Teologia

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O BODE EMISSÁRIO


Alberto R. Timm*

A história de uma declaração polêmica feita por Ellen G. White

A identificação e o significado escatológico do bode expiatório de Levítico 16 têm gerado muita discussão nos círculos acadêmicos. Dentro da antiga tradição judaica, o bode expiatório sempre foi visto como um ser demoníaco.1 Porém, desde o período pós-apostólico, muitos expositores cristãos têm tentado identificá-lo com Cristo e Sua morte sacrificial. Os adventistas do sétimo dia têm salientado uma clara distinção entre os bodes de Levítico 16:8, considerando aquele que era “para o Senhor” como sendo um tipo de Cristo, e o “bode emissário [hebraico Azazel]” como representante de Satanás. Essa mesma visão é também expressada por Ellen G. White.

Este artigo apresenta um exame cronológico das afirmações de Ellen G. White a respeito do bode expiatório antitípico. A discussão começa com a contribuição de O. R. L. Crosier, que lançou o fundamento da compreensão adventista do sétimo dia sobre o assunto, continua com as primeiras e últimas declarações de Ellen G. White relacionadas ao tópico, e termina com algumas observações sobre um raro manuscrito completamente diferente de todos os outros escritos dela e do pensamento adventista em geral.

Contribuição de Crosier

A compreensão adventista a respeito da purificação do santuário celestial (Dn 8:14; Hb 9:23) e do último papel de Satanás como bode emissário escatológico (Lv 16; Ap 20) foi, em grande parte, formada pelas interpretações bíblicas apresentadas no artigo “The law of Moses”, publicado numa edição especial do jornal Day-Star, em 7 de fevereiro de 1846.2 Em sua abordagem desse tema, Crosier apresentou oito principais razões pelas quais o bode emissário devia ser identificado como Satanás e argumentou que “a ignorância da lei e seu significado é a única origem possível para a opinião de que o bode emissário era um tipo de Cristo”.3

A visão de Crosier a respeito de Satanás como o bode emissário antitípico foi plenamente aceita pelos primeiros adventistas sabatistas. Os argumentos apresentados por ele ecoaram consistentemente na literatura adventista do sétimo dia sobre o assunto, incluindo os escritos de Ellen G. White. Digno de nota é o fato de que já em 1847, A Word to the “Little Flock” saiu do prelo com o seguinte parágrafo de sua própria pena: “O Senhor me mostrou em visão, mais de um ano atrás, que o irmão Crosier tinha a verdadeira luz sobre a purificação do santuário; e que era Sua vontade que o irmão Crosier publicasse o ponto de vista que nos deu na edição extra do Day-Star, de fevereiro de 1846. Sinto-me plenamente autorizada pelo Senhor a recomendar aquela edição a cada santo.”4

Pesquisando seus escritos publicados e não publicados, é possível verificar que Ellen G. White continuou a falar de Satanás como o antitípico bode emissário.

Primeiras afirmações

No verão de 1849, Ellen G. White afirmou que os pecados confessados antes do tempo de prova “serão colocados sobre o bode emissário e levados para longe”.5 Em 4 de agosto de 1850, ela escreveu uma carta encorajando a família Hastings “a orar muito para que seus pecados pudessem ser confessados sobre a cabeça do bode emissário e levados para longe à terra do esquecimento”.6 Nenhuma das duas declarações provê qualquer indício significativo para a identificação do bode emissário. Porém, meses depois, em 23 de outubro de 1850, ela teve uma visão segundo a qual, antes de Cristo terminar Seu ministério no santuário celestial, acontecerá o seguinte:

“Ele virá à porta do tabernáculo, ou porta do primeiro compartimento e confessará os pecados de Israel sobre a cabeça do bode emissário. Então, colocará as vestes de vingança. Então as pragas cairão sobre os ímpios, e elas não caem até Jesus colocar esses trajes de vingança e Se sentar sobre a grande nuvem branca. Então, enquanto as pragas estão caindo, o bode emissário é levado para longe. Ele luta vigorosamente para escapar, mas é firmemente seguro pelas mãos que o levam para longe... “Enquanto Jesus passou pelo lugar santo ou primeiro compartimento, à porta para confessar os pecados de Israel sobre o bode emissário, um anjo disse: ‘Este compartimento é chamado santuário.’”7 Essa declaração provê lampejos de discernimento em direção à identificação do bode emissário. Assim como Levítico 16:8 distingue o bode “para o Senhor” do “bode emissário”, Ellen G. White distingue Jesus do bode emissário escatológico. A distinção se torna ainda mais evidente quando ela diz que o próprio Jesus, como nosso verdadeiro Sumo Sacerdote, confessará os pecados do povo de Deus “sobre a cabeça do bode emissário”, e que “enquanto as pragas estão caindo, o bode emissário é levado para longe”. Somado a isso, o fato de que esse bode “luta vigorosamente para escapar” de seu trágico exílio mortal descarta qualquer identificação dele com Cristo. Mesmo sem mencionar nominalmente Satanás, é mais que evidente que Ellen G. White o tinha em mente como o verdadeiro bode emissário.

Declarações posteriores

Nos anos 1880 e 1890, Ellen G. White escreveu seus mais fortes argumentos sobre Satanás como o bode emissário escatológico. Na edição de 1884 de The Great Controversy Between Christ and Satan [O Grande Conflito, capítulo “O Santuário Celestial, Centro de nossa Esperança”], leem-se as seguintes palavras:

“Verificou-se também que, ao passo que a oferta pelo pecado apontava para Cristo como um sacrifício, e o sumo sacerdote representava a Cristo como mediador, o bode emissário tipificava Satanás, autor do pecado, sobre quem os pecados dos verdadeiros penitentes serão finalmente colocados. Quando o sumo sacerdote, por virtude do sangue da oferta pela transgressão, removia do santuário os pecados, colocava-os sobre o bode emissário. Quando Cristo, pelo mérito de Seu próprio sangue, remover do santuário celestial os pecados de Seu povo, ao encerrar-se o Seu ministério, Ele os colocará sobre Satanás, que, na execução do juízo, deverá encarar a pena final. O bode emissário era enviado para uma terra não habitada, para nunca mais voltar à congregação de Israel. Assim será Satanás para sempre banido da presença de Deus e de Seu povo, e eliminado da existência na destruição final do pecado e dos pecadores.”8

Em 1888, a edição revisada e ampliada de O Grande Conflito não apenas preservou o parágrafo citado, mas também adicionou mais duas afirmações sobre o mesmo assunto.9 No capítulo “O Grande Juízo Investigativo”, ela diz:

“Como o sacerdote, ao remover do santuário os pecados, confessava-os sobre a cabeça do bode emissário, semelhantemente Cristo porá todos esses pecados sobre Satanás, o originador e instigador do pecado. O bode emissário, levando os pecados de Israel, era enviado ‘à terra solitária’ (Lv 16:22); de igual modo, Satanás, levando a culpa de todos os pecados que induziu o povo de Deus a cometer, estará durante mil anos circunscrito à Terra, que então se achará desolada, sem moradores, e ele sofrerá finalmente a pena completa do pecado nos fogos que destruirão todos os ímpios. Assim, o grande plano da redenção atingirá seu cumprimento na extirpação final do pecado e no livramento de todos os que estiverem dispostos a renunciar ao mal.”10

Novamente, no capítulo 41 do livro citado, ela reforça o mesmo conceito de que “assim como o bode emissário era enviado para uma terra não habitada, Satanás será banido para a Terra desolada, que se encontrará como um deserto despovoado e horrendo”.11

Essas três afirmações foram preservadas com seu palavreado original na edição revisada de 1911 de O Grande Conflito, excetuando-se o fato de que o termo inglês para bode emissário usado com hífen na edição anterior (scape-goat) foi escrito nessa edição sem o hífen (scapegoat).12 Conceitos similares também foram expressos em 1890 e 1895.13 No livro Patriarcas e Profetas, ela argumentou que “visto que Satanás é o originador do pecado, o instigador direto de todos os pecados que ocasionaram a morte do Filho de Deus, exige a justiça que Satanás sofra a punição final”.14

De todas essas declarações, concluímos claramente que Ellen G. White identificou Satanás como o bode emissário escatológico. Porém, há uma intricada afirmação, de 1897, que merece considerações especiais.

Uma declaração incomum

O Manuscript 112, de 1897, sob o título “Diante de Pilatos e Herodes”, é um documento datilografado, com típicas correções editoriais feitas pelas secretárias de Ellen G. White, a maioria das quais feitas por Maggie Hare. Esse documento foi carimbado com o nome “E. G. White” no fim do conteúdo de 19 páginas. Esse era um procedimento comum em seu escritório, quando eram feitas múltiplas cópias em carbono de algum manuscrito de Ellen G. White. Existem apenas três cópias originais datilografadas desse manuscrito. Uma delas contém todas as 19 páginas, e outras duas, incluindo a cópia de arquivo, terminam na página 17, sendo omitidas as páginas 18 e 19.

O conteúdo das páginas omitidas não é incomum, exceto pelo primeiro parágrafo da página 18, que trata especificamente do “bode emissário”. Esse parágrafo diz o seguinte:

“Alguns aplicam o solene tipo, o bode emissário, a Satanás. Isso não está correto. Ele não pode levar seus próprios pecados. Diante da escolha de Barrabás, Pilatos lavou suas mãos. Ele não pode ser representado como o bode emissário. O terrível clamor, proferido com terrível ousadia pela multidão inspirada por Satanás, aumentou cada vez mais e alcançou o trono de Deus: ‘Que o sangue dele caia sobre nós e sobre nossos filhos!’ Cristo era o bode emissário, o qual é representado no símbolo. Somente Ele pode ser representado pelo bode enviado ao deserto. Somente Ele sobre quem a morte não tinha poder, estava habilitado a levar nossos pecados.”

Essa declaração de 1897 diverge completamente de tudo o que Ellen
G. White escreveu sobre o assunto anteriormente (conforme foi visto nas outras citações mencionadas neste artigo), ou depois (de acordo com a edição de 1911 de O Grande Conflito). Na edição de 1911, preparada sob sua supervisão,16 ela falou da era pós-1844 como o “Dia de Expiação antitípico”,17 que culminará com a destruição final de Satanás, no fim dos mil anos de Apocalipse 20, como o antitípico “bode emissário”.18 Assim, não há nenhuma razão convincente para se crer que ela tivesse mudado sua opinião sobre o assunto.

Como explicar?

Os adventistas aceitam os argumentos bíblicos de O. R. L. Crosier, no sentido de que Satanás é o antitípico bode emissário que entra em ação no tempo do segundo advento de Cristo. Ellen G. White não apenas partilhou da mesma visão, mas também a ensinou consistentemente através de seus escritos. O fato de existir um único parágrafo datilografado de origem questionável, falando de Cristo, em vez de Satanás, como o antitípico bode emissário não deve ser usado como evidência de que ela tivesse mudado de opinião sobre esse tema. Se fosse o caso, deveríamos esperar encontrar tal mudança refletida em seus escritos depois de 1897. Isso teria mudado toda a estrutura escatológica, mudando o bode emissário de Satanás para Cristo e o antitípico Dia de Expiação da era pós-1844 de volta à cruz. Porém, nenhum dos seus escritos reflete tal mudança.

Independentemente de como essa questionável declaração se tornou parte do Manuscript 112, em 1897, ela deve ser vista como excepcional. Ela não oferece razão para ninguém cair na perigosa falácia da “generalização”, pela qual uma ou poucas exceções são generalizadas como toda a regra.19 Os escritos de Ellen G. White nos dão suficientes evidências de que, no fim de sua vida, ela continuou identificando Satanás como o bode emissário escatológico.

Porém, ainda somos deixados com algumas questões óbvias: Acaso escreveu Ellen G. White aquele surpreendente parágrafo? Como ele se tornou parte de um dos seus manuscritos? Quando ele foi tirado do restante do documento? Sabemos apenas que a cópia reduzida é o que estava no arquivo quando a coleção de seus escritos não publicados foi microfilmada, por questões de custódia, em 1951. Contudo, nenhuma informação adicional tem sido encontrada para ajudar a responder àquelas questões. Portanto, qualquer tentativa de respondê-las está no domínio especulativo.

O que sabemos é que em todos os outros comentários de Ellen G. White, ela identifica o bode emissário como Satanás. Outro fato conhecido é que ela jamais incluiu esse parágrafo em seus escritos, embora outras linhas do manuscrito fossem usadas.20 Assim, embora não tenhamos respostas claras sobre a real origem desse único parágrafo, não há incerteza quanto à compreensão que Ellen G. White manteve, durante toda a vida, a respeito da identidade do bode emissário antitípico.

Referências:

1. Ver Robert Helm, Andrews University Seminary Studies 32, nº 3 (Outono de 1994), p. 217- 226; William H. Shea, Journal of the Adventist Theological Society 13, nº 1 (Primavera de 2002), p. 1-9.

2. O. R. L. Crosier, Day-Star Extra, 07/02/1846, p. 37-44.

3. Ibid., p. 43.

4. Ellen G. White, A Word to the “Litte Flock” (Brunswick, ME: James White, 1847), p. 12.

5. ___________, Manuscript 6, 2849, Ellen G. White Estate.

6. ___________, Carta 8, 04/08/1850, in Manuscript Releases, (Silver Spring, MG: White Estate, 1993), v. 19, p. 131, 132.

7. Ellen G. White, Manuscript 15, 1850, E. G. White Estate.

8. ___________, O Grande Conflito, p. 266, 267. 9

9. Ibid., p. 422.

10. Ibid., p. 485, 486.

11. Ibid., p. 658.

12. Ibid., p. 422, 485, 486, 658.

13. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 358; Signs of the Times 28/04/890, p. 258; 16/05/1895, p. 4, Mensagens Escolhidas, v. 3, p. 355, 356.

14. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 358.

15. ___________, Manuscript 112, 1897.

16 Ver Arthur White, The Later Elmshaven Years, 1905-1915: Ellen G. White (Washington, DC: Review and Herald, 1982), v. 6, p. 302-337.

17. Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 431.

18. Ibid., p. 422, 485, 486, 658.

19. Ver David H. Fischer, Historians’ Fallacies: Toward a Logical of Historical Thought (Nova York: Harper & Row, 1970), p. 103-130.

20. Algumas frases e expressões do Manuscript 112, 1897, aparecem no livro O Desejado de Todas as Nações, p. 733. Na página 18 do manuscrito, no parágrafo seguinte à declaração problemática, está a seguinte afirmação: “Aquela súplica foi ouvida. O sangue do Filho de Deus caiu sobre seus filhos e filhas em uma viva maldição perpétua. Os filhos de Israel que escolheram Barrabás no lugar de Cristo sentiram a crueldade de Barrabás enquanto o tempo durar.” Com algumas poucas alterações, essa declaração aparece em O Desejado de Todas as Nações, p. 739.

*Alberto R. Timm, é Diretor associado do White Estate, na Associação Geral dos Adventistas, Estados Unidos

FONTE: Revista Ministério, Mar-Abr 2014, p. 21-23

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