Teologia

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

“NÃO JULGUEIS PARA QUE NÃO SEJAIS JULGADOS”: DEVÍAMOS JAMAIS JULGAR A OUTROS?


Ricardo André

“Não julgue para não ser julgado!” Esta é uma expressão comumente usada em autodefesa por uma pessoa que encontra-se em erro para outra que está tentando ajudá-la a ver e corrigir seu erro. Tal atitude me despertou para algo que vejo quase que cotidianamente na minha trajetória de 17 anos como ancião de igreja, 12 como pai e 21 anos como professor: nós vivemos num tempo e numa geração especialmente melindrosa, especialmente arredia quando alguém – um líder religioso, pai ou professor – a corrige. É claro que, nisso tudo, estão envolvidas várias causas: falta de habilidade emocional, baixa autoestima, entre outras. Mas, hoje temos um ingrediente peculiar em nossas relações sociais. Estamos cada vez mais nos tornando “livres” para pensar e fazer o que quisermos, como quisermos. Estamos independentes. Claro, talvez a geração dos nossos avós era mais engessada, mas eu creio que caímos para o outro extremo. Acabamos nos tornando incorrigíveis, com a desculpa de querermos ser verdadeiros.

Mesmo na igreja, alguém que é corrigido ou disciplinado (e sabe que a disciplina é prevista na Bíblia Sagrada, e que, portanto, ela é bênção, pois ela tem um caráter redentivo e não punitivo) tem dificuldade para receber a correção em sua plenitude. É corrigido e, subitamente vem o sentimento de incômodo, tristeza e muitas vezes de revolta, como falou Paulo: “Nenhuma disciplina parece ser motivo de alegria no momento, mas sim de tristeza. Mais tarde, porém, produz fruto de justiça e paz para aqueles que por ela foram exercitados” (Hebreus 12:11, NVI).

No atual cenário que vivemos que descrevi, normalmente quem foi corrigido ataca quem o corrigiu, defendendo-se com argumentos como “não precisava falar desse jeito”. A primeira reação é essa, de virar-se contra quem o corrigiu atacando a forma e não o conteúdo! Ora, eu não estou aqui fazendo a defesa de que se deve falar de qualquer maneira ou de forma rude. Isso é outro assunto. O que eu quero dizer é que quem é disciplinado deve, antes de tudo, receber com mansidão a correção, sem se entregar à tentação de se magoar com quem corrigiu. É por isso que as pessoas têm dificuldade de corrigir. Ninguém quer se indispor com ninguém. Porém, aprendemos que a correção é bênção em nossas vidas!

A verdade é que ninguém gosta de ser corrigido. Todos somos assim, ocorre é que alguns não demonstram. Mas, muitos que recebem a disciplina chegam à humildade de ouvir e imediatamente mudam de atitude. Outros, dominados pelo orgulho, não a aceitam.

Faça um exercício de – ao menos em um primeiro momento – NUNCA se chatear com um líder, um pastor ou mesmo um amigo que lhe corrige. Quem tem coragem de lhe confrontar para o seu crescimento não deve ser afastado e, sim trazido mais para perto. Assim se comportam os sábios. Dizer (ou agir como se) “não gosto que me corrijam” não é somente um atestado de soberba e infantilidade. É também tolice e insensatez.

Quem não aceita a correção não cresce. Aprende mais devagar. Fica para trás em tudo: na família, no chamado, na santidade. Precisamos lidar com nossa fraqueza emocional e receber as correções para crescer. Honrar quem tem a coragem de nos amar a ponto de nos corrigir e ser mal interpretados, eventualmente.

Não é sem razão que o apóstolo Paulo fala ao jovem Timóteo sobre os últimos dias (exatamente esse nosso tempo), sobre o egoísmo, a presunção e a arrogância dos homens (2Tm 3), e por isso ouvirão apenas mestres que falam o que eles querem ouvir (2Tm 4), pois não suportam a correção.

De fato, Jesus afirmou: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mateus 7:1). Significa isto que não podemos pronunciar julgamento contra o pecado ou disciplinar uma pessoa que agiu erradamente? O que realmente Jesus quis dizer com essa expressão?

A passagem faz parte do Sermão da Montanha proferido por Jesus. Obviamente Jesus não pretendia que não podemos fazer escolhas ou distinções entre o bem e o mal. Nem queria Ele dizer que devíamos tolerar o pecado ou fechar os olhos para lapsos morais. Pois no verso 6 do mesmo capítulo Ele diz: “Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas”. Existem pessoas que não dão valor algum as coisas de Deus, e agem como cães e porcos, profanando o que é sagrado. Obviamente para que essa ordem seja obedecida é necessário julgar. Isso quer dizer que a Bíblia nunca proíbe uma pessoa ou um grupo distinguir entre o certo e o errado; nem proíbe medida disciplinar contra o que é considerado errado, pecaminoso ou inaceitável.

Daí, Paulo em I Coríntios 5 advertir a igreja que trate firmemente “no nome de nosso Senhor Jesus” com um certo indivíduo que tem estado a viver em pecado aberto e instou: “Tirai, pois, de entre vós, a esse iníquo” (versos 1-13).

Assim o texto de Mateus 7:1 não pode ser compreendido como se significasse que nós como indivíduos ou um grupo de crentes não devêssemos condenar o pecado ou disciplinar os que erram — seja na igreja, na escola ou em família. Nem devia o dito de Jesus ser interpretado como se seres humanos não tivessem o direito de julgar. Se ninguém pudesse julgar a outros, não haveria tribunais, nem um julgamento por quebrar a lei, nenhuma justiça e nenhum castigo. Uma sociedade sem a habilidade de julgar seus membros por violação de sua lei mergulharia no caos e acabaria se destruindo. Mesmo dentro da limitação do conhecimento e da compreensão de humanos, há necessidade de julgamento.

Então, o que Jesus pretende nessa passagem? Segundo o Comentário Bíblico Adventista, v. 5, p. 369, “Jesus se refere em especial ao fato de julgar as intenções de outra pessoa, não ao fato de julgar se seus atos são certos ou errados. Somente Deus pode julgar as intenções, pois só Ele pode ler o pensamento [...]. Jesus não se refere à percepção por meio da qual o cristão deve distinguir entre o certo e o errado (Ap 3:18), mas sim ao hábito da crítica e da censura, em geral, injusta”.

Portanto, o que Jesus proíbe não é julgamento, mas o hábito de julgar — aquela atitude arrogante pela qual a pessoa assume um ar de superioridade sobre outros, deleitando-se habitualmente em crítica de outros enquanto ignora a mesma falta em si, aquela hipocrisia que vê um argueiro no olho de um irmão enquanto é cego à trave em seu próprio olho (verso 3). Ellen White chama de farisaico este espírito de crítica, e aconselha: “Não vos ponhais como norma. Não façais de vossas opiniões, vossos pontos de vista quanto ao dever, vossas interpretações da Escritura, um critério para outros, condenando-os em vosso coração se não atingem vosso ideal. Não critiqueis a outros, conjeturando os seus motivos, e formando juízos” (O Maior Discurso de Cristo, pág. 124).

Embora devamos nos resguardar do espírito de crítica, não devemos deixar de proteger a saúde moral e espiritual do corpo de Cristo, que inclui a nós também. É por isso que Jesus advertiu em Mateus 7: “Acautelai-vos [...] dos falsos profetas [...]. Por seus frutos os conhecereis” (versos 15-20). Proteger-se de falsos profetas e examinar a natureza dos “frutos” que as pessoas produzem envolve um discernimento espiritual que é diferente do hábito de criticar e censurar. Uma linha clara precisa ser traçada entre avaliação ética e crítica motivada, entre censura visando condenação e disciplina visando redenção.

Jesus ainda nos adverte contra sermos juízes zelosos sobre outros. A Bíblia frequentemente usa as palavras julgar ou julgamento em termos da salvação final de um ser humano. Somos excluídos dessa área. “Não julgueis” certamente nos proíbe pronunciar julgamento quanto à salvação final de um indivíduo, não importa quão pecaminoso ele seja. A qualificação de uma pessoa para a vida eterna é algo que será decidido somente por Deus.

Como devemos julgar os erros dos nossos irmãos em Cristo?

Os seres humanos não são perfeitos, e nem mesmo os cristãos mais dedicados estão isentos de cometer erros. Como os cristãos devem reagir se um irmão cair em algum comportamento pecaminoso? Paulo nos ensina exatamente como proceder nessa situação:

“Irmãos, se alguém for surpreendido em algum pecado, vocês, que são espirituais deverão restaurá-lo com mansidão. Cuide-se, porém, cada um para que também não seja tentado” (Gálatas 6:1, NVI).

Segundo o apóstolo Paulo, as pessoas que em algum momento de debilidade ou de descuido espiritual, baixou a guarda, e foram surpreendidas em pecados, devem ser restauradas com mansidão. “Aqueles que permaneciam “espirituais” não deveriam tomar a atitude arrogante em relação ao irmão que tinha caído diante dos ataques da tentação. Não deveriam desanimá-lo nem induzi-lo mediante críticas ou censuras a ceder ainda mais diante das “obras da carne” [...]. Ele necessitava muito de uma mão solidária que o ajudasse a sair do poço de pecado em que tinha caído. Desapontado e desiludido, ele precisava de alguém que se aproximasse dele com paciência, bondade e mansidão (v. 22, 23); alguém que compreendesse que ele mesmo poderiam algum dia ser vencido pela tentação e necessitar de ajuda semelhante” (Comentário Bíblico Adventista, v. 6, p. 1090).

Concluindo, o julgamento em muitas situações é necessário, porém o julgamento deve ter propósitos bem definidos: preservar as verdades bíblicas e exortar alguém ajudando-o a concertar o que está errado, promovendo desse modo, a restauração. Assim como não abandonaríamos uma pessoa que caísse e quebrasse uma perna, como membros do corpo de Cristo, devemos bondosamente cuidar de nossos irmãos e irmãs em Cristo que podem tropeçar e cair, enquanto trilhamos juntos o caminho para o reino de Deus. Portando, qualquer julgamento com intenção egoísta e soberba, não é aprovado por Deus. Se alguém ainda não se convenceu que o julgamento correto é legítimo e necessário, saiba que o simples ato de dizer a alguém “não julgueis” já é um tipo de julgamento.





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