ANTES E DEPOIS DA FÉ
Ruben
Aguilar*
Entenda o princípio, o
fundamento e a permanência da lei na dinâmica da salvação
Nos textos do Antigo
Testamento, a justificação é apresentada por meio de um processo que demandava
a realização de ritos e cerimônias ilustrativas (Lv 1–7; 16) que apontavam para
o ministério e sacrifício de Jesus. A ênfase desse processo estava no
cumprimento da lei, ou da Aliança (Êx 24:8), que tinha como elemento essencial
o sacrifício do cordeiro (Êx 12:5; Is 53:7). Isso, porém, não anulava o papel
da fé na dinâmica da salvação. Após a morte, ressurreição e ascensão de Cristo,
as leis cerimoniais alusivas a Seu ministério deixaram de vigorar, uma vez que
a sombra se encontrou com a realidade. Assim, o ensino do Novo Testamento
passou a destacar o papel da fé necessária para uma pessoa ser justificada.
Entretanto, ao longo
dos séculos, o cristianismo, ou melhor, o catolicismo, criou práticas
religiosas com as quais originou o dogma da salvação pelas obras. No século 16,
após o surgimento da Reforma, a fé se tornou a virtude exaltada para obter a
justificação (sola fide): “o homem é justificado pela fé” (Rm 3:28), anulando a
vigência da lei: “ninguém será justificado por obras da lei” (Rm 3:20).
A rigor, porém, o
conceito sola fide padece de uma anomalia doutrinária, por eliminar a vigência
da lei. Em sua definição, a lei não exerce função eficiente na justificação,
mas mantém seu fundamento ou origem, e seu papel como princípio de toda
existência. Este artigo, portanto, confirma a manifestação da fé como
fundamento da justificação: “justificados, pois, mediante a fé” (Rm 5:1). Além
disso, reflete a afirmação apostólica de que “sem lei não há pecado” (Rm 7:8),
e pretende situar a lei em sua condição como princípio de toda existência, e
seu fundamento como dom de Deus, vigente antes da fé e depois dela. A
justificação não depende da lei, mas é inerente a ela. Sem lei não há vida, e
vida eterna.
O
FUNDAMENTO DA LEI
Emitir um conceito
sobre algo abstrato como a lei é uma tarefa limitada, em virtude da dificuldade
de se exprimir com precisão o significado do termo. Daí a razão pela qual há
dezenas de conceitos sobre ela, alguns mais identificados com suas finalidades.
Em síntese, podemos conceituar a lei como norma ou conjunto de normas que
orientam o comportamento das pessoas.
Como norma, a lei pode
ser elaborada sobre o fundamento da razão individual, do consenso de uma
sociedade organizada ou, no caso das nações constituídas, da vontade do poder
legislativo. Quando a lei visa ao bem-estar integral das pessoas, seu
fundamento reside na vontade de Deus, independentemente de se originar como
fruto da razão individual ou do consenso social. Em essência, eles refletem a
lei divina, de onde também procede sua autoridade, quer os envolvidos em sua
formulação reconheçam ou não a existência de Deus (Rm 13:1, 2). Assim, podemos
afirmar que o fundamento da lei está na vontade divina.
Estudos científicos
afirmam que tudo na natureza está sob a regência de leis. Os elementos
minerais, incluindo os corpos estelares, estão sujeitos aos princípios das leis
físicas e químicas. Os seres dos reinos vegetal e animal, além de serem regidos
pelas leis mencionadas, seguem as leis biológicas. Considerando o comportamento
de todos os seres do Universo, pode-se concluir que há dois tipos de leis: as
leis naturais, aplicadas aos minerais, vegetais e animais, e as leis morais,
aplicadas de forma singular e exclusiva ao ser humano, escritas na mente e no
coração (Jr 31:33).
Cabe aqui um
esclarecimento quanto à posição da raça humana na classificação dos reinos. De
acordo com suas características físicas, ela é classificada como pertencente ao
reino animal. Contudo, o ser humano tem outros atributos que nenhum outro ser
da natureza possui, os atributos mentais e espirituais, que determinam a
manifestação de qualidades morais. Por isso, a raça humana deve ser
classificada como uma espécie distinta do reino animal.
Em síntese, ao
tratarmos do fundamento, tanto da lei natural quanto da moral, deve-se afirmar
que o fundamento de ambas é a vontade de Deus. Ellen White corrobora essa
afirmação ao dizer que “a lei de Deus é uma expressão da natureza divina […] o
fundamento do Seu governo no Céu e na Terra” (Caminho a Cristo, 2017, p. 59).
Do Senhor irradiam as leis que regem os atributos, os princípios e as
propriedades que todos os seres do Universo manifestam.
A
LEI E A EXISTÊNCIA
A criação foi o sublime
ato divino, incompreensível à mente humana, pelo qual todo Universo veio a
existir. A Bíblia revela esse fato sem acrescentar detalhes, afirmando que Deus
falou e todas as coisas foram criadas (Sl 33:6; 148:5). Conforme foi
apresentado na seção anterior, há leis que regem o comportamento ou a
manifestação de princípios, propriedades e atributos dos seres do Universo.
Assim, é possível afirmar que existe uma relação íntima entre a “observância da
lei” e a existência de todos os seres encontrados na natureza.
Ao longo do tempo, o
estudo das características dos seres da natureza fundamentou a edificação das
ciências. Parte desse estudo se propõe a identificar as leis que regem o
Universo conhecido. Portanto, “fazer ciência” é descobrir ou enunciar leis e
aplicá-las. Pela ciência, sabemos que a luz deve sua existência à observância
de muitas leis. Por exemplo, ela depende das leis como a da irradiação
eletromagnética, da natureza ondulatória, da velocidade, da frequência das
ondas, da radiação espectral e do comprimento da onda. A constância dessas leis
na produção da luz possibilita o estudo dos fenômenos luminosos. A omissão ou
não cumprimento de qualquer uma dessas leis determinará a extinção da luz.
Aceitando a relação
entre lei e existência, podemos presumir que, na criação, Deus elaborou essas
leis antes de ordenar: “haja luz” (Gn 1:3). Semelhantemente, procedeu assim ao
criar tudo o mais no Universo. Primeiro, elaborou as leis; depois, ordenou a
existência de todas as coisas. Sobre a soberania divina na natureza, Ellen
White afirma: “Desde as estrelas, que em seus inexplicáveis trajetos através do
espaço percorrem, século após século, os caminhos a elas designados, até o
minúsculo átomo, as coisas da natureza obedecem à vontade do Criador” (Caminho
a Cristo, P. 86).
No caso da humanidade,
além de estar sujeita às leis naturais, ela também é regida por valores morais
e espirituais, baseados na lei de Deus. Sem as leis morais, o ser humano não
poderia existir como pessoa; seria só mais uma espécie do reino animal. Assim,
é possível afirmar que a existência da pessoa humana, à imagem do Criador,
depende da vigência da lei moral.
A PERMANÊNCIA DA LEI
A relação entre lei e
existência é vital para qualquer ser do Universo. Isso também se aplica à
relação da pessoa humana com a lei moral. Enquanto o ser humano existe, a lei
moral está vigente, gravada no coração, mesmo para gentios ou descrentes (Rm
2:14, 15).
Em sua essência, a lei
natural possui os seguintes atributos: universalidade, obrigatoriedade,
validade absoluta e causalidade. Isso quer dizer que ela está imposta a todos
os seres criados (universalidade), deve ser cumprida (obrigatoriedade), não
pode ser afetada (validade absoluta) e, caso seja anulada, causa a extinção do
ser (causalidade).
A lei moral também tem
esses atributos, e eles se aplicam à relação entre ela e o ser humano. Contudo,
na lei moral, o atributo da obrigatoriedade possui um elemento diferenciado, o
livre-arbítrio (Gn 2:16, 17). O Criador estabeleceu que a observância da lei
moral fosse um ato de livre escolha humana. A frase usada por Deus “da árvore
do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2:17) refere-se metaforicamente à lei
moral. Ellen White favorece essa interpretação ao dizer que a “desobediência
desconsiderada [de Adão e Eva] era a transgressão da imutável e santa lei de
Deus” (Caminho a Cristo, p. 32). Paulo também ecoa esse conceito ao apresentar,
em paralelo, os resultados da desobediência de Adão e da obediência de Cristo
(Rm 5:19).
A queda da humanidade
no Éden levou à efetivação do plano da salvação, cuja essência reside na morte
substitutiva de Cristo, no lugar do transgressor da lei (Gn 3:15; Rm 3:24). A
aceitação do sacrifício mediante a fé determina a revogação da pena,
justificando, assim, o pecador (Gl 2:16; 3:11). Desse modo, a vigência da lei é
anterior à manifestação da fé. Dito de outra maneira, no processo da
justificação, a lei precede à fé.
Por sua vez, Paulo declara
enfaticamente que ninguém é justificado pelo cumprimento da lei (Rm 3:20),
embora ela tenha seu papel no processo da redenção, conforme reflete a
orientação de Cristo ao jovem rico: “Se queres, porém, entrar na vida [eterna],
guarda os mandamentos” (Mt 19:17). A lei moral é expressão do caráter de Deus e
de Sua vontade para o homem (Êx 20:1-17), “por conseguinte, a lei é santa e o
mandamento, santo, justo e bom” (Rm 7:12). Considerando sua origem divina, a
lei é perfeita, e quem a praticar “esse será bem-aventurado no que realizar”
(Tg 1:25). Sem lei, o homem ficaria privado da noção do bem, pois é pela lei
que vem o conhecimento do mal (Rm 3:20). O propósito ou finalidade da lei é
conduzir o homem a Cristo (Rm 10:4). A lei, sendo espiritual, ajuda o homem
carnal a praticar o bem (Rm 7:14-22). A ética cristã, alicerçada na prática de
“levar as cargas uns dos outros”, é o cumprimento da lei (Gl 6:2).
Por fim, é importante
lembrar o que Jesus afirmou em relação à lei: “Não penseis que vim revogar a
Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade
vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da
Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5:17, 18). Portanto, a lei permanece após a
fé.
Para alcançar a vida eterna,
o homem pecador precisa de uma declaração de justiça, obtida gratuitamente pela
graça divina (Rm 3:24), uma vez que ninguém é justificado por obras ou méritos
próprios (Rm 3:20). Os méritos da justificação são atribuídos ao ministério de
Cristo e à Sua morte vicária (Rm 5:6, 9). Portanto, a salvação é mediante a fé
em Jesus Cristo (Rm 3:22). Essa verdade já se encontrava no Antigo Testamento
(Hc 2:4); porém, foi realçada no Novo Testamento (Rm 1:17). Contudo, as
Escrituras indicam que a justificação pela graça mediante a fé não afeta a
validade da lei.
Em suas duas formas de
expressão, natural e moral, a lei encontra seu fundamento na vontade de Deus.
Ela tem origem Nele, reflete Seu caráter e, como tal, manifesta Sua perfeição e
eternidade (Mt 5:18). Além disso, foi elaborada e definida antes mesmo da
existência de qualquer coisa no Universo. A lei natural estabelece os
princípios, atributos e propriedades que todo ser criado por Deus manifesta.
Assim, ela determina a existência de todo ser. A lei moral, à semelhança da lei
natural, também foi elaborada por Deus, antes de o ser humano ser criado à Sua
imagem. O conteúdo da lei moral orienta como as pessoas podem se relacionar com
Deus e com seus semelhantes, podem amar a Deus e ao próximo, pois, “destes dois
mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22:40). Além disso, as
Escrituras apresentam uma relação de leis alimentares, higiênicas, pedagógicas,
sociais, entre outras, que, pelo seu propósito, devem ser consideradas como
extensões da lei moral. Finalmente, o apóstolo Paulo, visualizando essa
relação, recomenda glorificar “a Deus no vosso corpo” (1Co 6:20); ou seja,
observar a lei moral e sua extensão para o bem-estar da própria pessoa.
*RUBEN
AGUILAR, doutor em Arqueologia, é professor emérito de
Teologia do Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)
(Este artigo foi
publicado originalmente na edição de maio-junho da revista Ministério)
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