por Augustus Nicodemus Lopes
Um dos textos do Antigo
Testamento mais usados para defender as danças litúrgicas é o Salmo 150. Ele é
lido como prova incontestável que havia danças como parte da liturgia dos
cultos no Antigo Testamento realizados no templo de Deus em Jerusalém. Como consequência,
dançar, ter grupos de coreografia e ministério de dança profética durante os
cultos das igrejas evangélicas de hoje não somente é permitido, como também
ordenado por Deus.
Eis o Salmo 150 de
acordo com a versão Almeida Atualizada, provavelmente a mais popular no Brasil:
1
Aleluia! Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no firmamento, obra do seu
poder.
2
Louvai-o pelos seus poderosos feitos; louvai-o consoante a sua muita grandeza.
3
Louvai-o ao som da trombeta; louvai-o com saltério e com harpa.
4
Louvai-o com adufes e danças; louvai-o com instrumentos de cordas e com
flautas.
5
Louvai-o com címbalos sonoros; louvai-o com címbalos retumbantes.
6
Todo ser que respira louve ao SENHOR. Aleluia!
A argumentação é a
seguinte. O verso 1 manda que louvemos a Deus no seu “santuário”, isto é, no
templo terreno, o local oficial da adoração a Deus, onde se realizava o culto
por Ele determinado. Em seguida, vem uma descrição deste culto, e em meio à
relação dos instrumentos utilizados, se menciona no verso 4 as “danças”. A
conclusão aparente é que as danças faziam parte do culto oferecido a Deus no
seu templo em Jerusalém. Pronto, temos aqui a base para as danças litúrgicas no
culto hoje.
Mas, será que é isto
mesmo que o Salmo está dizendo? Ou ainda, será que podemos inferir do Salmo que
as danças faziam parte da liturgia do templo? E mais ainda, se de fato é isto
mesmo que o Salmo está mostrando, temos aqui uma base para as danças litúrgicas
e grupos de coreografia em nossos cultos?
Já disse no post
anterior “Davi dançou, eu também quero dançar” que não considero o dançar em si
como algo pecaminoso, e que não tenho problemas com danças nas comunidades
cristãs como expressão cultural e social em ambientes outros que não o culto a
Deus. O que pretendo aqui neste post é mostrar que o Salmo 150 não pode ser
tomado como base incontestável para a prática das danças litúrgicas e
coreográficas nos cultos cristãos.
Vou começar admitindo,
por um momento, que o Salmo 150 está falando do templo em Jerusalém e de danças
durante o culto. A pergunta, que deveria ter sido feita desde o início, é se o
culto cristão toma sua inspiração, gênese e formato do culto do Antigo
Testamento. Para mim, a resposta é negativa, embora com qualificações.
O culto do templo é
geralmente visto no Novo Testamento como parte da lei cerimonial, cumprida em
Cristo e portanto abolida. A carta aos Hebreus trata deste assunto. Um dos
melhores professores de Antigo Testamento que conheço me escreveu recentemente,
falando deste assunto, "O que acontecia no Templo não passa nem perto do
que acontece nos melhores dos nossos cultos hoje, pois o serviço no Templo
encenava a expiação". Os sacrifícios de animais, as cerimônias de
purificação, a ordem dos levitas e dos sacerdotes, os rituais de oferecimentos
das ofertas, a queima de incenso, a oferta diária dos pães, tudo isto é
considerado como parte da antiga dispensação, que era simbólica, típica, e que
foi plenamente cumprida em Cristo: não temos mais sacrifícios – o Senhor Jesus
ofereceu de uma vez um sacrifício completo, que não precisa ser renovado e
repetido; não temos mais sacerdotes e levitas – os cristãos, todos eles, são
sacerdotes e levitas. A queima de incenso é substituída pelo louvor que procede
nossos lábios. O templo, que era santo e sagrado, agora é a Igreja de Cristo, a
comunidade dos eleitos de Deus, e não os templos de nossas igrejas locais.
Ao que tudo indica, os
cristãos deram continuidade ao culto no Antigo Testamento apenas no que se
refere aos princípios espirituais: a ideia de encontro com Deus, de adoração,
de louvor, de solenidade, de alegria, de serviço espiritual como povo do
Senhor... mas foram buscar nas sinagogas o formato para este culto mais simples
e despojado. Nas sinagogas, instituição onde cresceram o Senhor Jesus e todos
os apóstolos, havia leitura e pregação da Palavra, orações, cânticos e bênção.
Portanto, devemos ter
cautela em transferir para o culto cristão aquilo que era feito no templo de
Jerusalém – admitindo por um instante que havia danças no culto ali. Por falta
deste cuidado, a Igreja Católica tem um culto em muito similar ao do Antigo
Testamento: eles têm o sacrifício da missa, sacerdotes que são mediadores entre
Deus e homens e que perfazem este sacrifício, estolas sacerdotais e mitra,
queima de incenso, etc.
Mas, na verdade, não é
certo que o Salmo 150 esteja falando de danças no templo. Em primeiro lugar, a
palavra “santuário” mencionada no verso 1 nem sempre significa o local da
adoração em Jerusalém, onde o culto determinado por Deus era realizado de acordo
com todos os seus preceitos. A palavra b’kadoshu, significa literalmente “em
seu santo”. Logo, sua tradução primeira seria “em seu santuário” e não “em seu
Templo”. Precisamos, portanto, considerar a possibilidade de que o santuário de
Deus aqui referido não é o local físico do templo, mas o local da sua santa
habitação, ou seja, os céus.
Uma evidência a favor
desta tradução e interpretação é que no mesmo verso somos chamados a adorar a
Deus no “firmamento”, que declara o seu poder. Se considerarmos que aqui no
verso 1 temos um caso de paralelismo, tão comum na poesia hebraica, conclui-se
que aqui santuário e firmamento são a mesma coisa:
Louvai a Deus no seu
santuário;
Louvai-o no firmamento,
obra de seu poder.
Encontramos o mesmo
paralelismo no Salmo 11.4:
O Senhor está no seu
santo templo;
Nos céus tem o Senhor
seu trono;
Fica evidente que o
santo templo de que fala o salmista são os céus, onde Deus tem o seu trono.
Outra passagem é o Salmo 102.20:
O Senhor observa do
alto do seu santuário;
Lá do céu ele olha para
a terra.
Mais uma vez, é
evidente que o santuário referido é o céu, de onde Deus observa os homens.
Levando em consideração o escopo do Salmo 150, o paralelismo hebraico e estes
outros salmos que identificam o santuário de Deus com os céus, é perfeitamente
possível concluir que aqui no Salmo 150 “santuário” se refere à morada
celestial de Deus e não ao templo físico de Jerusalém. E logo, o apelo do verso
1 pode ser entendido como dirigido aos homens e anjos para que louvem a Deus,
que habita em sua morada celestial.
Em segundo lugar, a
palavra que a Almeida Atualizada traduziu como "danças" tem outros
significados, alguns dos quais se encaixam muito melhor no contexto. A palavra
mahol que aparece no verso 4 e é traduzida como “danças” pela Almeida
Atualizada pode significar “flauta”. A própria Almeida Atualizada traduziu
mahol como “flauta” no Salmo 149, “louvem-lhe o nome com flauta; cantem-lhe
salmos com adufe e harpa”. Admito que os contextos são diferentes, pois no
Salmo 150 mahol vem precedido dos adufes, tamborins, que marcam o ritmo. De
qualquer forma, se vê que a palavra pode ter outro sentido que não dançar.
Várias traduções do
Salmo 150:4 traduziram mahol como “flauta”, como a Almeida Corrigida, a Bíblia
de Genebra 1599, a Reina Valera 1909, entre outras (“coral”, Douay-Rheims).
Calvino, em seu
comentário dos Salmos, preferiu traduzir como “flauta”.
Temos que admitir que a
maioria das traduções preferiu “danças”. Em minha opinião, é perfeitamente
possível. Todavia, se o salmista estiver se referindo a um instrumento musical,
como “flauta”, se encaixa perfeitamente no contexto, pois os versos 3-5 estão
mencionando instrumentos musicais usados em Israel, como trombeta, saltério,
harpa, adufes, instrumentos de cordas, flautas, címbalos sonoros e címbalos
retumbantes. Estes versos não estão dando uma descrição do que se fazia no
culto a Deus executado no templo ou no templo, mas apenas enumerando os
instrumentos musicais de toda espécie, todos eles convocados para o louvor de
Deus.
Se levarmos em
consideração as variáveis acima, o Salmo 150 pode ser simplesmente um chamado
universal a anjos, homens e animais, para que louvem a Deus. E que os homens o
façam com toda sorte de instrumentos musicais. Não está falando do culto no
templo terreno e nem de danças.
Alguém poderia
legitimamente indagar: "se Deus aceita as danças no seu alto e sublime
lugar, no santuário celestial, será que Ele se desagradaria das danças no local
da adoração terrena?" A única resposta que eu tenho para isto é que a maneira
que temos de saber o que agrada a Deus ou não em seu culto hoje é mediante o
estudo do Novo Testamento. O que Deus prescreve para o culto dos cristãos?
Certamente não encontraremos uma liturgia detalhada, uma sequência dos atos de
culto. Mas encontraremos os princípios espirituais que governam este culto e os
elementos que dele devem constar. E entre estes, nao acharemos as danças.
Mas, não quero insistir
demais neste ponto. O que eu gostaria apenas de deixar claro neste post é que o
Salmo 150 não pode ser usado como uma prova cabal e final de que as danças
faziam parte do culto a Deus oferecido em seu templo ou seu templo em Jerusalém
e que em consequência devemos ter danças nos cultos cristãos de hoje.
Não considero este
assunto tão central à fé que eu tenha que me separar de quem pensa diferente.
Se você quer dançar no culto, dance. Não vou considerá-lo um pagão por isto.
Mas não me venha dizer que é bíblico e que aqueles que pensam diferente de você
serão condenados como Mical, que criticou Davi quando dançava.
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