supralapsarianismo acredita que o decreto da eleição precedeu à queda, ao passo que o infralapsarianismo "acredita que os indivíduos que foram vistos por Deus como "eleitos", foram contemplados por Deus como membros de uma raça decaída. Em outras palavras, o decreto da eleição se seguiria logicamente, se não mesmo cronologicamente, à queda do homem no pecado". [13]

Entretanto, o próprio relato da criação e da queda do homem, no livro de Gênesis, estabelece a doutrina do livre-arbítrio humano — de um lado está a ordem divina a Adão: "Da árvore da ciência do bem e do mal não comerás" (cap. 2:17), e do outro, a transgressão dessa ordem: "e ele comeu" (cap. 3:6). Este episódio demonstra claramente que as ordens divinas podem ser transgredidas por Suas criaturas dotadas de livre-arbítrio. Mesmo para Henrique Bullinger (1504-1575), o sucessor de Zuínglio, a predestinação da queda de Adão parecia irreconciliável com a justiça da punição do pecado. [14] Isto faria de Deus um tirano arbitrário! E neste ponto surge mais uma indagação: "Uma vez que somos todos pecadores, por que uma pessoa deveria ser escolhida para honra e outra para desonra?" [15]

A dupla predestinação calvinista afirma que a graça salvadora de Deus é concedida apenas aos que Ele predestinou à salvação; porém o conceito bíblico não suporta esta posição. Isaías 55:1 diz: "Ah! todos vós os que tendes sede, vinde às águas...", e Cristo ratifica essas palavras com o convite: "Vinde a Mim todos..." (S. Mat. 11:28), e ordena que as boas-novas da salvação devem ser pregadas "a toda criatura" (S. Mar. 16:15). A Bíblia aprofunda ainda mais esse conceito ao declarar que Deus deseja que todos os homens sejam salvos" (I Tim. 2:4), e que Ele não quer "que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento" (II S. Ped. 3:9); e a ordem divina é: "Agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam" (Atos 17:30). "O convite a todos para que se arrependam seria um escárnio ao nome de Deus se os homens não se pudessem arrepender." [16] A Bíblia acrescenta, porém, que "Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que O teme e faz o que é justo Lhe é aceitável" (Atos 10:34 e 35).

Na verdade, "a predestinação pode apenas ser compreendida cristologicamente". [17] Porque o próprio Deus declara: "Tão certo como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho, e viva." Ezeq. 33:11. E I S. João 5:12 esclarece ainda mais este aspecto ao dizer que "aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida". Neste sentido a eleição bíblica para a salvação é "em Cristo" (Efés. 1:4).

"Certas coisas foram decretadas pelo livre-arbítrio de Deus, e uma delas é a lei da escolha e suas conseqüências. Deus decretou que todo aquele que voluntariamente se entrega a Seu Filho Jesus Cristo na obediência da fé, receberá a vida eterna e se tornará filho de Deus. Decretou também que aqueles que amam as trevas e continuam em sua rebeldia contra a suprema autoridade do Céu, permanecerão em estado de alienação espiritual e sofrerão a morte eterna." [18]

Por outro lado, a Bíblia não sanciona um livre-arbítrio tal como o que Pelágio defendia. Muito embora o homem tenha sido criado originalmente com livre-arbítrio pleno, ele o perdeu em grande proporção, devido ao pecado. O apóstolo S. Paulo declara que o homem natural é "prisioneiro da lei do pecado" (Rom. 7:23), e que ele não consegue fazer por suas próprias forças o bem, ainda que ele o queira, mas apenas o mal que não quer (Rom. 7:19). Mas ele acrescenta que "em Cristo" podemos ser livres "da lei do pecado" (Rom. 8:2); e o próprio Cristo afirmou que, "se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres" (S. João 8:36). Porém, mesmo estando "em Cristo", há um aspecto sob o qual o cristão não é livre. No dizer de Lutero: "Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos." [19] (Ver I Cor. 9:19 e Rom. 13:8.) "O cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e no próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor. Pela fé o cristão se eleva até Deus e diante de Deus se curva pelo amor; mas sempre permanece em Deus e no amor divino." [20]

"Não é um decreto arbitrário da parte de Deus que veda o Céu aos ímpios; estes são excluídos por sua própria inaptidão para dele participar." [21] Mas, se Deus não quer que nenhum pereça, por que alguns se perderão? "Tudo depende da reta ação da vontade. O poder da escolha deu-o Deus ao homem; a ele compete exercê-lo. Não podeis mudar vosso coração, não podeis por vós mesmos consagrar a Deus as suas afeições; mas podeis escolher servi-Lo. Podeis dar-Lhe a vossa vontade; Ele então operará em vós o querer e o efetuar, segundo o Seu beneplácito." [22]

Mas mesmo havendo gozado uma vez a salvação em Cristo, a Bíblia declara que essa eleição pode ser perdida (Heb. 6:4-6: "Foram iluminados e provaram o dom celestial... e caíram"); e o apóstolo S. Paulo, após declarar que ele havia sido "chamado pela vontade de Deus" (I Cor. 1:1 e 2), afirma que ele próprio poderia "ser desqualificado" (I Cor. 9:27).

Portanto, o livre-arbítrio do homem para escolher a salvação ou a perdição é uma das grandes ênfases bíblicas; pois, se o destino de cada indivíduo já estivesse predeterminado desde a eternidade, para a salvação ou para a perdição, a proclamação do evangelho perderia o seu sentido, os homens não seriam mais moralmente responsáveis, e Deus, em última análise, seria responsável pela perdição dos impenitentes, o que faria da punição do pecado — a cada um "segundo as suas obras" (Apoc. 20:12) — uma farsa e uma injustiça; pois tais obras teriam sido o resultado do desígnio divino. Isto é completamente contrário ao conceito bíblico!

A Presciência Divina e a Origem e a Existência do Mal


Neste ponto de nossas considerações surge outra indagação: Se a doutrina da dupla predestinação calvinista não satisfaz o conceito bíblico, como vimos anteriormente, não seria melhor admitirmos o conceito da presciência divina relativa, isto é, que Deus não conhece o futuro no sentido absoluto, para que possamos estabelecer a doutrina do livre-arbítrio humano, e para que Ele não seja responsável pelo pecado?

— Antes de chegarmos às conclusões mais detalhadas sobre a presciência divina, analisaremos ainda o conceito da origem e da existência do pecado.

A Bíblia declara que o pecado se originou em Lúcifer, um ser perfeito que veio a rebelar-se contra Deus (Ezeq. 28:14 e 15; Isa. 14:12-15), o qual, após suscitar "peleja no Céu", foi expulso (Apoc. 12:7-9). Posteriormente, ele induziu também os nossos primeiros pais ao pecado. O Espírito de Profecia diz a esse respeito, e com relação ao plano divino para a salvação do homem: "O plano de nossa redenção não foi um pensamento posterior, formulado depois da queda de Adão.... Desde o princípio Deus e Cristo sabiam da apostasia de Satanás, e da queda do homem mediante o poder enganador do apóstata. Deus não ordenou a existência do pecado. Previu-a, porém, e tomou providências para enfrentar a terrível emergência."[23]

"Deus tinha um conhecimento dos eventos do futuro, mesmo antes da criação do mundo. Ele não fez Seus propósitos para se ajustarem às circunstâncias, mas permitiu que as coisas se desenvolvessem e surtissem efeito. Ele não agiu para produzir certas condições, mas sabia que tais condições iriam existir." [24]

Se Deus sabia, porém, de antemão, que Lúcifer e nossos primeiros pais cairiam em pecado, por que Ele os criou? — Cristo "sabia que Lúcifer procuraria tirar-Lhe a vida durante o Seu ministério terrestre e que finalmente conseguiria fazê-lo no Calvário. Sabia que Lúcifer tentaria induzi-Lo a abusar do poder de Seu Pai ou de Seu próprio poder. Ele sabia também a parte que seria desempenhada por homens e mulheres. Mas a eterna presciência de Cristo dos contínuos e definidos efeitos dos pecados dos outros sobre Ele foi superada por Seu eterno amor. Prosseguiu na criação dos anjos e do homem a despeito do terrível custo para Sua própria Pessoa." [25]

Mas, o fato de Cristo os ter criado, apesar de saber previamente que eles cairiam, não torna Deus, em última análise, o autor do pecado? — A questão básica na compreensão deste assunto é fazermos "a diferença entre ‘praescientia’ e ‘praedestinatio’, isto é, entre a presciência e a eterna eleição de Deus. A presciência de Deus nenhuma outra coisa é senão isso que Deus sabe todas as coisas antes de acontecerem [26]; "mas ela "não é causativa em si mesma". [27]

Deus é o autor de tudo que foi criado (Apoc. 4:11), mas não de tudo que existe; porque o pecado realmente existe, mas não foi criado. Segundo Bavinck, "o pecado de fato não tem origem, mas só um início". [28] E Berckouwer acrescenta que "o pecado é presente e não tem direito de existir. Existe, e ninguém explica a sua origem. Entrou sem motivo no mundo..." [29] Ele é biblicamente descrito como o ‘mysterium iniquitatis’ ("mistério da iniqüidade" — II Tess. 2:7), por causa do seu "caráter sem sentido e sem motivo", [30] "ilegítimo e injustificável" [31] e "estranho, que não podemos discernir pela nossa inteligência humana e limitada". [32]

Ellen G. White afirma que "a existência do pecado é inexplicável". [33] "O pecado é um intruso, por cuja presença nenhuma razão se pode dar. É misterioso, inexplicável; desculpá-lo corresponde a defendê-lo. Se para ele se pudesse encontrar desculpa, ou mostrar-se causa para a sua existência, deixaria de ser pecado." [34] Para Kierkegaard, o pecado é uma posição, e está além da capacidade do pecador compreender o pecado. Se pudesse compreendê-lo, estaria acima dele. "O fato de que ele é compreendido significa precisamente que é negado." [35]

A razão por que Deus não pode ser responsabilizado pela queda de Suas criaturas, é a maneira como Ele as trata. A respeito de Lúcifer é dito que "Deus, em Sua misericórdia, suportou longamente a Satanás. ... Reiteradas vezes lhe foi oferecido o perdão, sob a condição de que se arrependesse e submetesse." [36] Para Adão, segundo Gerhard von Rad, "a própria proibição de comer do fruto da árvore do conhecimento é resultado da solicitude de Deus, pois se comesse desses frutos o homem se destruiria". [37] E para a pecadora raça humana, Deus não somente proveu o plano da redenção, como também é concedido um tempo de graça a cada pecador, durante a sua existência.

E Berckouwer conclui: "A respeito da ‘praescientia Dei’ foi esclarecido que esta não é a causa do mal, e também sobre o pecado hereditário foi dito que Deus não é seu autor, e tudo isto é concebido sem mais ‘extra conversiam’, afirmando-se que Deus não nos torna pecaminosos, pois a nossa natureza corrupta é obra de Satanás." [38] Crer numa presciência divina relativa, como o "conhecimento mediato" ou a "onisciência aberta", apenas põe o problema um pouco mais distante, mas não o soluciona. "O problema que sempre surgiu não foi originado por nossa falta de visão dos caminhos de Deus, mas está relacionado com o fato de que se trata aqui do pecado, que nunca pode ser posto ou visto numa relação lúcida sem lançar sombras sobre a glória de Deus." [39]

Mas, apesar de o pecado ser um mistério, a grande realidade da "ação vitoriosa de Deus sobre o pecado" [40] permanece como ponto crucial da história salvífica. A doutrina da "onisciência aberta" admite a possibilidade de surgir uma nova rebelião, após a final erradicação do pecado; [41] mas a Bíblia assegura que "não se levantará por duas vezes a angústia" (Naum 1:9), e o Espírito de Profecia confirma estas palavras ao declarar que "a rebelião não se levantará segunda vez. Jamais poderá entrar o pecado no Universo. Todos estarão por todos os séculos garantidos contra a apostasia". [42] E a garantia contra uma nova rebelião está na morte de Cristo sobre a cruz do Calvário.

"Quando Satanás for destruído, não existirá alguém para tentar ao mal; a expiação jamais precisará ser repetida; e não haverá o perigo de outra rebelião no universo de Deus. Aquilo unicamente que pode de maneira eficaz afastar do pecado neste mundo de escuridão, irá impedir o pecado no Céu. O significado da morte de Cristo será compreendido pelos santos e pelos anjos." [43]


A Presciência Divina e as Profecias Bíblicas


As profecias bíblicas têm sido consideradas "o diapasão da Bíblia — sua grande, dominante nota do Gênesis ao Apocalipse"; [44] porque cerca de um terço da Bíblia está relacionado com profecias. [45]

A literatura profética da Bíblia, essencialmente, tem sido classificada em dois grandes grupos: 1) Profecia geral, como por exemplo a que pode ser encontrada em Isaías, Jeremias, Amós, etc; e 2) profecia apocalíptica, como de Daniel.46 Porém, neste estudo, para melhor compreensão, analisaremos as profecias bíblicas sob três aspectos diferentes, muito embora possam estar relacionados em alguns pontos: 1) Profecias condicionais; 2) profecias incondicionais; 3) profecias messiânicas.

As profecias condicionais são aquelas profecias dos profetas hebreus, especialmente, nas quais o elemento humano está diretamente envolvido num relacionamento de concerto. Este relacionamento de concerto envolve pelo menos duas partes — de um lado aparece a parte divina, e do outro, a parte humana. Para que tais profecias se cumpram, é necessário que ambas as partes cumpram a expectativa do concerto; se uma parte falhar, a profecia não encontra o seu pleno cumprimento previsto. Nestas profecias, Deus sempre cumpre as expectativas do concerto; portanto, o seu cumprimento final depende de o homem também cumprir a sua parte do concerto. Um exemplo clássico das profecias condicionais encontramos na pregação de Jonas em Nínive, que dependia da resposta dos ninivitas ao chamado ao arrependimento. Em Isaías 58:13 e 14 encontramos bem vívida a condicionalidade da promessa divina: "Se desviares o teu pé de profanar o sábado...; então te deleitarás no Senhor." Igualmente a promessa da salvação individual repousa sob a condição de termos a Cristo (I S. João 5:12).

Por profecias incondicionais subentendemos as profecias preditivas ou apocalípticas, que, muito embora encontrem o seu cumprimento ao longo da história humana, não dependem diretamente do elemento humano; isto é, não estão baseadas num relacionamento de concerto. "A profecia apocalíptica realça o fato de que Deus está no comando e a história da salvação avança de acordo com a Sua presciência.... A literatura apocalíptica tem em torno de si uma incondicionalidade e inevitabilidade que confere a suas predições um aspecto absoluto.... Não importa o que façam os poderes do mal, o bem irá triunfar de acordo com a presciência de Deus." [47] Um exemplo clássico destas profecias encontramos em Daniel 2, onde o curso da história humana desfila diante do profeta, até o seu fim, com a implantação do reino de Deus na Terra.

Aparentemente, essas profecias suportam a idéia da presciência relativa, mas se as investigarmos em profundidade, tal posição não pode ser mantida. As profecias incondicionais, dado o seu cumprimento incondicional, suportam apenas duas possibilidades: ou Deus predestinou todo o curso da História, ou Ele o anteviu, e então o revelou aos profetas; mas mesmo neste caso, não podemos nos esquecer de que "o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens" (Dan. 4:25). Porque a alegação de que Deus podia predizer o futuro da História, com base nos fatores já existentes na época em que a profecia foi revelada, [48] deixa muito a desejar; pois prever o curso da história humana por cerca de quinze séculos, como é o caso das profecias de Daniel, exige muito mais fé do que crer que Deus tem a capacidade de o antever pela Sua presciência.

Como vimos anteriormente, Deus apenas predestina o bem; ao passo que a atuação do mal, Ele apenas antevê. E neste ponto surgem algumas indagações: Será que durante o ministério profético de Isaías já existiam fatores que permitiam predizer a atuação, bem como o fato de que o indivíduo pagão que tomaria Babilônia e libertaria o povo judeu do cativeiro receberia o nome de "Ciro", aproximadamente 150 anos depois? (Isa. 44:28; 45:1-6). Será que todos os mínimos detalhes proféticos que encontramos em Jeremias 50 e 51, sobre a queda de Babilônia, foram previstos como decorrência de fatores naturais já existentes?

Há apenas duas opções satisfatórias: estas profecias, ou são fruto de uma presciência divina; ou os instrumentos humanos não foram completamente livres em suas ações, pois estas já estavam determinadas. E ainda, será que ao tempo da segunda visão de Daniel (c. 551 A.C.) já existiam fatores determinantes, pelos quais podia ser prevista a atuação histórica de Alexandre o Grande, e especialmente o fato e que ele morreria repentinamente no auge do seu poder em 323 A.C. (Dan. 8:5-8) e que o seu sucessor não conseguiria manter o império unido (Dan. 8:8)?

Surgem também no cenário bíblico as profecias messiânicas, as quais, muito embora consideremos como fazendo parte das profecias cujo cumprimento é incondicional, analisaremos particularmente. Estas profecias têm sido classificadas em dois grupos principais: as que tratam do Messias como Servo Sofredor, e as que tratam a respeito do Messias Triunfante, isto é, da glória messiânica. Quanto à Sua missão como Servo Sofredor, a Bíblia descreve os Seus sofrimentos e a Sua morte como o cumprimento do "determinado desígnio e presciência de Deus" (Atos 2:23).

Neste caso, por que a Bíblia não fala apenas em desígnio, mas acrescenta também o cumprimento da presciência divina? — Porque ambas não são a mesma coisa, nem o poderiam ser; pois a Bíblia não descreve apenas a atuação divina em relação à morte de Cristo (desígnio), como também o papel que os poderes do mal iriam desempenhar (pres¬ciência), o qual não foi predestinado por Deus, pois neste caso Ele estaria predesti¬nando o mal, o que não é compatível com o Seu caráter. Os detalhes das profecias messiânicas que descrevem a atuação dos poderes do mal, através de instrumentalidades humanas, só podem ser explicados a contento como tendo sido fruto da presciência divina absoluta e não causativa.

Será que no tempo de Davi já existiam fatores pelos quais podia ser predito que um "amigo íntimo" do Messias, que com Ele comia do Seu pão, O trairia? (Sal. 41:9; 55:12-14; cf. S. Mat. 26:20-25.) Baseado em que Cristo pôde declarar antecipadamente que Pedro O havia de negar "três vezes" antes que o galo cantasse? (S. Mat. 26:33; cf. S. Mat. 26:69-75.) E quanto às "trinta moedas de prata" que o traidor iria arrojar "ao oleiro na casa do Senhor"? (Zac. 11:12 e 13; cf. S. Mat. 27:3-10.)

Será que cerca de um milênio antes de ocorrer, já existiam fatores que possibilitavam predizer que as vestes de Cristo seriam repartidas pelos soldados, e que sobre a Sua túnica lançariam sortes? (Sal. 22:18; cf. S. Mat. 27:35) O Salmo 22, que tem sido considerado "o Salmo da Cruz", apresenta detalhes surpreendentes. A origem da crucifixão como modo de execução não é clara. Mas sabemos que "já os persas e certas tribos bárbaras, como os citas, durante a segunda metade do último milênio antes de Cristo, podem ter introduzido esta forma cruel de dar morte a uma pessoa". [49]

Também para os judeus a crucifixão era desconhecida antes do cativeiro babilónico. "Os judeus executavam seus criminosos por apedrejamento. A crucifixão era um costume romano e grego; porém os impérios grego e romano não existiam no tempo de Davi. Não obstante, encontramos aqui uma profecia escrita 1.000 anos antes do nascimento de Cristo, por um homem que jamais viu ou ouviu falar de tal método de punição capital como a crucifixão." [50] (Sal. 22:16 — "traspassaram-Me as mãos e os pés".) Mas já na própria serpente que Moisés erigiu no deserto, encontramos um tipo da morte do Messias (Núm. 21:8 e 9; cf. S. João 3:14). E o próprio capítulo 53 de Isaías parece ter sido escrito ao pé da cruz de Cristo. [51]

Quanto às profecias que falam do triunfo do Messias sobre a morte, a Bíblia não fala em termos de possibilidades, mas de realidades. O próprio Cristo declarou que Ele ressuscitaria ao terceiro dia (S. Mat. 16:21; 17:23; 20:19; etc). É certo que Cristo poderia ter fracassado em Sua missão; mas Deus em Sua presciência viu que isto não ocorreria, daí a forma enfática como são enunciadas essas profecias.

Afirmamos anteriormente que a presciência divina absoluta não é causativa; e isto transparece claramente nas predições concernentes à segunda vinda de Cristo. A Bíblia faz o tempo em que esse evento ocorrerá depender da atuação humana com respeito à proclamação do evangelho (S. Mat. 24:14) e à aceitação prática do evangelho na vida dos crentes (II S. Ped. 3:9); e o aspecto condicional do tempo para que esse evento ocorra é mais do que reforçado em II S. Ped. 3:12, ao declarar que pela atuação humana positiva, esse dia pode ser apressado.

E a Sra. White já afirmou em 1903 que, "se o povo de Deus houvesse mantido viva ligação com Ele, se Lhe houvessem obedecido à Palavra, estariam hoje na Canaã celestial". [52] Mas, por outro lado, o próprio Cristo declarou que Deus, o Pai, sabe o dia e a hora em que esse evento ocorrerá (S. Mat. 24:36). Se adotarmos a posição da presciência divina relativa, isto é, que Deus não conhece absolutamente os atos livres dos homens antes que realmente ocorram, nós encontraremos aqui, não apenas uma tensão, como uma contradição; e para solucionarmos esse problema, teremos de ofuscar uma das partes — ou teremos de declarar que esse evento é um ato divino cujo tempo independe da atuação humana, ou teremos de negar que Deus realmente o saiba.

E a questão torna-se ainda mais difícil ao considerarmos que a declaração de Cristo, afirmando que Deus sabe o tempo exato para esse evento, antecede a afirmação de II S. Pedro 3:12, sobre a possibilidade humana de apressar esse evento. Aceitarmos que a presciência divina é absoluta e não causativa, não é apenas uma possibilidade para solucionarmos o problema, mas é a única solução satisfatória para essa tensão.

Caso contrário, teremos de encarar este aspecto da tensão sobre a segunda vinda de Cristo da mesma maneira como a doutrina da "onisciência aberta" considera a tensão que aparece no Espírito de Profecia, sobre o fato de Deus saber anteriormente da apostasia de Lúcifer e da queda do homem, como uma contradição, cuja parte que mais lhe convém e que melhor se adapte ao esquema teológico estabelecido é afirmada, negando-se a veracidade absoluta do conceito que a outra apresenta.

Da perspectiva do livre-arbítrio humano é dito que "se o homem fosse desleal a Deus ..."; [53] e da perspectiva da presciência divina é declarado que "desde o princípio (isto é, antes que ocorresse) Deus e Cristo sabiam da apostasia de Satanás, e da queda do homem... Previu-a" [54] Para uma fiel exegese, tanto do texto bíblico, como do Espírito de Profecia, não podemos estabelecer um conceito negando o outro. Para aqueles que não conseguem conviver com uma tensão teológica, esse pode parecer o caminho mais fácil, mas não é o mais fiel e seguro.

Afirmar que "a própria visão de Ellen White da relação de Deus com o tempo pode não ser precisamente o que a linguagem empregada" em certas partes dos seus escritos dê a entender, e que ela apenas usou "a linguagem e os conceitos da teologia convencional para fazer um ponto de apoio", mas que esta não expressava claramente a sua ideia geral, [55] é negar a inspiração dos escritos de Ellen G. White, surgindo assim a necessidade de uma espécie de demitologização do Espírito de Profecia.


A Presciência Divina e as Visões Proféticas


Ainda dentro do contexto profético, podemos destacar um aspecto muito importante, que são as revelações divinas quanto ao futuro, sob a forma de visões proféticas. Este talvez seja o aspecto no qual transparece mais claramente a extensão e abrangência da presciência divina. Segundo Gerhard von Rad, numa visão o profeta "vê toda a história do mundo desfilar como um filme diante de seu espírito". [56]

Em outras palavras, numa visão imediata o profeta antevê eventos longínquos, tanto da ação divina, como da atuação humana e da influência dos poderes do mal na História. Se analisarmos detidamente as visões proféticas, não poderemos chegar a outra conclusão senão que, ou todas as coisas, tanto o bem como o mal, estão predestinadas por Deus, ou Deus conhece todas as coisas futuras absolutamente, sem que isto implique em predestinação e determinismo. E, pelas razões anteriormente apresentadas, não podemos crer numa predestinação absoluta, mas apenas numa presciência divina absoluta e não causativa.

No escopo das sete cartas profético-apocalípticas de Cristo às sete igrejas da Ásia Menor, não cabe a ideia de que Deus não conhece o futuro nos seus mínimos detalhes. Pelo contrário, na frequente expressão "conheço as tuas obras" (Apoc. 2:2, 19, etc.) transparece claramente o aspecto absoluto da presciência divina não causativa, pois nelas aparecem igualmente reprovações a essas obras previamente conhecidas, dos vários períodos proféticos da história da Igreja cristã através dos séculos. Não apenas os aspectos simbólicos do Apocalipse confirmam este aspecto, mas também as visões concretas da "grande multidão" (cap. 7:9 ss.), e quando o apóstolo João antevê "os vencedores" (cap. 15:2), bem como "os mortos" ímpios diante do juízo divino (cap. 20:12).

Também nas visões dadas à Sra. White sobre as glórias da era vindoura, ela viu os 144.000 receberem "os amigos que deles tinham sido separados pela morte", [57] e ainda mais, ela declara que no lar celestial teve o privilégio de ver "mesas de pedra, em que estavam gravados com letras de ouro os nomes dos 144.000". [58]

Tais visões, tanto as do apóstolo João como as de Ellen G. White, apresentam aspectos futuros da salvação que ainda não estavam definidos no tempo em que foram concedidas, como é o caso dos 144.000, que é um grupo cuja definição ainda está no futuro, pois depende do livre-arbítrio humano.

E o Espírito de Profecia declara também que a Adão foi concedida uma visão panorâmica do futuro, na qual ele pôde ver vários aspectos que tomariam lugar na história humana. [59] Igualmente Cristo, antes de Sua encarnação, viu todos os acontecimentos que marcariam o Seu ministério terrestre, "toda angústia..., todo insulto..., toda privação" que Lhe caberia suportar. [60] E a presciência divina absoluta transparece também na descrição do conhecimento prévio que Deus tinha de Jacó e Esaú, os dois irmãos gêmeos. "Deus conhece o fim desde o princípio. Sabia, antes do nascimento de Jacó e Esaú, que caracteres iriam desenvolver. Sabia que Esaú não teria um coração obediente a Ele." [61]

Para termos, porém, melhor compreensão da onisciência e da presciência divinas, não podemos deixar de considerar algumas visões de Ellen G. White, que são descritas no livro Crede em Seus Profetas. Pouco depois de sua chegada à Austrália, em dezembro de 1891, a Sra. White teve uma visão, na qual via o Sr. N. D. Faulk-head, um comerciante de muito êxito, que era também líder em cinco ou mais sociedades secretas.

Depois dessa visão a respeito dele e outro, ela se sentou e escreveu o caso do irmão Faulkhead em cerca de 50 páginas, com muitos pormenores. Quando ela quis colocar a mensagem no correio, isto lhe foi impedido. Cerca de doze meses mais tarde, quando ela voltou a Melburne, no dia 13 de dezembro de 1892, teve uma entrevista com o irmão Faulkhead, na qual ela lhe apresentou a mensagem contida no manuscrito que descrevia a visão recebida a seu respeito um ano antes. Entre outras coisas, a Sra. White havia descrito exatamente a atitude das pessoas presentes naquelas reuniões secretas a que ele vinha assistindo, o que dissera nessas reuniões, onde se sentava, a espécie de assento em que se sentara, e outros pormenores, os quais, confessou ele, só podiam ser descritos com tanta exatidão por Deus, através de Sua fiel mensageira. [62]

Talvez a visão mais impressionante a esse respeito seja a que a Sra. White teve no dia 3 de novembro de 1890, em Salamanca, Nova Iorque, na qual ela viu uma reunião de um pequeno grupo de homens que havia de se realizar a uns quatro meses mais tarde, na noite de 7 de março de 1891. Nesta visão ela viu um homem erguer-se e levantar um exemplar do American Sentinel, bem alto no ar, e apontar a vários artigos, declarando que assuntos tais como o sábado e a segunda vinda de Cristo não deviam achar lugar num jornal que servia de porta-voz à Associação de Liberdade Religiosa.

Por várias vezes a Sra. White começou a contar o que vira na visão, mas cada vez ela vacilava, e não podia lembrar um único pormenor a respeito; até que no domingo pela manhã, 8 de março de 1891, ela descreveu nos seus mínimos detalhes a visão que tivera quatro meses atrás, e que era uma descrição fiel dessa reunião estritamente secreta, que um pequeno grupo de homens fizera na noite anterior, no escritório da Review and Herald. [63] Isto nos pode levar apenas a uma única conclusão: Deus sabe todos os detalhes do futuro, com tal precisão, porque a presciência divina é absoluta, e não causativa.


Considerações Adicionais


A doutrina da presciência divina relativa se propõe a solver algumas tensões teológicas com as quais a teologia tradicional tem convivido por séculos; porém, nessa tentativa, surgem tensões ainda maiores e incompatíveis com certos aspectos da revelação divina.

A transcendência de Deus é um fato absoluto, e, para conhecê-Lo, a filosofia e a lógica humana não são suficientes; porque as limitações da natureza humana, não apenas limitam a nossa capacidade de compreensão, mas limitam o próprio grau da revelação divina (S. João 16:12). E Deus não pode ser limitado dentro de um esquema teológico; porque Ele é aquilo que revela a respeito de Si mesmo, e muito mais. "O homem como homem não tem acesso à vida interior de Deus, nenhum conhecimento do ser essencial de Deus. Teologia não é um estudo de "Deus em Si mesmo", mas de "Deus como Se tem revelado"." [64]

E neste ponto cabe a clássica diferenciação entre o Deus ‘absconditus’ e o ‘Deus revelatus’; entre aquilo que Ele é em essência, e aquilo que Ele pode revelar a respeito de Si mesmo, devido às limitações que nos são impostas pela nossa natureza humana pecaminosa. E Deus revela aos homens certos aspectos de Sua própria natureza e com respeito ao futuro em proporções limitadas àquilo que interessa à salvação histórica e individual dos pecadores. A respeito daquilo que transcende essa revelação divina, não nos compete especular (Deut. 29:29).

Na verdade, a doutrina da "onisciência aberta" confunde o interesse divino do futuro com a ignorância divina em relação ao futuro; ou seja, para que Deus Se interesse no futuro de Suas criaturas livres, é necessário que este esteja indefinido aos Seus olhos. [65] Tal dedução pode ser considerada simplesmente como uma visão antropomórfica de Deus; pois o fato de um professor prever que um de seus alunos não será aprovado no final do ano letivo, não é sinônimo de que ele perca o interesse e passe a negligenciar tal aluno, salvo se for um mau professor; pelo contrário, na maioria das vezes maior atenção lhe é ainda dispensada. Assim Deus, apesar de conhecer previamente todas as coisas, não perde o Seu interesse com os seres humanos, mas continua a fazer com que o Seu Sol nasça "sobre maus e bons" e com que a chuva venha "sobre justos e injustos" (S. Mat. 5:45).

Não! Ele não apenas pode nos socorrer após havermos sofrido um acidente automobilístico, mas Ele já nos prepara antecipadamente para as crises que sobre nós poderão abater-se, de forma que as provações da vida não ultrapassem as nossas forças (I Cor. 10:13).

A presciência divina relativa cria também um problema existencial — não podemos confiar plenamente em Deus, pois Ele pode ser surpreendido em alguns aspectos, como é o caso de um acidente automobilístico, para o qual não existem fatores que possam determinar previamente, na maioria dos casos, o que é resultante de atitudes e reflexos momentâneos. E neste caso, Deus seria injusto ao permitir que os pecadores impenitentes morressem perdidos, ainda em tenra idade, sendo que eles poderiam arrepender-se posteriormente, o que, segundo a doutrina da "onisciência aberta", Deus não pode saber com segurança, mas apenas as possibilidades. Mas para que Ele soubesse todas as possibilidades que tal indivíduo teria, seria necessário que conhecesse absolutamente as ações e atitudes dos outros seres livres que com ele viessem a se relacionar, e que seriam os instrumentos para lhe estenderem o chamado à salvação, o que por sua vez também são ações livres.

Através das profecias bíblicas não podemos conceber a ideia de um Deus que adivinhou a atuação futura do mal em seus mínimos detalhes, e acertou; pois Deus não trata com possibilidades apenas, mas com realidades. A Bíblia não afirma que Deus anuncia desde o princípio "o que pode acontecer", mas "o que há de acontecer" (Isa.46:10).

Se Deus não conhece os detalhes das livres ações futuras, teremos que admitir necessariamente que os detalhes que foram profeticamente apontados, são frutos da predestinação divina, tanto para a perdição (como o papel que Judas desempenharia), como para salvação; o que não é compatível com o caráter divino.
Será que o Deus que teve poder para criar seres livres "do nada" [ex-nihilo], não teria poder para conhecer antecipadamente as suas ações? A resposta para esta pergunta encontramos no Salmo 139, onde lemos: "Senhor, Tu me sondas e me conheces.... De longe penetras os meus pensamentos." "Ainda a palavra me não chegou à língua, e Tu, Senhor, já a conheces toda." "Os Teus olhos me viram a substância ainda informe, e no Teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado (aos olhos de Deus), quando nem um deles havia ainda." Versos 1,4 e 16.

Na verdade, se a minha perspectiva futura é limitada, isto não implica em que a de Deus também o seja; porque Deus não está limitado pelo tempo (II S. Ped. 3:8), e Ele "não vê como vê o homem" (I Sam. 16:7).

A doutrina da "onisciência aberta" não apenas supervaloriza o livre-arbítrio humano, em detrimento da presciência divina, como ainda faz uma interpretação parcial do conceito bíblico. Assim como não é correto indagarmos: "Jesus Cristo é divino ou humano?", porque Ele é ambas as coisas; não é correto perguntarmos: "A presciência divina é absoluta ou o homem possui livre-arbítrio?", porque ambos os conceitos são firmemente estabelecidos biblicamente, e não podemos ser parciais. A pergunta que deve ser feita ao tratarmos da presciência divina é se ela é causativa, ou não.

"Os falsos profetas discursam somente em termos gerais e em linguagem ambígua. Suas declarações podem ter os mais contraditórios significados.... A clareza e plenitude das declarações proféticas podem ser consideradas unicamente como uma revelação do Deus onisciente. ....  As predições divinas são claras em suas anunciações. Não há ambiguidade, nem duplo significado. ... Ninguém é deixado em dúvida, quer o evento a ocorrer seja favorável, quer desfavorável. Ninguém é deixado em dúvida sobre qual o lugar ou o povo que é o objetivo principal da profecia. Neste caso (Ezeq. 26:7-14) cada circunstância é narrada com tantos e minuciosos detalhes como se fosse uma parte de história ocorrida diante dos olhos do narrador.... As predições de Deus sempre se cumprem. Pois para Deus não existe futuro. Ele vê coisas distantes como se estivessem próximas. Olhando através da perspectiva dos séculos, Ele percebe como cada evento desponta do evento que o precede." [66]

Mas a "Sua presciência ... não envolve qualquer força posta sobre a vontade humana". [67] "A presciência não é causativa em si mesma. Ela não pode ser confundida com a vontade predeterminante de Deus. As ações livres não ocorrem porque são previstas, mas elas são previstas porque irão ocorrer."[68] E Deus "não somente conhece antecipadamente os motivos que irão ocasionar os atos dos homens, mas prevê diretamente os próprios atos". [69]

Contra a doutrina da presciência divina relativa, "nós incitamos não apenas a nossa convicção fundamental da perfeição de Deus, mas também o constante testemunho das Escrituras. Em Isaías 41:21 e 22, Deus faz de Sua presciência a prova de Sua divindade na controvérsia com os ídolos. Se Deus não pode prever os atos humanos livres, então "o Cordeiro que foi morto, desde a fundação do mundo" (Apoc. 13:8) era apenas um sacrifício a ser oferecido caso Adão fosse cair, não sabendo Deus se ele iria ou não cair; e caso Judas viesse a trair a Cristo, não sabendo Deus se ele iria ou não fazê-lo. Sem dúvida, visto que o curso da Natureza é mudado pela vontade do homem quando ele queima cidades e derruba florestas, Deus não pode nesta teoria predizer mesmo o curso da Natureza. Todas as profecias são, portanto, um protesto contra essa visão". [70]

Na verdade, a Bíblia diz que Deus é "perfeito em conhecimento" (Jó 37:16) e "conhece todas as coisas" (I S. João 3:20), inclusive "o que há de acontecer" (Isa. 46:10). E neste ponto a razão humana deve prostrar-se ante a onisciência divina e declarar: "Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os Seus juízos e quão inescrutáveis os Seus caminhos!" Rom. 11:33.


Referências

1. A posição de Pelágio "é bem expressa na frase: "Se eu devo, eu posso." Sua atitude era a de ética estóica popular". — Williston Walker, História da igreja Cristã (Rio de Janeiro, JUERP-ASTE, 1980), pág. 240.

2. Livro de Concórdia — As Confissões da Igreja Evangélica Luterana (São Leopoldo, Ed. Sinodal. Ed. Concórdia, 1980), págs. 497 e 660-678.

3. Williston Walker, op. cit., pág. 236.

4. Este aspecto é muito enfatizado por A. W. Pink, em seu livro Deus é Soberano (Atibaia, Ed. Fiel, 1977).

5. Williston Walker, op. cit, pág. 236.

6. Herman Bavinck, The Doctrine of God (Edimburgo, The Banner of Truth Trust, 1979), pág. 189.

7. Ibidem. Ver também Louis Berkhof, Systematic Theology (Edimburgo, The Banner of Truth Trust, 1976), págs. 66-68.

8. Richard Rice, The Openness of God (Washington, D. C, Review and Herald Publ. Ass., 1980), págs. 47 e 48.

9. Herman Bavinck, op. cit, pág. 189.

10. Sanday. Citado por Russell Norman Champlin, em O Novo Testamento interpretado Versículo por Versículo (Guaratinguetá, A Voz da Bíblia, s. d.), vol. 3, pág. 727.

11. Russell Norman Champlin, op. cit, vol. 3, pág. 753.

12. Louis Berkhof, op. cit, pág. 118.

13. Russell Norman Champlin, op. cit., vol. 3, pág. 75*3.

14. Philip Chaff. Citado por Modesto Marques de Oliveira, em História das Religiões Contemporâneas (São Paulo, IAE, s. d.), pág. 9.

15. J. Ivan Crawford, Buscando a Glória de Deus — Lição da Escola Sabatina, abril-junho de 1982, ed. do professor, pág. 60.

16. Pedro Apolinário, Análise de Textos Bíblicos de Difícil Interpretação (São Paulo, IAE, 1980), vol. 1, pág. 19.

17. G. C. Berkouwer, Faith and Justification (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publ.Comp., 1979), pág. 164.

18. A. W. Tozer, Mais Perto de Deus (São Paulo, Ed. Mundo Cristão, 1980), pág. 132.

19. Martinho Lutero, Da Liberdade Cristã (São Leopoldo, Ed. Sinodal, 1979), pág. 9.

20. Idem, pág. 48.

21. Ellen G. White, Caminho a Cristo, pág. 17.

22. Idem, pág. 42.

23. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, págs. 17 e 18.

24. Ellen G. White, SDA Bible Commentary, vol. 6, pág. 1.082.

25. Norman R. Gulley, O Sacrifício Expiatório de Cristo — Lição da Escola Sabatina, janeiro-março de 1983, ed. do professor, pág. 5.

26. Livro de Concórdia, pág. 532.

27. Augustus H. Strong, Systematic Theology (Valley Forge, PA., Jud-son Press, 1979), pág. 286.

28. Citado por G. C. Berkouwer, em Doutrina Bíblica do Pecado (São Paulo, ASTE, 1970), pág. 79.

29. G. C. Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, pág. 50.

30. Idem, pág. 112.

31. Idem, pág. 44.

32. Idem, pág. 107.

33. Ellen G. White, Testemunhos Para Ministros e Obreiros Evangélicos, pág. 265.

34. Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 496.

35. Soren Kierkegaard. Citado por William E. Hulme, em Dinâmica da Santi/icação (São Leopoldo, Ed. Sinodal/C. P. Concórdia, 1976), pág. 21.

36. Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 498. Ver também Patriarcas e Profetas, capítulo "Por Que Foi Permitido o Pecado?"

37. Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento — Teologia das Tradições Históricas de Israel (São Paulo, ASTE, 1973), vol. 1, pág. 156.

38. G. C. Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, pág. 28.

39. Idem, pág. 48.

40. Idem, pág. 28.

41. Richard Rice, op. cit., pág. 54.

42. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 22.

43. Ellen G. White, SDA Bible Commentary, vol. 5, pág. 1.132.

44. Herbert Lockyer, All the Messianic Prophecies of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publ. House, 1980), pág. 16.

45. Idem, pág. 15.

46. O Ministério Adventista, março-junho de 1981, pág. 23.

47. Ibidem.

48. Richard Rice, op. cit., pág. 64.

49. Siegfried H. Horn, "Sentença: Morte de Cruz" — O Atalaia, abril de 1981, pág. 5.Ver também Martin Henger, Crucifixion (Filadélfia Fortress Press, 1977), págs. 22 ss.

50. Herbert Lockyer, op. cit., pág. 150.

51. Para um estudo mais detalhado sobre as profecias messiânicas a respeito da morte de Cristo, ver Herbert Lockyer, op. cit, cap. 8: "Prophecies of His Death."

52. Ellen G. White, Evangelismo, pág. 694.

53. Ellen G. White, SDA Bible Commentary, vol. 6, pág. 1.070.

54. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, págs. 17 e 18.

55. Richard Rice, op. cit, pág. 92.

56. Gerhard von Rad, op. cit, vol. 2, pág. 315.

57. Ellen G. White, Primeiros Escritos, pág. 16.

58. Idem, pág. 19.

59. Ellen G. White, História da Redenção, págs. 48-50.

60. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 396.

61. Ellen G. White, História da Redenção, pág. 87.

62. Denton E. Rebok, Crede em Seus Profetas (Santo André, Casa Publicadora Brasileira, 1967), págs. 97-106.

63. Idem, págs. 73-76.

64. Leon Morris, I Believe in Revelation (Londres, Hodder and Stoughton, 1976), pág. 11.

65. Richard Rice, op. cit., pág. 80.

66. The Pulpit Commentary (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publ. C, 1962), vol. 12 — Ezekiel II, pág. 77.

67. Idem, vol. 18 — Acts I. pág. 52.

68. Augustus H. Strong, op. cit., pág. 286.

69. Idem, pág. 284.

70. Idem, pág. 285.



Fonte: Revista O Ministério Nov-Dez/1984.