Ricardo
André
Muitos adventistas
do sétimo dia utilizando-se da Bíblia Sagrada e, principalmente, dos escritos de Ellen G. White, afirmam
categoricamente que é um erro os cristãos adventistas se filiarem a sindicatos
e participarem de movimentos reivindicatórios e grevistas. E aproveitam as
redes sociais ou mesmo as "rodas de conversas" para condenar a participação de cristãos adventistas em qualquer
greve ou manifestação por direitos. Passagens bíblicas são tiradas de seus
contextos para dizer o que, de fato, não pretendem dizer. Mas afinal, o que a Bíblia Sagrada
e Ellen G. White dizem sobre o assunto? É mesmo um pecado os cristãos adventistas
participarem de sindicatos e suas atividades? Esse artigo tem por objetivo refletir em alguns
pontos sobre este assunto complexo, mas sem pretender esgotá-lo e oferecer uma
resposta universal e encerrada. As situações e contextos são muito diferentes,
mas creio que podemos chegar ao bom senso cristão comum, digamos assim.
Antes de prosseguir
na explanação do tema em questão, devo fazer o seguinte esclarecimento: As ideias
inseridas no texto não representa de forma alguma o pensamento oficial da
Igreja Adventista do Sétimo Dia, mas tão somente reflexo da minha opinião
pessoal, decorrente de minhas reflexões. Dito isto, prossigamos na análise do
tema.
Ellen
G. White e os Sindicatos
É verdade que a
escritora cristã Ellen G. White fala dos sindicatos numa perspectiva muito
negativa. A maior parte de sua vida foi vivida no século XIX, nos Estados Unidos
da América do Norte. Nesse tempo, as questões trabalhistas já eram objeto de
movimentos grevistas, e isso passou a gerar implicações de grande alcance. Em
face desse problema, ela escreveu:
“Em razão de
monopólios, sindicatos e greves, as condições da vida nas cidades estão-se tornando
cada vez mais difíceis.” (A Ciência do Bom Viver, p. 364).
“Essas cidades estão repletas
de toda espécie de iniquidade – com conflitos e assassínios e suicídios.
Satanás está nelas, controlando os homens em sua obra de destruição.” (Vida no Campo, p. 25).
“Buscam os homens
conseguir que os elementos empenhados em diferentes profissões se filiem a
certos sindicatos. Esse não é o plano de Deus, mas de um poder que não devemos
jamais reconhecer.” (Testemunhos Seletos, v. 3, pág. 115).
“Os sindicatos
trabalhistas rapidamente se agitam e apelam à violência se suas reivindicações
não são atendidas. Mais e mais claro está se tornando que os habitantes do
mundo não estão em harmonia com Deus.” (Eventos Finais, p. 23).
“Os
sindicatos serão um dos instrumentos que trarão sobre a Terra um tempo de
angústia tal como nunca houve desde o princípio do mundo.” (Vida no Campo, p.
16).
“Não devemos ter nada
que ver com essas organizações. Deus é o nosso Soberano, o nosso Governador”
(Eventos Finais, p. 116).
Muitos valem-se destas
e de outras citações dela para criticar os seus irmãos, afirmando que os mesmos
incorrem em erro ao participarem de sindicatos e eventualmente de movimentos
paredistas. Todavia, ao fazerem tal julgamento, tais pessoas desprezam uma das
características fundamentais do método científico de análise literária: Todas
as declarações de um autor sobre determinado assunto a ser estudado devem ser
cuidadosamente consideradas, levando-se sempre em consideração o contexto
socioeconômico, político e religioso em que foram escritas. Se levarmos isso em conta
evitaremos as más interpretações dos escritos dos autores. Esse princípio
básico de compreensão de texto deve-se aplicar nas declarações supracitadas de
Ellen G. White.
É importante que se
diga que, as greves sindicais nos Estados Unidos na época de Ellen G. White
eram marcadas por forte violência, que prejudicavam a própria causa dos
trabalhadores, em vez de beneficiá-la. No seu artigo “O Sindicalismo nos Países industriais”, Carlos
Fernando de Almeida, afirma que no final do século XIX, “os métodos de ação [dos sindicatos] revelavam
grande dose de empirismo e improvisação. O recurso à greve, à sabotagem e à
violência era frequente”. (http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1224161582B5aYZ8dg3Hs99DT2.pdf). Isso explica o fato dela escrever sobre
o assunto de forma tão negativa. Vale ressaltar ainda que, ao escrever dessa forma dos sindicatos “a intenção de Ellen White não
era tolher os direitos dos trabalhadores, mas simplesmente incentivá-los a
assegurar seus direitos de forma pacífica, sem o uso da violência,
característica das greves sindicais da época. É por essa razão que a Igreja
Adventista não proíbe seus membros de se vincularem aos sindicatos modernos,
mas apenas os orienta a não desconhecerem os princípios da não violência
ensinados por Cristo (ver Mat. 5:38-42). (...)
“Desconhecendo o
contexto da época, alguém poderia acusar o próprio apóstolo Paulo de
discriminação sexual, ao ordenar que as mulheres ficassem caladas na igreja
(ver I Cor. 14:34 e 35). Isso confirma mais uma vez o princípio básico de que,
para conhecermos o pensamento de um autor (inclusive de Ellen White), não
podemos confiar meramente nas opiniões dos seus apaixonados advogados ou dos
seus acérrimos inimigos, mas devemos estudá-los por nós mesmos, para ver se as
coisas são "de fato, assim" (ver Atos 17:11)”. (Revista Adventista,
agosto de 1998. Casa Publicadora Brasileira, p. 33).
É evidente que os
sindicatos de hoje são muito mais organizados do que os dos séculos passados.
Não se observa mais a violência que caracterizavam as greves norte-americanas
no século XIX. Carlos Fernando de
Almeida ainda afirma que “as características dos sindicatos modernos são, na
verdade, amplamente distintas das dos sindicatos dos fins do século XIX. As
formas de organização, os métodos, os objetivos foram-se modificando, à medida que
os sindicatos se iam mostrando capazes de vencer as primeiras resistências, de
conquistar a confiança dos trabalhadores e de se implantar solidamente na
sociedade” (http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1224161582B5aYZ8dg3Hs99DT2.pdf).
O
que diz a Bíblia?
Evidentemente que as
Escrituras Sagradas nada dizem sobre as greves, como as que conhecemos hoje.
Até porque nos tempos bíblicos não existia essas formas de organizações, que
são modernas. Os sindicatos nascem na primeira metade do século XIX, como
reação às precárias condições de
trabalho e remuneração a que
estão submetidos os trabalhadores no capitalismo. Porém, a Bíblia apresenta
princípios que devem nortear o comportamento dos cristãos. Vamos analisar
alguns textos comumente citados quando o assunto está em discussão, e que
supostamente poderiam nos dar alguma orientação.
Aqueles que são contra
a participação dos cristãos em movimentos paredistas são useiros e vezeiros das
célebres palavras de Jesus: “dai a César o que é de César e dai a Deus o
que é de Deus” (Lc 20:25). Indubitavelmente, quando Jesus profere estas
palavras está ensinando sobre a obediência civil. Que devemos pagar impostos,
obedecer as leis e respeitar as autoridades. Porém, penso que é possível o
cristão fazer greve dentro da lei, respeitando as autoridades.
É preciso lembrar que
greve é um direito constitucional do trabalhador. É legal. Na minha opinião, participar de uma
greve quando é permitida por lei é algo lícito ao cristão. Vejamos o que diz a
“lei da greve” ou LEI Nº 7.783, DE 28 DE JUNHO DE 1989.
• “Art. 1º É assegurado
o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade
de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
• Art. 2º Para os fins
desta Lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão
coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de
serviços a empregador.
• Art. 3º Frustrada a
negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é
facultada a cessação coletiva do trabalho.
Essa lei possui 19
artigos reguladores das greves, mas somente esses três já no servem como um
grande filtro de ética. Se a greve em questão não for pacífica nenhum cristão
deve participar. É crime segundo a lei brasileira e segundo a lei de Deus.
Segundo, se a greve começou sem nenhuma tentativa de resolução do problema por
vias normais nenhum cristão deve participar. A greve é um último recurso que
deve ser evitado, não um atalho para resolver logo qualquer tipo de problema.
Esta lei define também,
que: “Art. 6º. [...] § 1º Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados
e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias
fundamentais de outrem. [...] § 3º As manifestações e atos de persuasão
utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar
ameaça ou dano à propriedade ou pessoa”. Uma greve que não obedece a isso, além
do restante da lei e às decisões judiciais, seria ilegal ou abusiva, sendo, em
minha opinião, não conveniente a participação do cristão. Quando ocorrem atos
de violência e vandalismo os cristãos não devem fazer parte desses movimentos. O
crente adventista deve sempre tomar uma posição pacífica e estar pronto para
negociar. É importante evitar extremos e violência. A justiça é muito
importante, mas a paz também é. Jesus afirmou: “Bem-aventurados os pacificadores,
pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9, NVI).
A
atitude do cristão adventista durante uma greve vai
afetar seu testemunho. É preciso que ele saiba como defender sua posição sobre
a situação de uma forma moderada e sensata, sem insultar ninguém. Fora ou
dentro da greve, o cristão deverá ser “sal e luz” e manter sua fidelidade a
Cristo (Mt 5:13, 14).
Ademais, é preciso
analisar a justiça da greve. Se os
salários dos trabalhadores estão defasados e as condições de trabalhos são precárias,
o cristão pode participar de movimentos reivindicatórios. Quando cumpre a lei,
a causa é justa e outros métodos pacíficos falham, os cristãos podem, sim,
fazer greve. A greve é um recurso de
última instância que serve para corrigir abusos por parte do patronato. Os
trabalhadores só devem recorrer à greve quando não têm mais opções. A Bíblia
não condena a luta pacífica pela justiça. Se a greve é justa, o cristão não se
deve sentir culpado se participar. A greve é uma forma pacífica e legítima de
resolver injustiça. Muitas vezes os trabalhadores sentem dúvidas ou até mesmo
lesados em seus direitos, e quando isso acontece, o Sindicato o qual o
trabalhador pertence, poderá orientá-lo como exigir o cumprimento dos seus
direitos.
Os Sindicatos têm
condições de tentar a solução dos problemas através de negociação, denuncia a
Delegacia Regional do Trabalho, Procuradoria do trabalho se necessário, e em
última instância ingressar com ação na Justiça do Trabalho.
Por vezes permitir que
a injustiça continue causará mais problemas que uma greve. A greve prejudica o
patronato temporariamente para resolver uma situação de injustiça permanente. Por
exemplo, sem recurso a greve as mulheres nunca teriam conseguido o direito de
igualdade salarial. Às vezes não podemos ficar indiferentes. Se Martin Luther
King pensasse como muitos de nós, os negros americanos ainda estariam
segregados. Foi ao custos de muitas greves, boicotes e manifestações que a
América se dobrou às reivindicações daquele jovem pastor.Os cristãos adventistas
não somente podem participar de sindicatos como também de outros movimentos
sociais que luta pela justiça social, pelo direito à moradia, atendimento
médico-hospitalar público e de qualidade, a terra, pela preservação do meio
ambiente, entre outros. Reproduzo abaixo interessante trecho da Lição 5 da
Escola Sabatina, 3º Trimestre de 2019, edição do professor, que reforça o que
estamos afirmando:
“Às vezes os membros da
igreja evitam o envolvimento em protestos e na defesa de causas por medo de ser
vistos como muito políticos. Leia Jeremias 22:1-3, 13-17. Jeremias, outro
profeta envolvido na defesa de causas, intercedeu em favor dos oprimidos
perante os líderes do governo de sua época. A seguir, leia a citação de Jan
Paulsen e discuta suas implicações.
“Há uma grande
diferença entre procurar ser ouvido no discurso público e procurar exercer
poder político. Como igrejas e indivíduos, não só temos o direito, mas também a
obrigação de ser uma voz moral na sociedade, de falar com clareza e eloquência
sobre o que está relacionado aos nossos valores. Direitos humanos, liberdade
religiosa, saúde pública, pobreza e injustiça são algumas das áreas que temos a
responsabilidade dada por Deus de defender aqueles que não podem falar por si
mesmos” (Jan Paulsen, Serving Our World , Serving Our Lord” [Servindo ao Nosso
Mundo, Servindo ao Nosso Senhor], Adventist World, Edição da
DivisãoNorte-Americana, maio de 2007, p. 9, 10)”. (LES, p. 67, ed. Professor).
Um outro texto bíblico
bastante utilizado por aqueles que são contra a participação dos cristãos nos
sindicatos e nas greves, é Lucas 3:14: "Não pratiquem extorsão nem acusem
ninguém falsamente; contentem-se com o seu salário". E, então eles
concluem: os adventistas não devem participar de sindicatos e greves porque a
Bíblia diz que devemos nos conformar com nosso salário. Eles ignoram o fato de
que, quando João Batista falou aos soldados estas palavras estava advertindo
contra a extorsão que praticavam para ganhar mais dinheiro (“a ninguém trateis
mal nem defraudeis”). Portanto, não se trata de desqualificar a luta por
melhores salários ou condições dignas de trabalho. Se a partir disso
formularmos uma regra genérica de que “o cristão deve contentar-se com seu
salário”, o simples fato de mudar de emprego ou estudar para passar num
concurso para obter melhor remuneração já seria uma desobediência a Deus e,
portanto, pecado.
Um outro texto empregado
por aqueles que são contrários os cristãos participarem de sindicatos e greves,
é Romanos
13:1, onde Paulo exorta-nos a submeter-nos às autoridades constituídas.
Isso significa que devemos fazer o nosso
trabalho bem e respeitar nossos chefes. O cristão não é um desordeiro que gosta
de provocar confusão nem causar danos a outros. A ética normal de trabalho do
cristão promove sempre a excelência. Não significa isso que não temos que lutar
por melhores condições de salário e de trabalho. Por outro lado, a Bíblia diz
que devemos lutar pela causa dos oprimidos. “Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça,
acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva”
(Isaías 1:17, NVI). Cada cristão pode escolher se submeter a opressão
individual mas tem o dever de defender outros. Quando uma pessoa oprime outra,
quem tem poder para mudar a situação e não faz nada comete pecado (Tg 4:17).
Uma greve nunca é uma questão individual; trata de situações de injustiça
coletiva. Ao aderir a uma greve, o cristão adventista não está lutando apenas
por um direito particular, mas pela classe que representa. Portanto, ele luta
pelo bem comum.
Outro texto comumente
empregado por aqueles que são contrários aos sindicatos e suas ações é Efésios
6:5-8. O apóstolo Paulo afirma: “Vós, servos, obedecei a vossos senhores
segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a
Cristo”. Note que o apóstolo está falando sobre realizar um trabalho
honesto, e sobre não fingir que está trabalhando (“não servindo à vista”). Além
disso, a relação de trabalho do trecho citado é de escravidão, permitido pela
lei vigente. Não havia, entre os autores bíblicos, a intenção de incentivar
seus destinatários a se rebelar contra a lei (1Co 7.20-24).
Finalmente, concluo
retomando a questão do título do artigo: Pode um cristão adventista participar
de Sindicato e de greves? Diante do exposto afirmo que SIM! Contudo, acredito
que isso é uma questão de foro íntimo. Se o crente adventista sente-se
desconfortável em filiar-se a um sindicato de sua categoria e de participar de
greves, que não participe. Porém, se um outro percebe que sua participação não
afeta sua vida espiritual com Deus, obedecendo os critérios da justiça,
legalidade e do princípio da não violência, que participe. Cada um é livre para
participar ou não na constituição de um sindicato e dele se tornar sócio. Ambos
devem respeitar-se mutuamente.
Querido irmão, antes de
sair por aí condenando cristãos que aderem as greves, consideremos a
legitimidade de suas reivindicações. Como por exemplo, uma remumeração que lhes
permita oferecer conforto e dignidade à sua família. O Deus revelado nos
evangelhos está atento ao clamor dos trabalhadores! Ou não foi isso que Tiago
disse em sua epístola?
“Vede! O salário dos
trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude
está clamando. Os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor
Todo-poderoso.” Tiago 5:4
E como fazer vista
grossas às passagens abaixo?
“Não oprimirás o teu
próximo, nem o roubarás. O salário do operário não ficará em teu poder até o dia
seguinte.” Levítico 19:13.
“Não explorarás o
assalariado pobre e necessitado, seja ele teu irmão, seja ele estrangeiro que
mora na tua terra e nas tuas cidades.” Deuteronômio 24:14.
A respeito de Tiago 5;4 "Os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor Todo-poderoso.” É Deus quem resolve, com a sua justiça!! Espera no senhor e no mais ele fará!!
ResponderExcluirMaravilhoso e esclarecedor artigo! Deus lhe abençoe por tamanha sabedoria!
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