Marcos De Benedicto*
Como
decifrar a identidade do monstro imperial que perseguirá o povo de Deus no fim
dos tempos
Charles Dickens iniciou
seu romance histórico A Tale of Two Cities (Um conto de duas cidades, original
de 1859) com uma frase classificada entre as melhores aberturas de obras
literárias: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da
sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da fé, foi a época da incredulidade,
foi a estação da luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança,
foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante
de nós.”
O Apocalipse também
apresenta uma narrativa de duas cidades, mas não Londres e Paris, e sim
Babilônia e a Nova Jerusalém. A cidade de Deus e a cidade dos homens ou a
metrópole do Cordeiro e a capital do dragão expressam realidades opostas. E a
perspectiva do pior e do melhor dos tempos vai marcando nosso cotidiano, com o
destino dessas cidades sendo cada vez mais delineado no horizonte da história.
Ocorre que, no meio do
relato a respeito da cidade babilônica, surgem personagens estranhos, que têm
povoado a imaginação dos leitores e desafiado os neurônios dos estudiosos.
“João fica grandemente maravilhado pela meretriz, mas é a besta que lhe é
explicada. Talvez o ponto seja: para entender a meretriz, observe a besta”,
sugeriu John R. Yeatts (Revelation [Herald Press, 2003], p. 312). Ou, eu diria,
para entender a besta, observe a meretriz. Afinal, quem é a besta escarlate de
sete cabeças e dez chifres? Por que ela carrega uma mulher sedutora? Será
possível avançar na busca de consenso? Vamos ao estudo desse tema polêmico, que
voltou a ser discutido e precisa de alguns ajustes.
O
CONTEXTO
“Um dos sete anjos que
tinham as sete taças veio e falou comigo”, relata João de início (Ap 17:1). Mas
qual taça? A Bíblia de Estudo Andrews (CPB, 2015, p. 1671) sugere ser o anjo da
sexta taça (Ap 16:12), pois ele fala do secamento do rio Eufrates, enquanto o
ser angélico de Apocalipse 17 anuncia que a mulher está assentada sobre muitas
águas (17:1b, 15). Por outro lado, quando o sétimo anjo derrama sua taça, há um
forte terremoto e a grande cidade se divide em três partes. Então Deus Se
lembra de Babilônia (16:17-21), um julgamento que está no centro dos capítulos
17 e 18. Portanto, pode ser o anjo da sexta ou o da sétima praga. O fato é que
a visão retrata eventos que culminam as séries de sete.
Esse anjo passa a
descrever a mulher e a besta, comparando a mulher a uma “prostituta” (17:1b),
metáfora comum para indicar idolatria. Depois de misteriosas descrições e
digressões, a prostituta é identificada: “A mulher que você viu é a grande
cidade que domina sobre os reis da terra” (17:18). Se esse é o caso, por que
ele simplesmente não afirmou o óbvio? Por que empregar dois símbolos para
depois unificá-los? Nuances apocalípticas. Assim como a noiva de Cristo é uma
mulher pura e também uma cidade (a Nova Jerusalém), a amante de Satanás também
apresenta duas dimensões. Uma cidade não tem finalidade se não tiver população.
Por isso, o duplo simbolismo enriquece a descrição e acrescenta camadas de
significados. A mulher imoral de Apocalipse 17, com base em Ezequiel 16, entre
outros textos, está em contraste intencional com a mulher pura de Apocalipse 12
e 19.
Alguns defendem que
“Babilônia” é a Babilônia literal, outros dizem que se trata de um código para
Jerusalém, enquanto outros ainda aplicam o nome a Roma. Mas as coisas são mais
complexas. A Babilônia de Apocalipse é claramente simbólica. Ela começa com
Roma, porém transcende Roma. É uma instituição apostatada, um aglomerado de
religiões falsas, uma entidade escatológica que se opõe ao povo de Deus no fim
dos tempos, conceito entrelaçado com o tema do grande conflito. Babel no
início, Babilônia no meio, Babilônia mística no fim. “‘Babilônia’ no Apocalipse
é mais bem entendida como uma entidade que transcende a situação histórica
específica, seja a antiga Babilônia ou a Roma imperial”, afirma Sigve K.
Tonstad (Revelation [Baker Academic [2019], p. 243). Roma seguiu o padrão de
Babilônia, que prefigura a Babilônia final.
Babilônia é uma
ideologia do mal, o ponto de encontro dos falsos deuses, o parque de diversão
dos anjos das trevas, o bordel dos idólatras, o espaço em que os poderes do
mal, entre bebidas intoxicantes, tramam a destruição dos servos de Deus. Mais
do que o caos religioso, é a globalização do mal. Rival de Jerusalém, é a
capital do reino de Satanás, uma entidade que mistura falsos ensinos, engano, manipulação,
blasfêmia, exploração, opressão e derramamento de sangue. Porém, a cidade tem
face e identidade. A tradição protestante identificou Babilônia com o papado,
enquanto o adventismo seguiu essa interpretação e reconheceu uma esfera mais
ampla.
Ao falar de Babilônia,
o anjo de Apocalipse 17 introduz três dificuldades principais, que serão
discutidas: quem é a besta de sete cabeças que carrega a meretriz, quem é o
oitavo rei e qual é a referência temporal da visão (ou seja, João descreve os
eventos de Apocalipse 17 da perspectiva do 1º século ou de um tempo futuro?).
AS
PROPOSTAS
Há várias
interpretações para a besta escarlate de sete cabeças. Mencionarei aqui as
principais.
1. As cabeças da besta
representam figuras imperiais/reais. Para muitos intérpretes preteristas,
Jerusalém é a mulher/prostituta de Apocalipse 17. “Estou convencido além de
qualquer dúvida de que esta meretriz é a Jerusalém do 1º século”, afirmou
Kenneth L. Gentry (He Shall Have Dominion, 2ª ed. [Tyler, TX: Institute for
Christian Economics, 1997], p. 392). Assim, a besta seria Roma, que destruiu
Jerusalém no ano 70. Desde a antiguidade, Roma era amplamente considerada a
“cidade das sete colinas” (Cícero, Cartas a Ático 6.5; Plínio, História Natural
3.9.11; Estrabão, Geografia 5.3.7). Portanto, esses teólogos colocam o foco na
Roma imperial e identificam as cabeças com imperadores romanos do 1º século. O
mito de “Nero redivivo” ocupa um papel central no argumento, que não tem base
bíblica e já foi amplamente contestado. Entre os futuristas, alguns veem a
besta como o Império Romano revivido. Contudo, eles não conseguem articular
quem seriam os dez “reis”, pois estão no futuro.
No meio adventista,
desde que o Tratado de Latrão foi assinado e ratificado em 1929, reconhecendo a
Cidade do Vaticano como estado independente sob a soberania da Santa Sé, alguns
intérpretes populares têm especulado sobre a identificação dos papas
(monarcas/reis) com as sete cabeças. A partir de 1929, diz a teoria, surgiriam
sete pontífices. Quando o papa João Paulo II morreu, em 2005, as especulações
explodiram. Com a eleição de Bento XVI, o fim estava próximo de novo, uma vez
que ele seria o sétimo desde 1929. Com sua renúncia em 2013, os propagadores da
teoria readequaram o discurso, dizendo que Bento XVI é o papa que durou “pouco
tempo” (oito anos), cumprindo Apocalipse 17:10, se bem que João XXIII durou
menos tempo (quatro anos) e João Paulo I ainda menos (33 dias). Francisco seria
o oitavo, funcionando como uma extensão do sétimo.
Essa posição é
descartada por virtualmente a totalidade dos eruditos e teólogos adventistas
atuais, até porque ela não é historicista o suficiente, além de ser uma forma
disfarçada de marcar uma data para a volta de Jesus. Um dos argumentos
contrários é que a palavra oros em Apocalipse 17:9 significa “montanha”,
“monte”, e não mera “colina”. Assim, João estava falando de impérios, e não de
Roma e seus líderes. A própria expressão “cinco caíram” (17:10) combina mais
com reinos sequenciais do que com montes. Como explicar que as colinas de Roma
caíram uma após a outra? Na Bíblia, “montes” representam reinos/impérios (Jr
51:24, 25; Dn 2:34, 35, 44, 45), e não governantes individuais. João não se
limita à geografia; ele apresenta escatologia.
2. A besta de
Apocalipse 17 é a besta da terra. Tradicionalmente, os adventistas têm
interpretado a segunda besta de Apocalipse 13 como os Estados Unidos. Que essa
fera terá um papel importante no fim dos tempos, o Apocalipse deixa claro.
Porém, seria ela a besta escarlate de Apocalipse 17? Essa é a visão defendida,
entre outros, por Vanderlei Dorneles, que tratou do assunto em artigos e no
livro Pelo Sangue do Cordeiro (CPB, 2015). “Se a crise final é desencadeada
pelo surgimento da besta de dois chifres em Apocalipse 13, esse poder precisava
necessariamente estar representado no cenário da crise final, descrito em
Apocalipse 17”, ele pondera (p. 112). Essa besta seria também o oitavo rei.
“Uma vez que os Estados Unidos não são representados em Apocalipse 13 como uma
das sete cabeças da besta principal, mas como uma besta a mais, é também
natural que, em Apocalipse 17, esse poder fosse representado como um oitavo, ou
um rei acrescentado na sequência dos sete impérios anteriores” (p. 105).
A sugestão é bem-vinda
para enriquecer o debate, mas tem fragilidades. Primeiro, as duas bestas
possuem quantidades diferentes de chifres. A estrutura do simbolismo de poder
da besta de Apocalipse 17 (sete cabeças e dez chifres) segue o padrão da
primeira besta de Apocalipse 13, inspirada nas bestas de Daniel 7. Isso não se
aplica à besta de dois chifres de Apocalipse 13. Na verdade, Daniel deixa claro
que existem apenas quatro impérios globais na sequência profética, os quais se
situam na região do Mediterrâneo e estão em relação direta com o povo de Deus.
Roma é o último deles. Segundo, em nenhum lugar de Apocalipse 17 (ou mesmo 13)
é sugerido que a besta da terra terá esse protagonismo todo no fim. Ela é o
poder político-religioso que cria a imagem da besta do mar e exige a adoração a
ela. Terceiro, a besta da terra é representada no complexo literário de
Apocalipse 16–19 como o “falso profeta”. Em Apocalipse 16:12-14, aparecem três
entidades distintas: o dragão, a besta e o falso profeta. Ao comparar
Apocalipse 19:20 com Apocalipse 13:11-15, fica claro que a besta da terra e o
falso profeta são a mesma entidade. Por fim, as bestas do mar e da terra (uma
sob o simbolismo da besta escarlate e a outra sob o nome de falso profeta) têm
o mesmo destino, sendo lançadas simultaneamente no lago de fogo (19:20b).
Portanto, é muito pequena a chance de João ter identificado a besta de dois
chifres (os Estados Unidos) com a besta escarlate e o oitavo rei em Apocalipse
17.
3. A besta de
Apocalipse 17 é a besta do mar. A besta do mar em Apocalipse 13, uma fera
composta com traços de leão, urso e leopardo (13:2), é modelada a partir dos
animais de Daniel 7, que também surgem do mar (v. 2, 3). Esses monstros
híbridos violam os limites da ordem criada e funcionam como inimigos
perseguidores do povo de Deus. “Quando você examina cuidadosamente essa visão”,
nota Jon Paulien, “percebe que as quatro bestas de Daniel 7 totalizam sete
cabeças e dez chifres!” (Armageddon at the Door [Autumn House, 2008], p. 210).
Segundo Ellen White, essa besta simboliza, “inquestionavelmente”, o papado (O
Grande Conflito, p. 439). Mas seria a besta de Apocalipse 17?
Uma besta apocalíptica
consiste no poder religioso controlando o poder civil para alcançar seus
próprios objetivos e usando a máquina estatal para restringir a liberdade e
perseguir os “dissidentes” que preferem seguir a lei divina. Em Apocalipse 13,
esses dois aspectos estão unificados em uma só entidade (o papado, que detinha
o poder religioso e o secular), enquanto em Apocalipse 17 eles aparecem
separados, uma vez que a configuração final não será uma réplica fiel da
estrutura medieval. Há uma pequena diferença na “formatação” da besta.
Portanto, é essencial manter a distinção entre a “mulher” (sistema religioso) e
a “besta” (poder civil controlado pelo sistema religioso). Os dois símbolos
estão interligados, mas pertencem a campos diferentes e têm vida própria.
Há vários indícios que
favorecem a identificação da “besta do mar” de Apocalipse 13 com a “besta do
abismo” de Apocalipse 17. Para começar, a origem das duas parece ser a mesma,
já que a palavra “abismo” pode simplesmente indicar a profundidade dos oceanos
(Ap 13:1a; 17:8a). Em segundo lugar, as duas bestas têm sete cabeças e dez
chifres (Ap 13:1; 17:3), um elemento identificador importante. Terceiro, a
besta do mar foi ferida de morte e curada, enquanto a besta do abismo “era e
não é mais, e está para emergir”, o que sugere um paralelismo relacionado ao
período de inatividade/atividade como entidade perseguidora (13:3a; 17:8a).
Quarto, “toda a terra se maravilhou” ao ver a besta do mar depois de sua ferida
mortal ter sido curada, e igualmente os que “habitam sobre a terra” “se
admirarão” ao ver “a besta que era e não é mais, mas tornará a aparecer” (13:3,
8; 17:8). Note que a última parte de 17:8 é basicamente uma repetição de 13:8,
o que solidifica a relação entre essas bestas. Quinto, o dragão deu à besta do
mar “o seu poder, o seu trono e grande autoridade”, ao passo que os “reis”
oferecem à besta do abismo “o poder e a autoridade que possuem” (13:2b; 17:13).
Sexto, ambas as bestas proferem arrogâncias e blasfêmias (13:5, 6; 17:3).
Sétimo, uma besta vem da água (mar) e a outra carrega uma mulher sentada sobre
as águas/povos (13:1a; 17:1b, 15). Por fim, a besta do mar persegue os santos,
enquanto a besta do abismo carrega uma mulher “embriagada com o sangue dos
santos” (13:7a; 17:6).
Existem outros
paralelos e conexões, como o motivo do vinho de Babilônia, a queda dessa grande
cidade e sua punição no fogo em ambos os contextos (14:8-11; 18:2, 3, 8, 9),
mas os argumentos listados são suficientes. Há também diferenças, porém elas
são menores. Em Apocalipse 17, por exemplo, os dez chifres não têm
diademas/coroas, ao contrário do que ocorre no capítulo 13. Isso pode
simplesmente indicar que a natureza do poder representado pelos chifres nesse
momento é diferente da fase anterior ou que a sua autoridade foi retirada. Para
Hans LaRondelle, os chifres com diademas representam as monarquias europeias do
período medieval, enquanto os chifres sem coroas simbolizam as democracias que
apoiarão a besta no fim (How to Understand the End-Time Prophecies of de Bible
[First Impressions, 1997], p. 412). Por sua vez, a besta de Apocalipse 17 é
escarlate, enquanto a cor da besta do mar em Apocalipse 13 não é mencionada.
Mas a intenção pode ser associar a besta escarlate mais intimamente com o
dragão.
4. A besta de
Apocalipse 17 é o próprio Satanás. Essa ideia tem sido ventilada desde o início
do século 20, mas ganhou força recentemente. Na época, o teólogo alemão Ernst
Lohmeyer sinalizou que ainda não havia sido demonstrado que a besta que “era e
não é mais”, “está para emergir do abismo” e “caminha para a destruição” deva
ser entendida no sentido histórico. “Essas são expressões míticas relacionadas
a um poder demoníaco que odeia Deus”, escreveu (Die Offenbarung des Johannes
[J. C. B. Mohr, 1926], p. 142). Outros defenderam ideias parecidas. Para Robert
L. Thomas, “cada cabeça da besta é uma encarnação parcial do poder satânico que
reina por determinado período, de modo que a besta pode existir na Terra sem
interrupção na forma de sete reinos consecutivos” (Revelation 8–22 [Moody
Press, 1995], p. 292).
Entre os adventistas,
Edwin Reynolds argumentou num artigo em 2003 que a besta escarlate é o próprio
diabo. “Há somente uma besta que vai para o abismo no Apocalipse e dele sai
novamente. É o dragão, descrito em 20:2 e 3 como estando preso no abismo por
mil anos, então sendo solto por um pequeno período antes de ir para o lago de
fogo”, escreveu (“The Seven-Headed Beast of Revelation 17”, Asia Adventist
Seminary Studies 6 [2003], p. 101). Portanto, o teólogo associou a fase de
inatividade do diabo (o período em que a besta “não é”) ao milênio (Ap 20). A
volta de Satanás do abismo “é como o retorno dos mortos” (p. 103). Para
Reynolds, a besta do mar é a sexta cabeça, enquanto a besta da terra,
paradoxalmente, seria a sétima (p. 105, 106).
Em 2007, Ekkehardt
Mueller, teólogo do Instituto de Pesquisa Bíblica da sede mundial da igreja,
ampliou a análise e concluiu que, no Apocalipse, o abismo é o lugar da
habitação dos demônios e está ligado com Satanás. “Portanto, a besta sobre a
qual Babilônia se assenta, ou seja, a besta de Apocalipse 17, que está
associada com o abismo e difere da besta do mar em Apocalipse 13, é mais bem
compreendida como sendo Satanás, que opera por meio de poderes políticos” (“The
Beast of Revelation 17: A Suggestion (Part I)”, Journal of Asia Adventist
Seminary 10/1 [2007], p. 50). Na parte 2 do artigo, ele também defende que a
fase “não é” da besta (Satanás, na visão dele) corresponde ao período da prisão
do diabo durante o milênio (Journal of Asia Adventist Seminary 10/2 [2007], p.
157).
Satanás é o poder por
trás das ações da besta. Porém, nos momentos críticos, a interação entre eles
se acentua e suas ações se confundem. A besta usa o template do diabo, que usa
a estrutura da besta. Há uma fluidez nos símbolos, mas sem suprimir a
identidade
Essa interpretação tem
méritos e será utilizada na síntese a seguir, mas simplesmente igualar a besta
com Satanás é desconsiderar os fatos bíblicos. Primeiro, em nenhum lugar do
Apocalipse o dragão (drakon) é chamado de besta (therion), embora um dragão ou
serpente seja um animal/besta. Segundo, enquanto o dragão vem inicialmente do
Céu (Ap 12:7-10), a besta escarlate surge do abismo (17:8), termo que em muitos
casos no Antigo Testamento está associado com água (Gn 1:2). De fato, no
Apocalipse o abismo é o reino satânico, mas nem tudo o que vem do abismo é
Satanás em pessoa. Terceiro, a cor escarlate da besta não significa identidade
com o dragão, mas apenas afinidade, uma vez que a mulher também usa roupa
escarlate e não é o dragão. Nesse estágio, vemos um alinhamento: a prostituta,
a besta e o dragão compartilham a mesma cor (12:3; 17:3; 17:4). As identidades
deles quase se confundem, mas não chegam a esse ponto. Quarto, a mulher está
simbolicamente montada na besta (17:3), uma posição de domínio e controle, o
que não faria sentido se a besta fosse Satanás. Quinto, o fato de o dragão e a
besta escarlate terem o mesmo número de cabeças e chifres (12:3; 17:3) não
significa que os dois sejam a mesma entidade, pois a besta do mar também tem
“dez chifres e sete cabeças” (13:1) e obviamente ela e o dragão são coisas
distintas. Sexto, com base na frase “era e não é mais” (17:8), alguns acham que
a besta em Apocalipse 17 seja uma paródia do Pai, “que é, que era e que há de
vir” (1:4, 8; 4:8). Porém, conceitualmente, a paródia mais apropriada é com o
Cordeiro, que foi morto, mas voltou a viver (1:18), fato aplicável à besta do
mar, que “foi ferida à espada e sobreviveu” (13:14). Afinal, na estrutura do
Apocalipse, o dragão parodia o Pai, a besta do mar imita o Filho e a besta da
terra (o falso profeta) simula o Espírito Santo. Paródia é a “ferramenta
perfeita” para desmascarar a pretensão e revelar o engano, nota Greg Carey
(Elusive Apocalypse [Mercer University Press, 1999], p. 154). Além disso, os
chifres/reinos oferecem sua autoridade à besta (17:13), o que seria estranho se
ela fosse o diabo.
Finalmente, mas sem
esgotar os argumentos, enquanto a besta e o falso profeta são lançados no lago
de fogo por ocasião da volta de Cristo (19:20), o diabo é preso nessa ocasião,
mas somente é lançado no lago de fogo depois do milênio (20:1-3). Para não
deixar dúvida, o texto diz que, após os mil anos (20:7), Satanás “foi lançado
no lago de fogo e enxofre, onde já se encontram a besta e o falso profeta”
(20:10). Se a besta e o falso profeta (a besta da terra) já estavam lá, então o
diabo não é a besta. A besta surge do abismo quase no momento em que o diabo
está sendo confinado no abismo. A destruição dela é importante na estrutura
literária, mas não é o clímax do enredo. Num livro ou filme, primeiro você
destrói os personagens secundários, depois coloca os protagonistas cara a cara.
Logo, igualar a besta com o diabo é errar por mil anos!
O diabo é muita coisa,
inclusive o “protótipo” das bestas, mas não é a besta escarlate. O próprio
Reynolds reconhece corretamente que o monstro que aparece em 13:1-10; 14:9, 11;
15:2; 16:2, 10, 13; 19:19, 20; e 20:4 e 10 “é consistentemente a besta do mar,
conforme os respectivos contextos indicam” (Asia Adventist Seminary Studies 6
[2003], p. 101). Por que então a besta do abismo de Apocalipse 17 também não
seria a besta do mar de Apocalipse 13? A origem abissal pode funcionar apenas
como um adjetivo para qualificar a origem diabólica da entidade, sua ligação
íntima com o diabo e sua disposição de cumprir o propósito dele.
O
TEMPO
Se identificar a besta
de Apocalipse 17 é difícil, estabelecer o tempo de sua atuação não é menos
complicado. O que as cabeças representam e quando elas atuam? Em 17:8-14, o
anjo transmite várias informações: (1) “a besta que você viu era e não é mais,
e está para emergir do abismo, e caminha para a destruição”; (2) “as sete
cabeças são sete montes” e “também sete reis”; (3) “cinco caíram, um existe e o
outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco tempo”; (4) “a
besta, que era e não é mais, é também o oitavo rei, mas faz parte dos sete”;
(5) os “dez chifres que você viu são dez reis, que ainda não receberam reino”;
(6) eles “oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem”; e (7) “lutarão
contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá”.
Entre os historicistas
há duas linhas principais de interpretação: uma começa com o Egito, um dos
grandes impérios globais que perseguiram o povo de Deus ao longo da história; a
outra começa com Babilônia, que é o ponto de partida das profecias de Daniel e
que serve de base para essa parte do Apocalipse. As duas interpretações são
possíveis, e os intérpretes adventistas estão divididos (veja o quadro). A
primeira é mais simples, mas depende de raciocínio dedutivo e de inferências,
embora João fale do Egito no contexto das pragas (Ap 16) e Isaías (30:6) chame
o Egito de “Besta do Sul”. A segunda é mais complexa, mas tem base textual
sólida.
A informação de que “um
existe” (agora, o tempo presente) se refere (1) ao tempo de João, (2) ao
período da ferida mortal ou (3) ao julgamento da meretriz no fim dos tempos?
Jon Paulien acredita que o “agora” deve ser visto a partir da perspectiva de
João. Ele se apoia em dois princípios: (1) Deus encontra os profetas onde eles
estão, no seu tempo e em suas circunstâncias; e (2) durante a visão
apocalíptica, o profeta pode navegar no espaço para qualquer parte do Universo
e no tempo para qualquer época, mas a interpretação da cena sempre vem no
tempo, no lugar e nas circunstâncias do vidente (Armageddon at the Door, p.
214).
Por outro lado, Hans
LaRondelle ressalta que é importante coordenar as três fases da besta (era, não
é e virá); “portanto, é mais razoável adotar o ponto de vista escatológico
apresentado pelo próprio anjo” (How to Understand the End-Time Prophecies of
the Bible, p. 411). Para o teólogo, a besta na fase “era” representa a
perseguição, ao passo que a fase “não é” simboliza o período sem perseguição,
pois foi ferida (p. 412). Tonstad chama essas fases de “presença, então
ausência, então presença”, mas prefere aplicá-las ao período em que o dragão
delega seu poder para a besta do mar, desaparece, depois volta (Revelation, p.
246). Contudo, diz ele, Satanás nunca fica sem representação no mundo, mesmo na
fase “não é”. “A linguagem descreve ausência, mas ausência não significa
inexistência” (p. 250).
As duas perspectivas (a
partir do Egito ou de Babilônia) são defensáveis, mas a segunda leva vantagem.
Primeiro, o anjo transporta João “em espírito” para o deserto a fim de mostrar
o julgamento da meretriz. Se ele é transportado a outra dimensão do espaço, o
mesmo princípio vale para o tempo. Segundo, a estrutura profética/escatológica
do Apocalipse trabalha com a moldura dos reinos de Daniel 7, que se iniciam com
Babilônia. Considerando que Apocalipse 17 fala da Babilônia mística, faz mais
sentido começar com Babilônia, até pelo motivo das “águas”, o qual está
relacionado com a queda desse império. Terceiro, João viu então uma “mulher
embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus”
(17:6). No 1o século, se pensarmos nos 1.260 de perseguição, isso ainda não
havia acontecido. Quarto, o anjo informou que, nesse momento, a besta “era e
não é mais” (17:8) e cinco das sete cabeças haviam caído. Isso não poderia se
aplicar ao Império Romano do 1o século, que ainda existia. Quinto, nessa fase,
a mulher estava “sentada” sobre a besta (17:9), o que não poderia se aplicar à
relação igreja/império no 1o século. Sexto, a informação sobre o “oitavo rei”
que caminha para a destruição rápida (17:11) e sobre os dez reis (chifres) que
ainda não tinham recebido reino e ofereceriam seu poder para a besta (17:12,
13) faz mais sentido no contexto do fim. Além disso, a besta e seus aliados
fazem guerra contra o Cordeiro (17:14), o que indica um horizonte relacionado à
volta de Jesus.
Por esses e outros
motivos, tecnicamente é preferível o ponto de vista que enfatiza o julgamento
da meretriz no tempo do fim. No entanto, a perspectiva adotada, desde que siga
a interpretação historicista, não altera muito o resultado.
A
SÍNTESE
A esta altura, você
pode estar se perguntando: afinal, a besta escarlate de Apocalipse 17 deve ser
identificada com o Império Romano, a besta da terra (Estados Unidos), a besta
do mar (Roma papal), Satanás ou outra coisa? A resposta curta é: a besta
escarlate do abismo é a besta do mar em sua fase recuperada da ferida mortal,
que liderará uma confederação global com a ajuda da besta da terra e levará o
mundo a um tempo de crise sem paralelo, culminando com um breve domínio do
próprio Satanás personificado como Cristo. O dragão já estava presente por meio
das cabeças, mas então se manifestará como um “oitavo” poder que, quebrando as regras
da matemática, misteriosamente faz parte dos sete. No original, a palavra “rei”
não ocorre depois de “oitavo” (ogdoos) em 17:11, tampouco aparece o artigo
definido. Isso sugere que o numeral ordinal “oitavo”, um adjetivo masculino,
embora relacionado com as cabeças, pertence a outra categoria. Pode ser uma
referência ao diabo, que sintetiza e encarna a besta em si. Por ser a soma de
tudo, ele é e não é um integrante do G7.
Exegeticamente, a ideia
de que a besta do abismo seja a besta do mar em sua fase da ferida mortal
curada é bem sólida. As inovações interpretativas mais recentes contribuíram
com novos ângulos, mas esbarram nas informações do próprio texto bíblico. O
Comentário Bíblico Adventista (CPB, 2015, v. 7, p. 943, 944), embora reconheça
que a besta de Apocalipse 17 possua semelhanças com o dragão vermelho (Ap 12),
sinaliza que ela tem mais afinidade com a besta do mar (Ap 13). O total de
cabeças (sete) e chifres (dez) que caracteriza o dragão, a besta do mar e a
besta do abismo estabelece uma conexão entre essas entidades que não pode ser
desconsiderada.
Em todo o Apocalipse
existem somente sete cabeças. Segundo Paulien, “a besta simboliza a
confederação mundial de poder civil e secular” e “a imagem da besta de sete
cabeças representa uma besta que vive, morre e ressurge sete ou oito vezes”
(Armageddon at the Door, p. 136, 211). Por isso, a ênfase está na sétima
cabeça, que volta do abismo. Esse aparecimento é descrito em 17:8 pelo verbo
parestai, relacionado à palavra parousia, termo comum para a volta de Cristo
(1Co 15:23, 1Ts 2:19, 1Jo 2:28, etc.). É como se o diabo ressurgisse na figura
da besta para, finalmente, se apresentar como o falso Cristo.
Satanás é o poder por
trás das ações da besta, controlando uma cabeça de cada vez. Porém, nos momentos
críticos, a interação entre eles se acentua e suas ações se confundem. A besta
usa o template do diabo, que usa a estrutura da besta. Há uma fluidez nos
símbolos, sem suprimir a identidade. Além disso, assim como Satanás age por
meio da besta, a besta atua por meio de seus chifres. Vou exemplificar.
Os oráculos contra
Babilônia em Isaías 14 e contra Tiro em Ezequiel 28 começam falando dos reis
dessas cidades, mas logo fica evidente que se referem a um ser sobrenatural
(Lúcifer). É como se essas cidades fossem uma expressão direta do ser e do
comportamento do diabo. Assim como Jesus é a personificação do reino de Deus,
Satanás é a personificação do reino do mal, e os poderes imperiais são uma
expressão de seu domínio.
Em Apocalipse 12, o
capítulo central sobre o dragão e o conflito cósmico, vemos Satanás usando a
potência romana como seu instrumento e quase se confundindo com ela. A
tentativa inicial de matar o “Filho” da mulher em Apocalipse 12 se deu por meio
de Herodes e a morte Dele ocorreu na jurisdição de Pilatos, representante do
aparato romano. Por isso, ao falar sobre a “cadeia de profecias” que se inicia
em Apocalipse 12, destacando a ação de Satanás por meio de seus agentes na
época, Ellen White reconhece: “Assim, embora o dragão represente primeiramente
Satanás, é também, em sentido secundário, símbolo de Roma pagã” (O Grande
Conflito, p. 438). O mesmo princípio vale para o dragão e a besta em Apocalipse
17, apenas em ordem inversa: a besta escarlate representa primeiramente o
aparato político-militar que carrega a mulher, mas, em sentido secundário,
simboliza também Satanás.
Ellen White identifica
a “besta que surge do abismo” e faz guerra contra as duas testemunhas (Ap 11:7)
como sendo a Françaateísta, pervertida e sanguinária do período da Revolução
Francesa (1789-1799). Entretanto, ela destaca a participação direta de Satanás:
“Em muitas das nações da Europa os poderes que governaram na Igreja e no Estado
foram durante séculos dirigidos por Satanás, por intermédio do papado. Aqui,
porém, se faz referência a uma nova manifestação do poder satânico” (O Grande
Conflito, p. 268). Logo à frente, no contexto do genocídio da noite de São
Bartolomeu, em 1572, ela comenta que Satanás foi “o chefe invisível de seus
súditos na horrível obra de multiplicar os mártires” (p. 272). Isso fornece uma
lógica para dizer que, em momentos extremos de caos e perseguição, Satanás e a
besta instrumentalizada por ele se confundem, mas sem perder a identidade.
É bom frisar que a
besta do abismo que atuou na Revolução Francesa não era outra besta na
sequência profética, mas uma extensão da besta romana/papal. O ataque de Paris
a Roma, que depois acabaram se tornando cidades-irmãs, foi uma espécie de
ferimento autoinfligido, numa prefiguração da destruição que a prostituta de
Apocalipse 17 sofrerá pelos próprios apoiadores!
O texto mais explícito
sobre a simbiose entre Satanás e as entidades que promovem sua agenda está em
Apocalipse 13. Quando o dragão se põe “em pé sobre a areia do mar” (12:18),
surge em seguida a besta do mar (13:1), parecida com ele. Simbolicamente, a
besta senta-se no trono do dragão e age como se fosse ele, fazendo “toda a
terra” se maravilhar (v. 3). Aqui o dragão e a besta, embora distintos, se
identificam de tal maneira que se tornam objetos de adoração (v. 4).
Note que a besta da
terra também fala como o dragão (v. 11). No caso da “besta francesa”, um antigo
aliado se tornou inimigo de Roma e causou a ferida de morte, em 1798, ao
destituir o papa; no caso da “besta norte-americana”, que se expandiu na mesma
época, um tradicional inimigo de Roma se tornará aliado e causará a cura.
Por tudo isso,
minimizar o papel da besta do mar em Apocalipse 17, apesar de sua ressurreição
em Apocalipse 13 e de toda sua relevância na polarização final sobre adoração,
seria deixar um personagem quase central sem desfecho, o que não acontece.
Literariamente, João destrói a prostituta (17:16), fazendo um forte caso
jurídico contra Babilônia e um longo lamento por sua queda (18, 19), e depois
mata a própria besta (19:20). A morte do dragão só ocorre depois do milênio
(20:2, 3, 10), o que inviabiliza cronologicamente a proposta de Reynolds e
Mueller de equiparar a fase “não é” com o milênio.
Portanto, a besta
escarlate de Apocalipse 17 é a nova manifestação da besta do mar de Apocalipse
13 que foi ferida e reviveu, e dessa vez encarnando ainda mais a crueldade do
dragão. Trata-se de um retorno espetacular que deixará as pessoas admiradas ou
deslumbradas (17:8). Em síntese, a besta de sete cabeças é a expressão fiel do
dragão, mas não é o dragão. No ataque final contra Deus e Seu povo, essa besta
contará com a ajuda da besta da terra e de uma confederação de aliados. Como
diz uma nota na Bíblia de Estudo Andrews (p. 1671), a besta escarlate
“representa o poder político do mundo inteiro apoiando a Babilônia do fim do
tempo”. Os dez reis/reinos, número literal (dez nações ou entidades, com seu
epicentro na Europa, território do Império Romano original) ou simbólico (uma
confederação mundial, incluindo a virtual totalidade das nações), exercerão seu
poder num momento decisivo da história. Instrumentalizados por Satanás, serão
seus agentes e extensões do seu domínio. Mas por um curto período.
No fim, as coisas
mudam. Sentindo-se enganados, sem proteção contra as pragas, os reinos (poder
político-militar) destroem a “mulher” (sistema religioso) a quem haviam apoiado
(17:16). E aqui a imagem do casamento é retomada. Enquanto o Cordeiro celebra
as bodas com Sua linda noiva vestida com “linho finíssimo” e a protege (19:8),
a besta e seus mínions destroem a prostituta, a deixam nua, servem sua carne e
a queimam no fogo (17:16), sem que o dragão defenda sua amante. No reino do
dragão, a infidelidade é norma.
Quando esse sistema
religioso for destruído, Satanás assumirá a identidade de Cristo e se
manifestará como a personificação Dele (2Ts 2:3-10; O Grande Conflito, p. 624).
Mas isso não torna o diabo em si a besta escarlate, a estrutura humana que
possibilitará seu domínio sobre o planeta por um curto período antes da volta
de Jesus. Contra o dragão infiel e mentiroso, apoiado por sua monstruosa besta
escarlate, o Cavaleiro Fiel e Verdadeiro, em Seu cavalo branco, guerreia com
justiça e protege o reino (Ap 19:11).
O Apocalipse não é
apenas uma obra-prima literária polissêmica, política ou anti-imperial, mas uma
metanarrativa escatológica. Mais que um épico, é a história de uma guerra
cósmica que envolve dragão, noivas, cidades e reinos. E, como em toda boa
história, o clímax fica para o fim. Primeiro, o Noivo enfrenta a rainha má e
destrói seu domínio; em seguida, prende o desafiante para destruí-lo mil anos
depois. A questão é se estaremos do lado do Herói ou do vilão.
*MARCOS
DE BENEDICTO, pastor e doutor em Ministério, é editor
da Revista Adventista.
Fonte:
Revista Adventista, outubro de 2020, p. 12-18.
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