Foto: acervo Andrews
University – James White Library
Eduardo
Rueda e Renato Stencel*
Entenda
o que uma série de reuniões realizadas há cem anos tem que ver conosco hoje
Quando o assunto é
Igreja Adventista do Sétimo Dia, o “cardápio” favorito dos dissidentes, e dos
críticos em geral, é basicamente sempre o mesmo: Trindade, ênfase pós-lapsariana
na natureza de Cristo, ataques ao sistema administrativo da Igreja e ao papel
de Ellen White e seus escritos. Entre estes, o último talvez seja o mais
controverso.
E não são poucos os
que, com a mente oprimida por dúvidas, acabam abandonando a denominação por não
saber dar uma resposta consistente aos que questionam o dom profético.
Afinal, qual é o papel
que os escritos de Ellen White realmente desempenham? Qual o nível de
autoridade que eles possuem? Qual o tipo e o grau de inspiração dos Testemunhos?
O objetivo deste artigo
é analizar brevemente como essas questões foram abordadas na conferência
bíblica de 1919 (que completa cem anos em 2019 e é tema da matéria de capa da
Revista Adventista deste mês), realizada em Takoma Park, Maryland (EUA), e as
dificuldades decorrentes de se aceitar o modelo de inspiração verbal para os
escritos de Ellen G. White.
Contexto
histórico
Inspirada nas grandes
conferências proféticas realizadas pelos fundamentalistas protestantes no
começo do século passado – cujo tema predominante era o iminente retorno de
Cristo –, em um mundo ainda abalado pela primeira Guerra Mundial, a conferência
de 1919 tinha o intuito de fortalecer a unidade entre os principais pensadores
da igreja em certos temas de caráter teológico e pedagógico (Michael. W.
Campbell, The 1919 Bible Conference and its Significance for Seventh-day
Adventist History and Theology, Andrews University, 2008, p. 81).
O encontro reuniu
editores, professores de Bíblia e História dos colégios e seminários
adventistas, bem como membros da Comissão da Associação Geral. Ao todo, o
concílio teve a participação de 65 pessoas.
A reuniões aconteceram
entre os meses de julho e agosto, e contaram com a presença do então presidente
da Associação Geral, pastor Arthur G. Daniells. Durante a assembleia, foi dada
ênfase à necessidade de um estudo mais profundo da Bíblia, e dedicada atenção
especial aos temas que eram considerados fundamentais no adventismo (para ver
os relatórios originais das conferências, clique aqui: http://documents.adventistarchives.org/Resources/Forms/AllItems.aspx?RootFolder=%2fResources%2f1919BC&FolderCTID=0x01200095DE8DF0FA49904B9D652113284DE0C8000B5857BEC3C5DB4F96C32A1C24765988).
Entre os tópicos em
pauta, constavam: a pessoa e obra mediadora de Cristo; a natureza e obra do
Espírito Santo; as duas alianças; os princípios de interpretação profética; a
chamada “questão oriental” (que dizia respeito à interpretação do “rei do
Norte”, em Daniel 11); o poder bestial de Apocalipse; os 1.260 dias; os EUA na
profecia; as sete trombetas; Mateus 24; a identificação dos 10 reinos de Daniel
7, entre outros temas de natureza pedagógica (Report of the 1919 Bible Conference,
1º ago.; Campbell, The 1919 Bible Conference and its Significance for
Seventh-day Adventist History and Theology, p. 84).
Todos esses assuntos
foram tratados como estando relacionados à hermenêutica. A preocupação era
estabelecer princípios seguros de interpretação.
Ellen
G. White em pauta
Inicialmente, a
intenção do concílio não era discutir a inspiração profética de Ellen White. O
assunto não estava na pauta. O tema surgiu “por acaso” quando, no décimo dia da
reunião, o debate tratava de interpretação profética. Os participantes encontraram
algumas dificuldades de caráter histórico nos escritos de Ellen White. A partir
daí, Arthur Daniells percebeu a necessidade de abordar o assunto de maneira
mais abrangente. W.E. Howell, que presidia a assembleia, convidou Daniells para
explanar esse tema no dia 30 de julho. Sua fala tinha como título “O uso do
Espírito de Profecia em nosso ensino de Bíblia e História” (Report of the 1919
Bible Conference, 30 jul., p. 1.187).
A temática desse
discurso foi basicamente a autoridade dos escritos de Ellen White. Durante o
debate, algumas questões importantes surgiram.
Intérprete
infalível?
A primeira, levantada
por Clifton L. Taylor, líder do Departamento Bíblico do Canadian Junior
College, tinha que ver com o uso exegético dos escritos de Ellen White (p. 1.194).
Devemos recorrer a ela como intérprete do texto bíblico? Seus comentários sobre
determinado texto das Sagradas Escrituras devem ser considerados autoritativos,
infalíveis e a única explicação correta para eles ou não?
Com o endosso de J.N.
Anderson, professor de Bíblia no Washington Foreign Mission Seminary, Christian
M. Sorenson, professor de História no Emmanuel Missionary College, e W.W.
Prescott, ex-editor da Review and Herald e então secretário de campo da
Associação Geral, Daniells respondeu que assumir uma posição de inerrância em
relação a Ellen White pode ser perigoso. Ele deixou claro que “não é a nossa
posição, nem é correto [afirmar] que o Espírito de Profecia seja o único
intérprete seguro da Bíblia” (p. 1.195). Afinal, como salientou W.E. Howell, a
própria irmã White declarou que “a Bíblia interpreta a si mesma” (Conselhos aos
Pais, Professores e Estudantes, p. 462).
Daniells foi taxativo
também ao lembrar que as doutrinas adventistas não foram formadas com base em
Ellen G. White. De acordo com ele,
nossas crenças vieram por meio de intenso estudo das Escrituras, sendo
posteriormente confirmadas pelo Espírito de Profecia. Assim, o estudante deve
recorrer primeiramente à Bíblia e então, somente então, o Espírito de Profecia
deve ser utilizado para “ampliar a visão”, bem como qualquer outro material que
o ajude na compreensão do texto.
Autoridade
histórica
Outra questão
importante foi levantada por Prescott, nas seguintes palavras: “Como devemos
utilizar os escritos do Espírito de Profecia como uma autoridade para resolver
questões históricas?” (p. 1.202). A resposta inicial de Daniells foi que Ellen
White “nunca reivindicou ser uma autoridade em História” e jamais declarou ser
“mestra absoluta de Teologia. Ela apenas fez declarações fragmentárias,
deixando aos pastores, evangelistas e pregadores o encargo de resolverem todos
esses problemas bíblicos, teológicos e históricos” (Herbert E. Douglass, A
Mensageira do Senhor, Casa Publicadora Brasileira, 2000, p. 435).
Qual deve ser, então, a
atitude do leitor ao encontrar dados imprecisos ou mesmo erros históricos nos
escritos de Ellen White? Isso deve enfraquecer sua fé nos Testemunhos?
Daniells reiterou que
Ellen White nunca “se propôs a definir questões históricas”, uma vez que os
próprios historiadores não concordam plenamente entre si. “Nunca entendi que
ela atribuísse infalibilidade às citações históricas”, ele enfatizou (Report of
the 1919 Bible Conference, 30 jul., p. 1.212).
Discutidas essas
questões, o ponto mais conflitante da assembleia ainda estava por vir.
Inspiração
verbal
Ellen G. White foi
verbalmente inspirada ou não? Seus escritos foram inspirados palavra por
palavra? Cada palavra foi inspirada por Deus?
Este artigo não tem
como objetivo tratar da inspiração da Bíblia, se esta foi verbal ou não, e sim
da inspiração dos Testemunhos. No entanto, saber como os componentes da
conferência encaravam a inspiração da Bíblia pode ser útil para entender também
como eles consideravam os escritos de Ellen White.
Houve duas linhas de
interpretação representadas em 1919. Essas duas escolas de hermenêutica
concordavam nos pontos essenciais, principalmente no que se refere à autoridade
da Bíblia e à necessidade de um estudo profundo da Palavra de Deus. Apesar
disso, as divergências entre “progressistas” e “tradicionalistas” ficaram
claras à medida que o debate se aqueceu (Michael. W. Campbell, The 1919 Bible
Conference and its Significance for Seventh-day Adventist History and Theology,
Andrews University, 2008, p. 81).
Tanto progressistas
como tradicionalistas afirmavam que a Escritura é “verbalmente inspirada”. Os
progressistas, no entanto, embora cressem na infalibilidade do texto bíblico,
não o consideravam inerrante em cada detalhe cronológico, numérico, histórico
ou linguístico. Enquanto isso, os tradicionalistas, mais dogmáticos, diziam que
essa flexibilidade, assumida pelos progressistas, poderia gerar problemas.
Dessa forma, adotaram um pressuposto mais rígido: a Escritura é inerrante em
cada detalhe.
Em relação a Ellen
White, também havia duas abordagens. O grupo dos chamados progressistas era
composto por homens que haviam conhecido pessoalmente Ellen White e
testemunhado o processo de composição de seus escritos, chegando a participar
dele muitas vezes. É possível que Daniells e Prescott fizessem parte dessa ala.
Os progressistas aceitavam que os escritos de Ellen White, embora inspirados,
não são infalíveis. Mesmo alguns dentre eles que criam na inspiração verbal
entendiam que essa inspiração não implicava, necessariamente, inerrância
(Campbell, “The 1919 Bible Conference and its Significance for Seventh-day
Adventist History and Theology”, p. 168). Parece também que os progressistas
faziam distinção entre a Bíblia e o Espírito de Profecia, no que se refere à
natureza da inspiração.
Os tradicionalistas,
por sua vez, eram um grupo mais jovem, que não havia trabalhado pessoalmente
com Ellen White. Em linhas gerais, consideravam seus escritos verbalmente
inspirados e estando no mesmo nível das Escrituras.
Arthur Daniells vinha
sofrendo nos últimos anos acusações de ser “cético nos Testemunhos”, pelo fato
de não crer que eram verbalmente inspirados. Segundo W. E. Howell, o ponto de
vista da inspiração verbal parecia ser o que mais predominava entre os membros
da Igreja e muitos pastores na época (Douglass, A Mensageira do Senhor, p.
436).
Dificuldades
decorrentes do modelo de inspiração verbal
Daniells argumentava
que algumas das dificuldades que a igreja enfrentava por parte dos críticos e
dissidentes eram geradas pela crença na inspiração verbal e na infalibilidade
de Ellen White. Segundo ele, a profetisa nunca reclamou inspiração verbal.
Acusações de plágio, por exemplo, poderiam ter sido evitadas se, desde o princípio,
“tivéssemos compreendido isso da maneira como deveria ter sido” (Campbell, “The
1919 Bible Conference and its Significance for Seventh-day Adventist History
and Theology”, p. 164).
Muitos dos que criam na
inspiração verbal haviam ficado perplexos e desnorteados após a revisão do
livro The Great Controversy, em 1911, supervisionada pela própria Ellen, na
qual várias alterações de caráter técnico foram realizadas. Se O Grande
Conflito havia sido inspirado palavra por palavra, e a inspiração é infalível,
porque necessitaria de ajustes?
Arthur Daniells
defendia a ideia de que o profeta é um instrumento divino, mas sua parte humana
não deve ser ignorada. Ele lembrou que Ellen White repetia com frequência:
“Temos este tesouro em vasos de barro” (veja mais em Atos dos Apóstolos, p.
330), reconhecendo que era uma frágil mulher, limitada, tentando fazer da
melhor maneira possível a obra que lhe havia sido confiada. Daniells afirmou
que, a partir do momento em que reconhecemos que Ellen White não era infalível
e que seus escritos não eram verbalmente inspirados, damos uma oportunidade
para a manifestação do humano. Segundo ele, não deveríamos nos surpreender ao
encontrar erros (que não afetam a essência da mensagem) nos escritos
inspirados, uma vez que a inspiração divina não inibe o elemento humano (Report
of the 1919 Bible Conference, 1o ago., p. 1.243).
De acordo com G.B.
Thompson, secretário de campo da Associação Geral, as controvérsias geradas na
igreja podiam ser atribuídas a “uma educação errada que nosso povo recebeu. Se
sempre tivéssemos ensinado a verdade sobre esta questão, não teríamos nenhum
problema ou choque na denominação agora. Mas o choque ocorre por que não
ensinamos a verdade, e colocamos os Testemunhos num plano em que ela [Ellen
White] declara que eles não estão. Reclamamos mais para eles do que ela o fez”
(p. 1.238, ênfase acrescentada). Para Thompson, “a evidência e a inspiração dos
Testemunhos não estão em sua inspiração verbal, senão em sua influência e seu
poder na denominação”.
Os debates sobre a
autoridade e o uso dos escritos de Ellen White, bem como sua relação com a
Bíblia ocuparam dois dias da conferência. Embora não tenha estado na pauta a
princípio, este tornou-se, no fim das contas, o tema principal da reunião.
O que uma série de
reuniões realizada há cem anos tem que ver conosco hoje? Que relevância têm
para nós os assuntos abordados naquela assembleia?
Por não terem uma visão
clara quanto à natureza da inspiração de Ellen White, os adventistas de modo
geral têm enfrentado preconceito e críticas. Somos vistos como tendo uma
segunda Bíblia nos escritos da pioneira, o que, sabemos, não corresponde à
verdade. Ao longo da história da denominação, foi atribuída a Ellen G. White
uma autoridade exagerada que ela mesma nunca reivindicou, ao ponto de igualar
seu nível ao da Bíblia e considerá-la, como Roderick Owen, a intérprete
“infalível das Escrituras” – uma posição que ela jamais reivindicou. Em
Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 37, Ellen White afirmou: “Com relação à
infalibilidade, nunca a pretendi; unicamente Deus é infalível”. W. C. White,
que trabalhou intimamente com sua mãe por muitos anos, declarou: “Minha mãe
nunca reivindicou ser uma autoridade em História”.
Usando de maneira
errada os Testemunhos, muitos acabaram por ofuscar o brilho da “luz maior”, a
Bíblia, citando frequentemente Ellen G. White como palavra final em vez de
recorrer às Escrituras com essa finalidade. Sem falar da perda de credibilidade
diante dos críticos e do uso “bélico” que muitos fazem dos Testemunhos, utilizados
tantas vezes como espada ou escudo em brigas dogmáticas que giram, em sua
maioria, ao redor de assuntos periféricos.
Não queremos aqui, de
maneira alguma, diminuir a importância de Ellen White como profetisa. Pelo
contrário, colocar o Espírito de Profecia dentro da moldura adequada e
atribuir-lhe a função que ele realmente possui enaltece, em vez de diminuir seu
valor.
Finalmente, a principal
contribuição da conferência bíblica de 1919 foi evidenciar a coerência do
modelo de inspiração do pensamento, em vez da inspiração verbal, como o que
melhor explica o processo de inspiração da Bíblia e dos escritos de Ellen
White, assim como confirmar seu papel como “Mensageira do Senhor”.
*EDUARDO
RUEDA, mestre em Teologia, é responsável pelos livros de
Ellen G. White na CPB;
RENATO STENCEL,
doutor em Educação, é diretor do Centro de Pesquisas Ellen G. White no Unasp,
campus Engenheiro Coelho (SP)
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