Ricardo
André
A cada episódio de
violência em que criminosos levam a pior no confronto com a polícia ou mesmo
com cidadãos armados, velhas e virulentas representações sobre o crime e a
justiça veem à tona numa forma de quase histeria ou celebração coletiva. Se
utilizando do discurso de ódio, de “bandido bom é bandido morto”, milhares de
pessoas celebram nas redes sociais a morte de um criminoso por policiais. Tal
discurso se alastra pela sociedade, pelo consciente e inconsciente das pessoas,
e, espalhado pelo meio social não encontra limite apenas nas pessoas que se
conceituam como pessoas de bem.
O Datafolha,
reconhecido instituto de pesquisa de opinião pública, no dia 28 de julho de
2015, revelou uma pesquisa aterradora. Segundo esta pesquisa, mais da metade da
população brasileira acredita que BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO. Quando mais da
metade da população quer ver o sangue cobrindo as ruas, quer ver a polícia ou
quem vier a fazê-lo, a matar os indesejados, os excluídos, os marginais, quando
mais da metade da população se regozija com isso, qualquer voz que se levante
falando pela dignidade humana, será execrada e levada à matilha para que seja
ali devorada, em praça pública, sob o holofote das redes sociais.
A extrema direita política
usa esses episódios de tortura, justiçamento, ou assassinato de criminosos pela
polícia, para propagar um discurso de ódio, ancorado exatamente na visão
reacionária de que “bandido bom é bandido morto”. O polêmico Deputado Federal Jair
Bolsonaro (PEN – RJ), por exemplo, alcançou 1,1 milhões de visualizações em seu
vídeo no Facebook sobre o tema. Apresentou um programa radical: combater o
politicamente correto, acabar com os direitos humanos, armar a população,
defender os policiais que deveriam ser tratados como heróis da nação. No
entanto, o programa de Bolsonaro não é capaz de resolver nenhum dos problemas
sociais brasileiros. A violência urbana não vai diminuir com mais polícia, mais
grupos de operações especiais, mais pessoas armadas. O discurso do ódio é
vazio, superficial e anticristão. É muito perigoso, está crescendo e precisa
ser combatido.
Expressões como
‘bandido bom é bandido morto’, ‘tá com dó? leva pra casa’, ‘deveriam ter matado
mais’, entre outras, estão cada vez mais presentes no pensamento de inúmeras
pessoas atualmente, todavia, o que causa-nos estranheza, é que boa parte dessas
pessoas que apoiam e promovem este tipo de discurso são professos cristãos.
Devem os seguidores de Jesus incorporar em suas vidas e reproduzir essa
ideologia? Há base bíblia para essa retórica?
O presente artigo não
pretende, de forma alguma, fazer apologia à impunidade de pessoas que merecem
ser julgadas e punidas no rigor da lei por seus próprios atos. Antes, o texto
propõe um autoexame para o coração e um olhar para o problema, a fim de,
fundamentado na ética cristã encontrada na mensagem do evangelho, ir em busca
de caminhos mais parecidos com os de Jesus frente ao desafio que temos de nos
relacionar com criminosos.
O
que diz a Bíblia Sagrada?
É evidente que o
problema da segurança pública é latente e quem o sente de forma mais dura são
os trabalhadores, as mulheres, os homossexuais e os negros, que muitas vezes
são agredidos, violentados e até assassinados. Com tal violência crescente e a
ineficiência do Estado em proteger a população, gerando um sentimento de
impunidade, é natural que muitos de nós estejamos indignados. Essa indignação
quando é com base no que é justo não só é um direito, mas também é um dever.
Posicionamo-nos contra a injustiça e os desmandos que nos afetam. Ocorre que
existe um sem número de pessoas que extrapolam o âmbito daquilo que é justo.
Deixam-se levar pelas emoções, deixam aflorar aquilo que há de pior em si
mesmas, e toda essa raiva e revolta, não poucas vezes, redundam em atitudes
desequilibradas e injustas. Vivem exatamente o inverso da lógica: um erro não
justifica outro.
Quando estudamos a
Bíblia percebemos nitidamente que a retórica do “bandido bom é bandido morto” é
incompatível com os valores do evangelho. Logo, tal discurso pernicioso não
condiz com aqueles que professam ser cristãos, pelas seguintes razões:
1)
Porque Jesus ensinou a amar os inimigos. “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que
os perseguem”, ordena-nos Ele. (Mateus 5:44, NVI). Nos versículos precedentes
Ele já nos disse que não devemos ter pensamentos de ódio e desejos pecaminosos,
que nossos pensamentos e palavras devem ser puros. Naturalmente, Jesus exigiu
algo muito difícil. Como pode alguém fazer tais coisas? Exatamente. Amar nossos
inimigos não é normal, mas é uma atitude cristã, e nos versos seguintes Jesus
nos diz por que isso é cristianismo (versos 45-48). Portanto, um cristão que
propaga nas redes sociais a retórica do bandido bom é bandido morto está
confrontado com o claro ensino de Jesus.
2)
Porque Jesus ensinou a perdoar como somos perdoados por Deus. Disse
Jesus: “Pois se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também
lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes
perdoará as ofensas" (Mateus 6:14,15, NVI). Cristo fala categoricamente do
dever do cristão em perdoar os que nos fazem mal. Mateus 6:12, 14 e 15 não são
os únicos lugares no primeiro Evangelho onde se enfatiza a lição de passarmos
adiante a outros o perdão que recebemos de Deus. Em Mateus 18:21-35 aborda
também a questão da reciprocidade do perdão. Portanto, precisamos demonstrar
tanto espírito de perdão aos outros quanto Deus tem demonstrado por nós (v.
33). O que significa ser cristão? Ser cristão é imitar a Jesus; ser semelhante
a Ele, viver a vida que Ele viveu. Pois bem, não devemos odiar, por que Ele
perdoava e mesmo na cruz foi capaz de orar: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem
o que fazem” (Lucas 23:34). Como cristãos, precisamos aprender a perdoar. Isso
exige graça, graça transformadora e graça capacitadora.
Ademais, quem nunca cometeu
um erro? O grande desafio de mantermo-nos fiéis à pregação da mensagem cristã
encontrada na Bíblia Sagrada tão ignorada hoje em dia, é que ela nos dá um
grande tapa na cara, nivelando-nos a todos por baixo! Todos são pecadores! Diz-nos
o apóstolo Paulo: “Pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Romanos
3:23, NVI). Todos são maus! Todos estão condenados! Pregar essa mensagem
cancela todo orgulho, toda altivez, todo mérito. Essa mensagem impossibilita
qualquer pessoa da raça humana a se colocar em posição de superioridade diante
de quem quer que seja.
O julgamento que Jesus
condena é exatamente esse! É o julgamento de quem olha para o outro com ar de
superioridade e coração desprovido de amor. Que bate no peito e diz: “Ó Deus,
graças te dou, porque não sou como os demais homens, injustos e adúlteros; nem
ainda como este publicano!” (Lc 18-10-14). É o julgamento de quem pensa não ter
a mesma capacidade de cometer pecados tão grandes ou maiores do que qualquer
outro ser humano. É o julgamento daquele que não percebeu ainda que nada é, e
não aprendeu ainda a gloriar-se apenas e tão somente nos méritos de Cristo.
Queremos e até pregamos algumas partes do evangelho que consideramos
‘radicais’, ‘revolucionárias’, ‘loucas’, mas essa que diz que distantes de
Cristo, somos miseráveis pecadores condenados a morte eterna, e de que fomos
chamados a amar nossos inimigos, ó não, esta não, esta nós ignoramos.
Quem se acha superior a
quem quer que seja, não sabe quão corrupta é a alma humana e quão capazes somos
de fazer o mal. Não sabe quão suja é a lama do pecado de onde Cristo nos tirou.
Então, perguntamos: e se fôssemos tratados por Deus com a mesma justiça que
vomitamos nas redes sociais contra os nossos semelhantes? Será que não estamos
com o coração no lugar errado? Será que não nos está faltando discernimento
para entender o coração subversivo daquele que nos ordena a amar nossos
inimigos?
3)
Porque Jesus rejeitou a vingança como forma de fazer justiça. “Não
resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a
outra” (Mateus 5:39, NVI). Oferecer o outro lado da face simboliza o espírito
não vingativo, humilde e manso que deve caracterizar os cristãos. Jesus está
nos ensinando que não é papel de cristãos individualmente “castigar o que
pratica o mal” (Romanos 13:4), mas a polícia e os tribunais de justiça, com
base na lei. Não devemos impor a lei com
as próprias mãos. Não devemos viver uma vida de retaliação. Devemos viver de
acordo com as bem-aventuranças, devemos ser pacificadores e amar nossos
inimigos. Devemos deixar a vingança com Deus, pois está escrito: “Não vos
vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está
escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor.” Em outra passagem,
Salomão escreveu: “Não digas: vingar-me-ei do mal; espera pelo Senhor e ele te
livrará” (Provérbios 20:22). Ao contrário: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe
de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas
vivas sobre a cabeça dele”. “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal
com o bem” (Romanos 12:19-21, NVI).
Lucas nos conta que
Jesus havia iniciado sua última viagem para Jerusalém. Lá ele seria entregue,
julgado e crucificado. Enquanto seguia a viagem, Jesus continuou a proclamar o
reino de Deus, a ensinar seus discípulos e a curar os enfermos. Quando estavam
próximos de uma aldeia samaritana, ele enviou discípulos que o precedessem para
preparar um lugar no qual pudessem repousar. Mas diferente de uma outra cidade
samaritana, aquela da história registrada em João cap. 4, que se converteu a
Jesus, esta aqui recusou-se a recebê-lo.
Então, diante disto
Tiago e João, os “filhos do trovão”, perguntam a Jesus: “O Senhor quer que nós
ordenemos que caia um fogo do céu que consuma estes samaritanos. Esse episódio
mostra nitidamente que os irmãos fizeram a indagação a Jesus motivados por
sentimentos de retaliação e vingança. Para suas surpresa, Jesus os repreendeu,
dizendo: “Vocês não sabem de que espécie de espírito são, pois o Filho do homem
não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los" (Lucas 9:51-56,
NVI).
A Bíblia, inclusive, exorta-nos
a não se alegrar quando o nosso inimigo fracassa: “Quando cair o teu inimigo,
não te alegres, e quando tropeçar, não se regozije o teu coração; para que o
Senhor não o veja, e isso seja mau aos seus olhos, e desvie dele, a sua ira.” (Provérbios
24:17-18).
Portanto, reações
descontroladas e pautadas no ódio e na vingança da parte de gente que não tem
compromisso nenhum com a fé e com a moral cristã são lamentáveis, mas de uma
forma ou de outra, compreensíveis, tendo em vista o estado de escuridão e ódio
que uma pessoa dominada pelo pecado pode chegar. Entretanto, alguém que se diz
seguidor de Cristo compactuar com esse tipo de coisa é inadmissível. Reproduz
apenas o triste eco de uma geração cristã ególatra, que não sabe quem de fato
é, não sabe de onde Cristo a tirou, não tem Cristo e este crucificado como
Senhor e referência de seu coração, é biblicamente analfabeta e vazia do
Espírito Santo de Deus.
4)
Porque Jesus andou com os pobres e miseráveis e em nossa sociedade desigual e
racista, a imagem do bandido é sempre de pobres e negros. Certa
vez Jesus encontrava-se na casa do publicano Levi Mateus. Ele estava sentado à
mesa comendo na companhia daqueles que a sociedade julgava “indesejáveis”:
publicanos e pecadores (Mt 9:10-13). Sendo interrompidos pelos fariseus, que
perguntaram se era apropriado que Ele Se misturasse com pessoas tão
desprezíveis, Jesus os desafiou a aprender o significado de misericórdia, em
contraste com sacrifício. “Vão aprender o que significa isto: ‘Desejo
misericórdia, não sacrifícios’. Pois eu não vim chamar justos, mas pecadores
(Mt 9:13, NVI).
Reflitamos sobre esta
incrível verdade de que Aquele que fez todas as coisas (Jo 1:3) assumiu a
humanidade e, na carne, misturou-se com os seres humanos caídos e os ajudou.
Essa verdade, que nos traz muita esperança, de alguma forma, deve afetar o modo
como nos relacionamos com os outros.
O sistema não é
justo. Os mortos da guerra às drogas são
jovens, negros e pobres. 77% dos mortos por homicídio no Brasil são negros. É a
pobreza que está sendo criminalizada.
O Brasil tem a quarta
maior população carcerária do mundo. Entre 2004 e 2014, o número de presos no
Brasil aumentou 80%. Cerca de 60% dos presos são negros, mais da metade são
jovens e a grande maioria não concluiu o Ensino Médio. Os presos são jovens, negros pobres e com
baixa escolaridade.
Os números indicam que
a questão é muito mais profunda e complexa do que as explicações da extrema
direita. Como explicar esses números sem entender que a questão da violência,
do crime, do encarceramento é uma questão social, que está relacionada ao
racismo e às desigualdades latentes da sociedade capitalista?
Ademais, o mantra “bandido
bom é bandido morto” não diminui a quantidade de crimes, não traz mais
segurança para a população, como pensam muitos, mas, para além de difundir um
pensamento que é criminoso por si só, acaba espalhado pelo meio social,
atingindo a todos com sua mensagem de morte e intolerância, de abandono do
estado de direito.
Quem pensa que uma
polícia mais violenta é saída para melhorar a segurança pública está
redondamente enganado. Estudos revelam que a cada ano a polícia mata mais, e a
cada ano a violência aumenta mais, os homicídios aumentam mais. Portanto, o discurso
do ódio “bandido bom é bandido morto” não traz mais segurança para ninguém. A Polícia
Militar brasileira é uma das mais violentas do mundo e isso não nos torna mais
seguros. Todo jovem e negro da periferia sabe disso. A ação da PM traz mais
morte, mais violência, mais preconceito.
Conclusão
Concluímos dizendo que,
o julgamento que somos chamados a fazer é segundo a reta justiça, com total
fundamento, não em nosso ódio pecaminoso, mas no amor. Se alguém deve ser
punido, que seja com todo rigor, com base na legislação penal de nosso país,
contudo, não porque somos melhores, mas porque é justo, e a paz é fruto da
justiça. Temos de agir sempre no intuito de sermos fiéis a Deus, na esperança
de vermos vidas arrependidas e restauradas pelo poder do evangelho. Nossa ação
deve ser fruto de alguém que sabe que nada é, e que chora por ver a própria
miserabilidade e a miserabilidade dos que estão ao seu redor. Nosso
posicionamento deve sempre ter um norte: amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a nós mesmos.
Em um tempo de tanta
animosidade, tantas discussões, tanta rivalidade e tantas polarizações, somos
chamados a ser sal da terra, somos chamados a andar na contramão do sistema e
em humildade, agir como pacificadores com base na justiça do Reino. É tempo de
buscarmos sabedoria e sensatez para nossos posicionamentos públicos como
cristãos.
Justiçamento e vingança
não devem fazer parte nem do vocabulário, nem da vida dos cristãos! Seja Cristo
o Senhor das nossas mentes, e que Ele nos dê sabedoria e discernimento em nossa
forma pública de viver neste mundo caótico e sofrido. Sejamos luz, como nos
pede o Senhor (Mt 5:14)!
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