Teologia

domingo, 19 de agosto de 2018

A PRIMEIRA PEDRA


Ricardo André

Na manhã do 8º dia da Festa dos tabernáculos1, ocorreu um incrível incidente na vida de Jesus, que está repleto de lições objetivas e espirituais para todos nós. Assim que os primeiros raios do sol começam a desafiar a completa escuridão da noite anterior, Jesus deixa o Monte das Oliveiras, deixando também para trás as árvores que tinham sido o Seu refúgio durante a noite, e Se encaminha para o templo (João 8:1, 2)2. É quando Ele está assentado num dos terraços do templo, à luz ainda anêmica da manhã, falando de pérolas perdidas e filhos desgarrados, que os judeus trouxeram, à presença de Jesus, uma mulher encontrada em adultério e pediram-Lhe que sentenciasse o castigo que ela merecia. Ela é colocada no meio dos Seus ouvintes, atraindo para si todos os olhares. “E disseram a Jesus: "Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério” (João 8:4). Seus acusadores eram os representantes da Lei e da Religião, os escribas e fariseus. Mas não se limitaram a mencionar o delito, apressaram-se em indicar também a sentença legal: “Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres” (Verso 5).

Ali, em pé, cabeça baixa, tremendo, sua beleza instiga a multidão a exterminá-la. Muitos desses homens, não muito tempo antes, estiveram ávidos por seu corpo. Agora estão sedentos por seu sangue. Ela fora pega no próprio ato. A lei diz que deve ser apedrejada. Como Jesus irá julgá-la?

À primeira vista, muitos de nós somos tentados a tomar posição favorável ao lado dos acusadores, em nosso zelo por defender a moral e os bons costumes. Todavia, à medida que nos detemos analisando este episódio na vida de Cristo, concluímos que aqueles homens não passavam de acusadores vis, a serviço da hipocrisia. Senão, vejamos:

1) Eram injustos e misóginos, pois prenderam a mulher e deixaram sem culpa o seu cúmplice – responsável pela mesma transgressão. Influenciava-os um falso moralismo, que tolera a imoralidade no homem e a condena na mulher. Aberração grosseira, o emprego de dois peso e duas medidas para o mesmo delito.

2) Eram falsos, pois acusaram como pretexto para encontrar em Jesus algo que O incriminasse diante das autoridades. Se autorizasse o apedrejamento, iriam acusá-Lo aos romanos. Por julgar sem ser juiz; e se a absolvesse da culpa, O acusariam aos judeus, como transgressor da lei de Moisés. Quanta perversidade oculta sob o manto de um falso moralismo!

Naquele momento, Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão. Escreve o quê? João não diz claramente. “Este é o único relato em que se diz que Jesus escreveu algo. De fato, muita coisa tem sido escrita sobre isso, mas nada do que Ele escreveu foi preservado. As palavras que Ele escreveu na poeira do solo logo foram apagadas pela movimentação de pessoas dentro do templo”3. A escritora cristã Ellen G. White acredita que Cristo escreveu os pecados deles. Jesus havia escrito ao mundo os pecados dos acusadores da mulher para que todos pudessem ler, da mesma maneira que a haviam exposto perante o mundo. Diz ela: “Ali, traçados perante eles, achavam-se os criminosos segredos de sua própria vida. O povo, olhando, reparou na súbita mudança de expressão e adiantou-se, para descobrir o que estavam eles olhando com tal espanto e vergonha. Com toda a sua professada reverência pela lei, esses rabis, ao trazerem a acusação contra a mulher, estavam desatendendo às exigências da mesma”4 Quando Seus acusadores não receberam nenhuma resposta imediata vinda da parte dEle, continuaram instigando Jesus para que tomasse uma posição... até que Ele fica literalmente em pé, demonstrando que estava pronto a dar Seu veredito, tendo as mãos ainda sujas de terra. Ele então solenemente decreta: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela" (Verso 7). A infeliz pecadora, coberta de vergonha, em sua angústia, fechou os olhos, aguardando uma saraivada de pedras.

Conforme a lei, as testemunhas deviam ser os primeiros a atirarem pedras (Dt 17:7). Mas em vez de julgarem a mulher, eles mesmos acharam-se julgados por Aquele que conhece os nossos mais escondidos pensamentos e intenções. Nenhum deles podia afirmar estar sem pecados. É possível que diante de Deus alguns deles fossem mais culpados do que aquela mulher.

Sentindo-se ridicularizados, “foram saindo, um de cada vez, começando com os mais velhos”. A mulher pecadora ficou só, na presença de Jesus. Chega então o momento em que ela deve morrer. Ela treme. As palavras de Jesus aos seus acusadores definem claramente o único meio pelo qual ela poderia morrer. Somente um Ser sem pecado deveria atirar a primeira pedra. Jesus é o único que possui tal qualificação. Então ele pôs-Se em pé e perguntou-lhe: “Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?" Mulher. Até agora, ela permanece sem nome. Quando seus acusadores se referem a ela como “esta mulher” que foi “surpreendida em adultério” (João 8:4), essa é uma tentativa para diminuí-la, para desumanizá-la, definindo-a apenas por seu passado, uma trama calculada para não permitir que o coração da multidão se movesse e sentisse por ela qualquer simpatia. Usada desta forma, é uma palavra que significava a desgraça dela e ressaltava a sua vergonha. Na boca de Jesus, a palavra se transforma. Deixa de ser pejorativa para transformar-se em uma promessa. A palavra reveste-se então do mais profundo sentimento de emoção e respeito, reveladas na pergunta que Ele lhe faz: “Ninguém a condenou?" Ainda não se atrevendo a manter qualquer esperança, plenamente consciente de sua culpa diante da lei, ela fala por meio de um momento de silêncio que tem o peso das pedras espalhadas a seus pés.       “Ninguém, Senhor”, disse ela. E dos lábios de Jesus ouviu as palavras permeadas de ternura e de misericórdia: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado" (Versos 9-11).

“Comoveu-se-lhe o coração, e ela se atirou aos pés de Jesus, soluçando em seu reconhecido amor e confessando com amargo pranto os seus pecados.

“Isto foi para ela o início de uma nova vida, vida de pureza e paz, devotada ao serviço de Deus. No reerguimento dessa alma caída, operou Jesus um milagre maior do que na cura da mais grave enfermidade física; curou a moléstia espiritual que traz a morte eterna. Essa arrependida mulher tornou-se um de Seus mais firmes seguidores. Com abnegado amor e devoção, retribuiu-Lhe a perdoadora misericórdia.

“Em Seu ato de perdoar a essa mulher e animá-la a viver vida melhor, resplandece na beleza da perfeita Justiça o caráter de Jesus. Conquanto não use de paliativos com o pecado, nem diminua o sentimento da culpa, procura não condenar, mas salvar. O mundo não tinha senão desprezo e zombaria para essa transviada mulher; mas Jesus profere palavras de conforto e esperança”.5

Incrível! Os escribas e fariseus, sem o querer, concederam à mulher pecadora a maior de todas as bênçãos. Levaram-na à presença do Único que salva o pecador da culpa e do poder do pecado.

Considere como o único Ser sem pecado Se recusou a destruir a vida de uma mulher pega com um homem que não era seu marido. Atente para a Sua compaixão por ela, por estar sofrendo e ferida em Sua presença pura. Quanto mais nós, que perdemos o senso da justiça, não deveríamos largar as pedras que seguramos em nossas mãos, prontas para punir os outros? Não deveríamos, muito mais, usar essas mãos para erguer os outros do pó, onde a dor e os golpes da vida ali os colocaram? Não deveríamos nós, muito mais, reconhecer claramente e cultivar sem reservas o espírito dAquele que “é tardio em censurar, pronto a perceber o arrependimento, pronto a perdoar, a animar, a pôr o que se extraviou na vereda da santidade e a nela firmar-lhe os pés”?6

Caro amigo leitor, o que Jesus fez por aquela trêmula mulher, Ele faz por cada um de nós. A Bíblia revela a extensão do esquecimento perdoador de Cristo. Isaías exultou: “Lançaste para trás de ti todos os meus pecados” (Isaías 38:17). De acordo com o profeta Miquéias, Ele lança “todos os nossos pecados nas profundezas do mar” (Miquéias 7:19). “Como se fossem uma nuvem, varri para longe suas ofensas; como se fossem a neblina da manhã, os seus pecados” (Isaías 44:22). Louvado seja Deus!

Referências:

1. Comentário Bíblico Adventista, v. 5, p. 1093.

2. Todas as passagens bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional.

3. Ibdem, p. 1094.

4. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí – SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 461.

5. Ibdem, p. 462.

6. Ibdem.















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