Teologia

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

BREVE ANÁLISE DO DISCURSO CONTROVERSO DO DR. RODRIGO SILVA


 Ricardo André

No dia 10 do corrente, a Igreja Adventista do Unasp, São Paulo, realizou um interessante evento denominado “Maratona Espiritual ‘Adventismo em Tempos Líquidos’", onde vários preletores discorreram em mais de seis horas de programação acerca das diversas mudanças sociais e morais ocorridas na sociedade pós-moderna e como tais mudanças estão afetando a Igreja Adventista do Sétimo ameaçando sua identidade. Muitas coisas ditas pelos expositores foram interessantes e relevantes, muitas outras nem tanto, não passaram de ideias obtusas e obscuras. Dentre elas, uma encontra-se em parte do discurso do Dr. Rodrigo Silva, e que chamou-nos a atenção pela flagrante distorções cometidas por ele. Como cristão, comprometido com a verdade, e como não compactuo com a falsidade, senti-me impelido a “colocar os pingos nos is”.

Em um momento de sua palestra, Silva utiliza-se de uma citação do livro Modernidade Líquida, do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman para em seguida engendrar uma intricada ideia de que Bauman estava revelando o plano comunista de liquidar aquilo que era sólido na sociedade, a exemplo da família, e profanar o que era sagrado. Antes de passarmos aos fatos e a análise do discurso do Dr. Silva, transcrevemos o trecho da obra de Bauman, e depois a conclusão do Dr. Silva.

“[...] E isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação” (p. 9).

Agora observe a interpretação grosseira e falaciosa que Silva faz do texto:

“Noutras palavras, Bauman comunista, agnóstico, ele não é evangelista da TV Novo Tempo, nem distrital da Paulista Sul. Bauman falou que a modernidade líquida estava dentro dos planos já expostos no Manifesto Comunista, que sabiam que a única forma de implantar o comunismo, que ia colocar o marxismo em todo o mundo era tornar líquidos os sólidos, profanar o sagrado. Então, quando você diz: “a igreja tem que entender que tomar a causa da mulher, do negro e do homossexual não é marxismo”. Leiam Bauman. Na forma como está sendo colocada é marxismo. Ponto! É marxismo! Eu não concordo com aquele filósofo do presidente lá, o Olavo de Carvalho. Muitas coisas que ele fala é muito arrogante. [...] Eu discordo de Olavo de Carvalho em muitos pontos, mas a expressão “marxismo cultural ela tem fundamentação teórica, sim, senhor! Está ali. Estude isso. E a igreja está atenta para isso, para não perder a sua identidade”.

Causa-nos estupefação tamanha falta de lealdade de Silva ao sentido real do pensamento de Bauman. Ele o distorce completamente, na vã tentativa de provar a sua obscura crença conspiracionista de um plano maquiavélico dos comunistas de dominação a partir da destruição dos valores judaico-cristãos que marcam as sociedades ocidentais, denominado de “marxismo cultural”. Custa-nos acreditar que um doutor e pastor adventista acredite em teoria da conspiração e a dissemine.

Não é verdade que Bauman ao falar da modernidade líquida estivesse falando dessa suposta conspiração comunista. Isso é uma interpretação forçada do Rodrigo Silva. É constrangedor ter que lembrar ao doutor que, ao analisar um texto deve-se levar em consideração que existem princípios que regem sua correta análise e compreensão. E, um desses princípios é levar em consideração o contexto. Não há nada no trecho tampouco no seu contexto que sugere esse conspiracionismo. Isso é fantasia delirante do doutor! Infelizmente, essa teoria da conspiração tornou-se uma paranoia entre alguns pastores e seus seguidores, que veem comunismo em tudo. A luta por igualdade racial e de gênero é denunciado por eles como sendo influência do marxismo cultural. Desempregados, sem-terra, sem teto e luta por necessidade básicas da vida dentro do capitalismo são vistos como parte do grande complô comunista. Eles veem o comunismo a cada esquina. Falta pouco para eles gritarem de pavor: “Corram, os comunistas estão chegando!”

É de Dom Helder Câmara a melhor síntese dessa prática: “Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”.

Se for pela "lógica" dos pastores olavistas, Ellen G. White seria comunista, pois apontou a exploração dos ricos sobre os pobres como causa da pobreza. Ela afirmou: "Grande parte do dinheiro que assim [os ricos] empregavam havia sido alcançado por extorsões, oprimindo os pobres. [...] Por meio de toda espécie de opressão e extorsão, acumulam os homens fortunas colossais, enquanto sobem para Deus os clamores da humanidade faminta". Peguntamos ao Dr. Silva: Ellen White era marxista por denunciar como ofensivo a Deus a exploração capitalista?

O sentido verdadeiro do pensamento de Bauman

Se não há indício no texto de Bauman de dominação cultural pelos comunistas, então, o que ele queria dizer com a expressão “derreter os sólidos”? Antes de discutirmos o significado da expressão, é importante destacar que, as palavras “comunismo”, “socialismo” e “marxismo” sequer aparece no texto apontado, e isso é muito relevante. Toda pessoa que ler a obra Modernidade Líquida perceberá que o assunto que Bauman focaliza ali é o estágio atual da sociedade denominado por ele de “modernidade líquida” marcada pela inconsistência e instabilidade das relações humanas e a vida em conjunto (como as relações familiares, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante).

Essa ideia é confirmada pelo artigo de Rafael Bianchi Silva, Jéssica Paula Mendes e Rosieli dos Santos Lopes Alves que fizeram uma importante análise acerca do conceito de líquido em Bauman. Eles escreveram: “O autor postula que derreter sólidos, está intimamente relacionado com a possibilidade de operar livremente com a racionalidade, ou seja, libertar-se dos grilhões de sociedade clássica alicerçada nas tradições, crenças e instituições que determinassem padrões rígidos de conduta e pensamento. Assim, a modernidade significa o fim da crença, em uma ordem revelada e mantida por Deus, sendo que a evolução humana encontra-se no mundo por conta própria e sem amarras. Porém, ao realizar essa operação, o homem moderno passa a estar sozinho na construção de sua própria vida e da configuração do mundo a sua volta. Para além desse ponto, o derretimento de sólidos relaciona-se com a aplicação da racionalidade na vida cotidiana de forma a potencializar efeitos positivos em prol de possíveis consequências indesejadas. Ao colocar esse projeto em funcionamento, o homem defronta-se com uma realidade que se mostra sem a planificação social que as instituições tradicionais de certa forma garantiam. “Por isso mesmo essa forma de ‘derreter os sólidos’ deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar – nu, desprotegido, desarmado e exposto, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade” (Bauman, 2000/2001, p.10). (O conceito de líquido em Zygmunt Bauman: contemporaneidade e produção de subjetividade. Revista Athenea Digital (UEM), p. 251, 252).

Como se vê, os autores supracitados reduzem a pó a interpretação desonesta do Dr. Silva. Eles nada falam de conspiracionismo. E agora, dever-se-ia dizer, em parte alguma de sua obra Bauman assevera que o derretimento dos sólidos na modernidade líquida é causado pelos comunistas infiltrados nas instituições da sociedade operando as mudanças dos valores e da cultura, fragilizando as instituições tradicionais, criando assim, as condições para a implantação do comunismo no Ocidente, como é compreendido a teoria do marxismo cultural. Nada, absolutamente no texto de Bauman prova esse conspiracionismo. O nosso zelo pela verdade nos leva a afirmar: Isso é invencionice de Silva e o grupo de pastores olavistas da igreja. Por conta dessa “bola fora”, ele deveria se limitar às funções que ele desempenha muito bem, que é de teólogo e arqueólogo.

O significado do pensamento de Marx

Na realidade, Bauman se utiliza de um pensamento de Marx presente no Manifesto Comunista para desenvolver seu conceito de modernidade líquida, a qual reproduzimos abaixo.

“A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A contínua revolução da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com o seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas. A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela tem de alojar-se por toda parte, estabelecer-se por toda parte, construir vínculos por toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia configurou de maneira cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. [...]” (Manifesto do Partido Comunista. 2ª ed. São Paulo, SP: Martin Claret Ltda, 2010, p. 48, 49).

De uma simples leitura desse texto percebe-se claramente que Marx destaca que na sociedade capitalista moderna, “tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado” não representa uma ação dos marxistas, mas da burguesia como sujeito dominante. Bárbara Fernandes resenhando a obra “Tudo que é solido desmancha no ar (1982), do escritor e filósofo estadunidense marxista Marshall Berman, afirma:

“É nesse cenário criado pela burguesia que Marx discorre sobre a frase que origina o título do livro de Berman, dentro da lógica capitalista burguesa a produção é sempre renovada e revolucionada, tudo que é sólido e material, como os produtos manufaturados, as máquinas das indústrias, as casas dos trabalhadores, existem para deixarem de existir depois, isto é, para depois serem refeitos e ad infinitum sob formas cada vez mais lucrativas. Se é possível fazer uma comparação a contemporaneidade essa lógica se encaixa muito bem com o investimento feito em países pós-guerra, todos os bens materiais que ali existiam deixaram de existir, dessa forma o mercado passa a ser um ótimo meio de investimento comercial de produtos bens secundários, ainda, se é permitido uma analogia, é dentro dessa lógica que os Estados Unidos engrandeceu sua economia e até hoje em dia, faz muito dinheiro. O sistema capitalista possui exímia capacidade em explorar a crise e o caos para se desenvolver e enriquecer, como num ato de antropofagização da sua própria autodestruição” (Ensaio tudo que é sólido desmancha no ar: Marx, Modernismo e Modernização — Marshall Berman).

Fica evidente que Marx ao usar a expressão “tudo o que é sólido e estável se volatiliza” se referia a capacidade da burguesia de construir a produção material, a aceleração tecnológica, os bens, as máquinas, as cidades, entre outras coisas sólidas. Estas vão deixar de existir ou se transformar em pouco tempo. Marx descreveu o capitalismo como um processo de destruição criativa, e ninguém pode negar que ele foi prodigiosamente produtivo. Entre as coisas que foram destruídas no processo está o estilo de vida do qual o capitalismo dependia no passado. Olhando para um futuro no qual o mercado permeia cada canto da vida, Marx escreveu: "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Para alguém que vivia na Grã-Bretanha no início do período vitoriano - o Manifesto foi publicado em 1848 -, isto era uma observação incrivelmente perspicaz. Naquela época, nada parecia mais sólido que a sociedade às margens daquela em que Marx vivia. Um século e meio depois, nos encontramos no mundo que ele previu, onde a vida de todo mundo é experimental e provisória, e a ruína súbita pode ocorrer a qualquer momento. Portanto, asseverar que essa expressão de Marx no Manifesto Comunista e empregada por Bauman para caracterizar as relações sociais na modernidade é parte de um plano comunista de dominação do mundo a partir da cultura chega a ser cômico para não dizer trágico.

Notemos ainda de passagem que, no seu discurso, Silva admite nunca ter lido o Manifesto Comunista. Se tivesse feito essa leitura preliminar não teria dito que a “expressão Marxismo cultural tem fundamentação teórica”. Ele teria chegado à conclusão oposta, a saber, que não existe fundamentação teórica para essa teoria enganosa. No Manifesto Comunista, Marx propõe a revolução armada como única estratégia para implantação do socialismo. Não queremos aqui entrar no mérito da questão, se essa estratégia é certa ou errada, se é válida hoje ou não. Esse não é o objetivo do texto. Mas, a bem da verdade é preciso dizer que o cerne do socialismo marxista ortodoxo é um só: o conceito de determinismo econômico, e não o determinismo cultural, ou seja, Karl Marx entendia que a única maneira de alterar o modo de produção capitalista para o modo de produção socialista era através da revolução realizada pelo proletariado, e não pela dominação cultural. Na realidade, a fundamentação da teoria a que se refere Silva não é em Bauman, como demonstrado aqui, mas no teórico conspiratório Olavo de Carvalho, a quem afirma concordar com ele nesse assunto.  Na verdade, esse discurso falacioso do Dr. Rodrigo Silva visa criar pânico moral entre os membros da igreja, bem como alimentar seus seguidores nas redes sociais ávidos por consumir esse tipo de mensagem reacionária.

Prossigamos. Silva e os outros pastores que incorporaram o conspiracionismo da direita obtusa sabem que o “marxismo cultural” não pode ser provada. É uma narrativa baseada em “opinião”, não em evidências. Ora, se a aludida teoria não é fundamentada em evidências, disseminá-la, principalmente, no ambiente da igreja é moralmente errado. Ainda assim, eles resolveram assumir publicamente essa teoria como uma estratégia de emparedar e pressionar os adventistas que possuem concepções políticas de esquerda a abandonarem-nas. Já escrevi em outro momento e volto a dizer: Por decorrência lógica da civilidade, dignidade da pessoa humana e, até mesmo, da boa educação, Silva e os pastores que não se conformam com a realidade de existir adventistas esquerdistas na igreja, precisam aprender a respeitar, não as ideias políticas deles, mas o direito constitucional que eles têm de possui-las.

A serva do Senhor foi clara quanto ao respeito a liberdade de consciência: “Em questões de consciência, a alma deve ser deixada livre. Ninguém deve controlar o espírito de outro, julgar por outro, ou prescrever-lhe o dever. Deus dá a toda alma liberdade de pensar, e seguir suas próprias convicções. "Cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus." Rom. 14:12. Ninguém tem direito de imergir sua individualidade na de outro. Em tudo quanto envolve princípios, "cada um esteja inteiramente seguro em seu próprio ânimo". Rom. 14:5. No reino de Cristo não há nenhuma orgulhosa opressão, nenhuma obrigatoriedade de costumes” (Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 550, 551). Como líderes da igreja, esses pastores deveriam reafirmar o compromisso da igreja de eliminar todas as formas de intolerância e discriminação baseada em convicções, em consonância com essa declaração da serva do Senhor. 

Alguém precisa informar ao Dr. Silva e seu grupo que os adventistas de esquerda não exigem que a igreja assuma as pautas identitárias ou a pauta de esquerda. A única coisa que reivindicamos é que os pastores respeitem o direito que os membros possuem de participar da luta por direitos dos negros, das mulheres, dos indígenas e outros vulneráveis, e que os pastores estejam distante das questões políticas nas redes sociais, como orientando os crentes a não votarem em partidos políticos de esquerda/marxista. Esse não é o papel do pastor. Como disse o apóstolo Paulo, “importa que os homens nos considerem como ministros de Deus” (1Co 4:1). Penso que o melhor que os pastores e membros leigos adventistas têm que fazer é pregar o “evangelho eterno” (Ap 14:6-12), sem fazer referência ou mesmo comprar briga com a esquerda ou com os movimentos sociais. Fazendo isso todos estarão honrando a Deus e abrindo portas para alcançar outros com a luz do evangelho.

Queremos perguntar aos pastores que aderiram a “cruzada anticomunista” na igreja, (pasme o leitor!), em pleno século XXI, 31 anos depois da queda do Muro de Berlin e do fim da Guerra Fria: Onde os senhores querem chegar com esse terror? Os senhores acham que isso assegurará a unidade da igreja? A insistência em defender esse suposto marxismo cultural só contribui para estimular a polarização dentro da igreja. Penso que os pastores e membros não deveriam enveredarem-se por esse caminho tortuoso. Isso só gera ódio, ressentimento e divisão entre o povo de Deus. Até porque há aqueles membros que não acreditam nessa narrativa mentirosa, que sabem que não passa de fake news. Os senhores querem ver o confronto dos membros em suas igrejas? Querem ver os crentes se digladiando nas redes sociais? Querem que ocorram as brigas em nossas famílias por causa da política? Com a palavra o Dr. Rodrigo Silva e os queridos pastores adeptos da teoria conspiracionista!

Quero concluir minha análise com uma fala de Ekkehardt Mueller, diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica na sede mundial da IASD, que vem a calhar com o debate que se trava hoje na igreja. Ele afirmou claramente que “não condescendemos com teorias da conspiração e não as proclamamos publicamente. Elas não podem ser comprovadas. A necessidade de se retratar ou a comprovação de que estavam erradas podem causar prejuízos à causa de Deus”. (Revista Adventista, agosto 2020, p. 15). Que os pastores envolvidos na disseminação dessa teoria da conspiração perceba esse risco de desencadear graves prejuízos a igreja, e avaliem se vale a pena insistir nisso.

 

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