Dr.
Renato Emir Oberg*
Como responderia você
se alguém o desafiasse, afirmando que a lei terminou e que a Bíblia diz que ela
foi pregada na cruz do Calvário? É possível que já se tenha defrontado com esse
problema e, nesse caso, qual foi sua resposta? Será, mesmo, que a lei dos Dez
Mandamentos foi abolida na cruz de Cristo?
Em São Mateus 5:17-19,
Jesus diz claramente que não! Contudo, quem o desafia não cita Jesus, e sim o
que o apóstolo Paulo escreveu em Efésios 2:14-16: "Porque Ele é a nossa
paz, o qual de ambos (judeus e gentios) fez um; e, tendo derrubado a parede da
separação que estava no meio, a inimizade, aboliu na Sua carne a lei dos mandamentos
na forma de ordenanças, para que dos dois (judeus e gentios) criasse em Si
mesmo novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus,
por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade."
Muitos cristãos de hoje
usam este trecho de Paulo para afirmar que Jesus aboliu a lei dos Dez
Mandamentos enquanto estava na carne, isto é, enquanto esteve neste mundo, e
que, desta maneira, destruiu a inimizade, a barreira da separação que havia
entre os homens e Deus. Em outras palavras, segundo esta explicação, a lei dos
Dez Mandamentos era a própria inimizade, a barreira que havia entre Deus e os
homens, e por isto foi necessário que Cristo a destruísse. Seria, mesmo, isto o
que Paulo quis ensinar?
Existe um outro trecho
do mesmo apóstolo que é usado também com propósitos semelhantes: "E a vós
outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões, e pela incircuncisão da
vossa carne, vos deu vida juntamente com Ele, perdoando todos os nossos
delitos; tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava
de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o
na cruz." Col. 2:13 e 14.
Segundo estes
versículos de Paulo, dizem os mesmos cristãos que Jesus perdoou todos os
"nossos delitos", todos os nossos pecados, e cancelou, e acabou com a
lei dos Dez Mandamentos que era nosso "escrito de dívida" e que nos
era prejudicial, encravando-o na cruz. Com tal raciocínio, invalidam a Lei de
Deus e sentem-se livres para mudá-la de acordo com suas próprias conveniências.
Repetimos aqui a mesma pergunta que fizemos há pouco: Seria isto mesmo o que
Paulo quis ensinar? Estaria ele contradizendo a Jesus Cristo (S. Mat.
15:17-19)? Estaria desfazendo o que ele próprio afirmou quando perguntou e
respondeu o seguinte, na carta aos Romanos 3:31: "Anulamos, pois, a lei, pela
fé? Não, de maneira nenhuma, antes confirmamos a lei"?
As
Ordenanças
Antes de mais nada, é
preciso lembrar que Paulo, em seus escritos, faz constantes referências a dois tipos
de leis, a duas leis que tanto os judeus como os cristãos daqueles tempos
conheciam muito bem, sabendo perfeitamente qual era a diferença que havia entre
elas. Estas leis eram as dos Dez Mandamentos e a das ordenanças e sacrifícios.
Ambas tinham sido dadas no Sinai, quando Moisés subiu ao monte, sendo a
primeira escrita pelo próprio Deus em tábuas de pedra, e a segunda, por Moisés,
num livro. A primeira foi colocada dentro da arca (Deut. 10:1-5) e a segunda
31:24-26), ao lado da arca (Deut. 10:1-5) e a segunda, ao lado da arca (Deut.
31:24-26).
A primeira destas leis
era, como já dissemos, a dos Dez Mandamentos, e a segunda continha ritos e cerimônias
ordenados por Deus e que, no seu sentido religioso, eram símbolos do sacrifício
e da obra que Jesus faria para a redenção dos homens. Quando Jesus veio e morreu
sobre a cruz do Calvário, estes símbolos, os que eram de caráter religioso (não
os preceitos de saúde, higiene, etc), chegaram ao seu cumprimento e, por isto,
perderam o seu valor. Como exemplo destas cerimônias religiosas simbólicas,
podemos mencionar: 1) o sacrifício de cordeiros por ocasião das ofertas pelo
pecado, que simbolizava a morte propiciatória de Cristo, o Cordeiro que foi
sacrificado por nós, que foi levado ao matadouro por nós (Isa. 53:7), que foi "traspassado
pelas nossas transgressões" (v. 5); e 2) o sacrifício da Páscoa, que
perdeu sua validade quando "Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por
nós" (I Cor. 5:7, Almeida Antiga). No tempo de Cristo, estas leis eram
também chamadas de "lei das ordenanças", ou simplesmente,
"ordenanças" e, nos nossos tempos, os teólogos as chamam também de
"leis cerimoniais".
A
Circuncisão
Um rito muito enraizado
entre os judeus, símbolo da própria nacionalidade, era o da circuncisão, oriundo
de uma lei que Deus dera a Abraão, muito antes de aparecer a Moisés no Monte
Sinai. Abraão recebeu esta ordenança quando o Senhor mudou o seu nome e fez com
ele um concerto (Gên. 17:1-14), estabelecendo que a casa de Abraão seria o povo
de Deus e que, para pertencer a este povo era necessário que o homem tivesse o
sinal da circuncisão, fosse ele filho direto do patriarca (Gên. 17:27; Êxo.
12:43, 44, 45)
Com isto, a casa de
Abraão separou-se dos demais povos, vindo a formar, ela mesma, uma nação
conhecida primeiro pelo nome de casa de Abraão e, depois, pelos de casa de
Isaque, casa de Jacó, casa ou povo de Israel e, finalmente, pelo povo de Judá.
Os que iam deixando esta casa, este povo, iam deixando também de pôr em prática
a circuncisão, de usar este sinal do concerto. Isto aconteceu com Ismael, com
os outros filhos de Abrãao (os que teve de Quetura, Gên. 25:1-6), e com as dez
tribos de Israel quando foram levadas para o cativeiro. Só os judeus mantiveram
este sinal, que lhes era um símbolo de herança e de orgulho nacional. Por isto,
eram extremamente zelosos na prática da circuncisão. Era preciso que o homem levasse
este sinal em seu corpo para poder participar das cerimônias sagradas, dos
ritos e das ordenanças do povo de Israel. Só assim faria ele parte integrante
do povo de Deus. Ninguém, a não ser os circuncisos, podiam participar da vida
religiosa de Israel em sua plenitude, e isto era assunto muito sério para os
judeus no tempo dos apóstolos. O rito da circuncisão era uma barreira de
separação entre os judeus e gentios, entre circuncisos e incircuncisos. Era
motivo de real "inimizade" entre os dois grupos.
Ora, os primeiros
cristãos foram judeus conversos, todos eles circuncisos e, como tal, estavam
perfeitamente integrados na comunidade de Israel. Podiam, sem qualquer
restrição, frequentar o Templo e participar de todas as festas e cerimônias
judaicas. Tão imbuídos estavam eles da circuncisão que, quando os gentios
começaram a se converter para o cristianismo, não faltaram judeus cristãos
circuncisos que, não compreendendo que o povo de Deus, agora, não era mais a nação
judaica, mas sim todos os que aceitassem a Jesus Cristo como Salvador,
continuassem a pensar que só os circuncisos eram o povo de Deus, e ensinassem
que os gentios conversos, os estrangeiros que entravam para o cristianismo,
tinham também de se submeter ao rito da circuncisão, tal como faziam todos os
judeus tradicionais no seu proselitismo.
Como dissemos, o fato
de Jesus ter destruído esta barreira não era bem compreendido por muitos judeus
cristãos, e isto atribulava sobremaneira os cristãos gentios, chegando a ser
motivo de muita polêmica e de muita discussão no seio da igreja primitiva.
Paulo, como apóstolo dos gentios, lutou decididamente contra a necessidade religiosa
da circuncisão, e quando regressou da sua primeira viagem missionária,
encontrou a igreja de Antioquia às voltas com este doloroso problema. É que
alguns indivíduos que desceram da Judeia, ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes
segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos" (Atos 15:1). A
discussão foi tão intensa que, por fim, os cristãos dessa cidade resolveram
enviar Paulo, Barnabé e mais alguns outros dentre eles "aos apóstolos e
presbíteros" em Jerusalém, para os ouvirem "com respeito a esta
questão" (v. 2). Quando os enviados chegaram lá, houve "grande
debate" (v. 7). Por fim, "pareceu bem aos apóstolos e aos
presbíteros, com toda a igreja" enviar juntamente com Paulo e Barnabé, de
volta, homens como "Judas, chamado Barsabás, e Silas,... notáveis entre os
irmãos" (v. 22), "escrevendo por mão deles" (v. 23). A resolução
foi a seguinte: "Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior
encargo além destas coisas essenciais: Que vos abstenhais das coisas
sacrificadas aos ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e da
incontinência; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde" (w. 28 e
29). Quando os enviados de Jerusalém chegaram a Antioquia, os que leram esta
mensagem "sobremaneira se alegraram, pelo conforto recebido" (v. 31).
A grande solução tinha chegado: cristãos e judeus não mais estavam separados
por causa da circuncisão, mas eram um em Cristo Jesus, o Salvador de todos!
Infelizmente, porém, o
assunto não terminou em Antioquia, nem com o Concilio de Jerusalém, mas
continuou a ser trazido à tona constantemente por judaizantes que se
apresentavam como mestres entre os novos e sinceros cristãos que se convertiam
dentre os gentios. Paulo teve de lutar constantemente contra as leis e
ordenanças que os judeu procuravam introduzir no cristianismo, contra aquilo
que tinha terminado na cruz de Cristo e que o Concilio de Jerusalém concordara
em eliminar do ritual cristão. Os textos problemáticos de Paulo deixam de
existir quando são estudados à luz do que realmente aconteceu.
Compreendidos estes
fatos, é fácil analisar todo o trecho de Efésios 2.T1-22, e também o de
Colossenses 2:8-14. Quem estiver interessado em completar o assunto em mais
profundidade, tome, agora, sua Bíblia (de preferência a Almeida Revista), e
responda às seguintes perguntas:
1. De acordo com o
versículo 11 do capítulo 2 de Efésios, o que distinguia os judeus dos gentios?
2. Por causa do símbolo
da circuncisão que os separava da comunidade de Israel e de acordo com o que
pensavam os judeus, qual era a situação dos gentios antes de Cristo? (v. 12).
3. Por intermédio de
quem e como passaram os gentios a fazer parte do povo de Deus? (v. 13).
4. Qual era a
"parede de separação" que existia entre judeus e gentios, e que foi
derrubada por Cristo para eliminar a "inimizade" que havia entre
estes dois grupos? (compare Efésios 2:14 e 15 com Atos 15:1-20, e recapitule o
que foi explicado a respeito na introdução desta lição.)
5. Que
"forma" tinha a "lei dos mandamentos" à qual Paulo se estava
referindo no versículo 15? Era esta a lei dos Dez Mandamentos ou a lei das
ordenanças?
6. Com o sacrifício da
cruz que aboliu a lei das ordenanças, o que foi destruído e que existia entre
judeus e gentios? Efés. 2:16.
7. Para quem veio a paz
depois desta reconciliação? Quem eram os "outros que estáveis longe"?
Quem eram os "que estavam perto"? (v. 17).
8. A quem ambos estes
grupos tinham acesso agora, sem a barreira da circuncisão? (v. 18).
9. O que os gentios não
mais eram agora? O que eram? (w. 19-22).
10. Contra o que advertiu
Paulo os colossenses no versículo 8 do capítulo 2? Observe bem a expressão
"tradição de homens".
11. No tocante ao tema
polêmico da circuncisão o que explicou Paulo em Colossense 2:11?
12. Ao invés de se
deixarem circuncidar, o que tinham feito os cristãos gentios de Colossos? Que
simbolizava este novo rito? (v. 12).
13. De que constava
"o escrito de dívida que era contra nós" que "nos era
prejudicial" e que foi encravado na cruz? (v. 14).
14. Nas duas cartas das
quais fazem parte estes chamados textos polêmicos, Paulo deu conselhos cristãos
aos novos crentes, e é muito importante notar que o apóstolo os entremeou com
preceitos da lei dos Dez Mandamentos, lei que tanto ele como Cristo sempre
afirmaram ser perene. Que mandamento da lei gravada por Deus em tábuas de pedra
encontra você nos ensinamentos do apóstolo em Efésios 6:1-3? A que mandamentos
se referiu ele em Colossenses 3:5-10?
*Renato
Emir Oberg - Doutor em História; tradutor e adaptador
dos livros de Educação Religiosa.
FONTE: Revista
Adventista, Março 1985, p. 11-13.
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