A PRESCIÊNCIA DIVINA: RELATIVA OU ABSOLUTA?
Alberto
Ronald Timm, PhD
A
doutrina da presciência divina tem sido marcada por vários conflitos ao longo
da história do cristianismo. Já no início do século V, encontramos a
controvérsia pelagiana, na qual, de um lado estava Agostinho, defendendo a
doutrina da predestinação e da "graça divina irresistível", e do
outro, Pelágio e Céstio, superenfatizando a "liberdade da vontade
humana". [1]
Durante o
período da Reforma dos séculos XVI e XVII, podemos salientar que, mesmo entre
os adeptos da Confissão de Augsburgo (1530), houve por algum tempo desacordo
entre alguns teólogos sobre a questão "da eterna presciência e eleição de
Deus". [2] Porém, como ponto culminante, podemos considerar a reação que o
calvinismo produziu especialmente na Holanda, e que envolveu os Países Baixos
protestantes.
A maior
expressão dessa reação encontramos em Jacó Arminius (1560-1609) e seus
discípulos, cuja doutrina é conhecida como arminianismo. Essa controvérsia
assumiu caráter político e intensificou-se a tal ponto que, num sínodo nacional
em Dort (1619), p arminianismo foi condenado, e um de seus defensores, João van
Odenbarneveldt, foi decapitado em 13 de maio de 1619, e Grotius, condenado à
prisão perpétua, muito embora conseguisse fugir posteriormente. [3]
Ainda
hoje, o cristianismo se encontra dividido neste aspecto da teologia; e, para
chegarmos a algumas conclusões mais consistentes, mencionaremos primeiramente
algumas das principais maneiras como tem sido interpretado o assunto e, então,
procuraremos nos deter ao máximo no conceito bíblico e em suas implicações sobre
outros aspectos da teologia bíblica.
Teorias
Sobre a Presciência Divina
As várias
teorias sobre a presciência divina podem ser reunidas em dois grupos
principais: os que crêem na presciência divina absoluta, e os que advogam a
presciência divina relativa, isto é, não absoluta. O primeiro grupo, que crê na
presciência divina absoluta, pode ser dividido em dois subgrupos: um afirmando
que a presciência divina não é causativa em si mesma, sendo, deste modo,
compatível com o livre-arbítrio humano; e o outro, asseverando a presciência
divina causativa, ou seja, que ela implica em predestinação absoluta ou
determinismo, negando, portanto, o livre-arbítrio humano.
Entre
os que creem na presciência divina absoluta e não-causativa, encontra-se a
maioria dos cristãos ortodoxos e fundamentalistas, entre os quais estão os
Adventistas do Sétimo Dia. Eles afirmam que Deus prevê o futuro nos seus
mínimos detalhes, bem como todas as ações dos seres livres, sem que isto
implique em determinismo ou predestinação.
Já os que
asseveram a predestinação divina absoluta e causativa, colocam grande ênfase
sobre a "soberania de Deus", [4] afirmando que todas as coisas
ocorrem pela vontade divina. Seus maiores defensores são os seguidores da dupla
predestinação de Calvino; porém, suas raízes já podem ser encontradas em Santo
Agostinho, segundo o qual, a graça divina é destinada àqueles a quem Deus
escolhe. Ele, portanto, predestina aqueles que Ele quer predestinar, "para
o castigo e para a salvação". Sendo que o número em cada um dos casos está
fixado. [5]
Do outro
lado estão os que acreditam numa presciência divina relativa, ou seja, que Deus
não conhece o futuro no sentido absoluto. Para estes o ponto crucial é que,
"se Deus conhece todas as coisas de antemão, toda a liberdade de ação
parece ser excluída". [6] "Foi essa dificuldade que levou Cícero,
Marcião e os socinianos a negarem a presciência absoluta de Deus. Os jesuítas
tentaram harmonizar a presciência divina e a liberdade humana por sua doutrina
de um conhecimento médio (mediato); isto é, um conhecimento contingente do
futuro; por exemplo, Deus conhece o que Ele irá fazer SE Davi for a Queila, e
igualmente SE ele não for; etc.
A
teologia católica romana aceita este conhecimento mediato. Os arminianos e os
luteranos não são hostis a ele. Agostinho e todos os teólogos reformados
rejeitaram-no absolutamente." [7] Ainda entre os defensores dessa posição
estão os que advogam a "Onisciência Aberta", isto, é, que Deus prevê
o futuro apenas parcialmente — pelas consequências naturais de fatores
presentes e passados, pelas Suas próprias ações (o que Ele há de fazer), e pelo
fato de conhecer todas as opções disponíveis aos seres humanos; porém não as
próprias ações livres. [8] E o Dr. Herman
Bavinck (1854-1921), um dos maiores teólogos reformados, esclarece que esta
posição "está baseada sobre o conceito pelagiano do livre-arbítrio; e
torna Deus dependente do homem". [9]
Predestinação
e Livre-Arbítrio
Predestinação
e livre-arbítrio são dois conceitos aparentemente contraditórios. Como a Bíblia
estabelece a ambos, não podemos advogar apenas um deles, em detrimento do
outro; pois "quando argumentamos dedutivamente, com base na onisciência e
na onipotência de Deus, o livre-arbítrio humano parece ser obliterado. Por
outro lado, quando argumentamos dedutivamente, com base no livre-arbítrio
humano, a presciência e o poder divino de determinar as ações parecem
excluídos". [10] Assim surge a indagação: Até que ponto Deus determina os
acontecimentos humanos, e até que ponto o homem é livre em suas ações?
A
doutrina da predestinação calvinista "sustenta que desde toda a eternidade
passada, todas as coisas foram ordenadas de antemão, de tal modo que elas terão
de ocorrer necessariamente dentro do tempo, incluindo a salvação final ou a
reprovação final dos homens". [11] Essa doutrina afirma ainda que Cristo
morreu apenas pelos "eleitos de Deus", para os quais a graça salvadora
de Deus é concedida incondicionalmente; enquanto que para o restante da
humanidade não há esperança de salvação.
A
doutrina da predestinação nem sempre tem sido apresentada da mesma forma;
porém, desde os dias da controvérsia com o arminianismo, duas concepções
diferentes têm sido advogadas: o supralapsarianismo e o infralapsarianismo; a
primeira afirmando que o primeiro pecado do homem, que o levou à queda, havia
sido predestinado; e a segunda, que esse pecado de Adão foi meramente um objeto
da presciência divina. [12] Em outras palavras, o supralapsarianismo acredita
que o decreto da eleição precedeu à queda, ao passo que o infralapsarianismo
"acredita que os indivíduos que foram vistos por Deus como
"eleitos", foram contemplados por Deus como membros de uma raça decaída.
Em outras palavras, o decreto da eleição se seguiria logicamente, se não mesmo
cronologicamente, à queda do homem no pecado". [13]
Entretanto,
o próprio relato da criação e da queda do homem, no livro de Gênesis,
estabelece a doutrina do livre-arbítrio humano — de um lado está a ordem divina
a Adão: "Da árvore da ciência do bem e do mal não comerás" (cap.
2:17), e do outro, a transgressão dessa ordem: "e ele comeu" (cap.
3:6). Este episódio demonstra claramente que as
ordens divinas podem ser transgredidas por Suas criaturas dotadas de
livre-arbítrio. Mesmo para Henrique Bullinger (1504-1575), o sucessor de
Zuínglio, a predestinação da queda de Adão parecia irreconciliável com a
justiça da punição do pecado. [14] Isto faria de Deus um tirano arbitrário! E
neste ponto surge mais uma indagação: "Uma vez que somos todos pecadores,
por que uma pessoa deveria ser escolhida para honra e outra para desonra?" [15]
A dupla
predestinação calvinista afirma que a graça salvadora de Deus é concedida
apenas aos que Ele predestinou à salvação; porém o conceito bíblico não suporta
esta posição. Isaías 55:1 diz: "Ah! todos vós os que tendes sede, vinde às
águas...", e Cristo ratifica essas palavras com o convite: "Vinde a
Mim todos..." (S. Mat. 11:28), e ordena que as boas-novas da salvação
devem ser pregadas "a toda criatura" (S. Mar. 16:15). A Bíblia
aprofunda ainda mais esse conceito ao declarar que Deus deseja que todos os
homens sejam salvos" (I Tim. 2:4), e que Ele não quer "que nenhum
pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento" (II S. Ped. 3:9);
e a ordem divina é: "Agora, porém,
notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam" (Atos 17:30).
"O convite a todos para que se arrependam seria um escárnio ao nome de
Deus se os homens não se pudessem arrepender." [16] A
Bíblia acrescenta, porém, que "Deus não faz acepção de pessoas; pelo
contrário, em qualquer nação, aquele que O teme e faz o que é justo Lhe é
aceitável" (Atos 10:34 e 35).
Na
verdade, "a predestinação pode apenas ser compreendida cristologicamente".
[17] Porque o próprio Deus declara: "Tão certo como Eu vivo, diz o Senhor
Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta
do seu caminho, e viva." Ezeq. 33:11. E I S. João 5:12 esclarece ainda mais
este aspecto ao dizer que "aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que
não tem o Filho de Deus não tem a vida". Neste sentido a eleição bíblica
para a salvação é "em Cristo" (Efés. 1:4).
"Certas
coisas foram decretadas pelo livre-arbítrio de Deus, e uma delas é a lei da
escolha e suas conseqüências. Deus decretou que todo aquele que voluntariamente
se entrega a Seu Filho Jesus Cristo na obediência da fé, receberá a vida eterna
e se tornará filho de Deus. Decretou também que aqueles que amam as trevas e
continuam em sua rebeldia contra a suprema autoridade do Céu, permanecerão em
estado de alienação espiritual e sofrerão a morte eterna." [18]
Por outro
lado, a Bíblia não sanciona um livre-arbítrio tal como o que Pelágio defendia.
Muito embora o homem tenha sido criado originalmente com livre-arbítrio pleno,
ele o perdeu em grande proporção, devido ao pecado. O apóstolo S. Paulo declara
que o homem natural é "prisioneiro da lei do pecado" (Rom. 7:23), e
que ele não consegue fazer por suas próprias forças o bem, ainda que ele o
queira, mas apenas o mal que não quer (Rom. 7:19). Mas ele acrescenta que
"em Cristo" podemos ser livres "da lei do pecado" (Rom.
8:2); e o próprio Cristo afirmou que, "se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres" (S. João 8:36). Porém, mesmo estando
"em Cristo", há um aspecto sob o qual o cristão não é livre. No dizer
de Lutero: "Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está
sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a
todos." [19] (Ver I Cor. 9:19 e Rom. 13:8.) "O cristão não vive em si
mesmo, mas em Cristo e no próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor.
Pela fé o cristão se eleva até Deus e diante de Deus se curva pelo amor; mas
sempre permanece em Deus e no amor divino." [20]
"Não
é um decreto arbitrário da parte de Deus que veda o Céu aos ímpios; estes são
excluídos por sua própria inaptidão para dele participar." [21] Mas, se Deus não quer que nenhum pereça, por que alguns se
perderão? "Tudo depende da reta ação da vontade. O poder da escolha deu-o
Deus ao homem; a ele compete exercê-lo. Não podeis mudar vosso coração, não
podeis por vós mesmos consagrar a Deus as suas afeições; mas podeis escolher
servi-Lo. Podeis dar-Lhe a vossa vontade; Ele então operará em vós o querer e o
efetuar, segundo o Seu beneplácito." [22]
Mas mesmo
havendo gozado uma vez a salvação em Cristo, a Bíblia declara que essa eleição
pode ser perdida (Heb. 6:4-6: "Foram iluminados e provaram o dom
celestial... e caíram"); e o apóstolo S. Paulo, após declarar que ele
havia sido "chamado pela vontade de Deus" (I Cor. 1:1 e 2), afirma
que ele próprio poderia "ser desqualificado" (I Cor. 9:27).
Portanto,
o livre-arbítrio do homem para escolher a salvação ou a perdição é uma das
grandes ênfases bíblicas; pois, se o destino de cada indivíduo já estivesse
predeterminado desde a eternidade, para a salvação ou para a perdição, a
proclamação do evangelho perderia o seu sentido, os homens não seriam mais
moralmente responsáveis, e Deus, em última análise, seria responsável pela
perdição dos impenitentes, o que faria da punição do pecado — a cada um
"segundo as suas obras" (Apoc. 20:12) — uma farsa e uma injustiça;
pois tais obras teriam sido o resultado do desígnio divino. Isto é
completamente contrário ao conceito bíblico!
A
Presciência Divina e a Origem e a Existência do Mal
Neste
ponto de nossas considerações surge outra indagação: Se a doutrina da dupla
predestinação calvinista não satisfaz o conceito bíblico, como vimos
anteriormente, não seria melhor admitirmos o conceito da presciência divina
relativa, isto é, que Deus não conhece o futuro no sentido absoluto, para que
possamos estabelecer a doutrina do livre-arbítrio humano, e para que Ele não
seja responsável pelo pecado?
— Antes
de chegarmos às conclusões mais detalhadas sobre a presciência divina,
analisaremos ainda o conceito da origem e da existência do pecado.
A Bíblia
declara que o pecado se originou em Lúcifer, um ser perfeito que veio a
rebelar-se contra Deus (Ezeq. 28:14 e 15; Isa. 14:12-15), o qual, após suscitar
"peleja no Céu", foi expulso (Apoc. 12:7-9). Posteriormente, ele
induziu também os nossos primeiros pais ao pecado. O Espírito de Profecia diz a
esse respeito, e com relação ao plano divino para a salvação do homem: "O plano de nossa redenção não foi um pensamento
posterior, formulado depois da queda de Adão.... Desde o princípio Deus e
Cristo sabiam da apostasia de Satanás, e da queda do homem mediante o poder
enganador do apóstata. Deus não ordenou a existência do pecado. Previu-a,
porém, e tomou providências para enfrentar a terrível emergência."[23]
"Deus
tinha um conhecimento dos eventos do futuro, mesmo antes da criação do
mundo. Ele não fez Seus propósitos para se
ajustarem às circunstâncias, mas permitiu que as coisas se desenvolvessem e
surtissem efeito. Ele não agiu para produzir certas condições, mas sabia que
tais condições iriam existir." [24]
Se Deus
sabia, porém, de antemão, que Lúcifer e nossos primeiros pais cairiam em
pecado, por que Ele os criou? — Cristo "sabia que Lúcifer procuraria
tirar-Lhe a vida durante o Seu ministério terrestre e que finalmente
conseguiria fazê-lo no Calvário. Sabia que Lúcifer tentaria induzi-Lo a abusar
do poder de Seu Pai ou de Seu próprio poder. Ele sabia também a parte que seria
desempenhada por homens e mulheres. Mas a eterna presciência de Cristo dos
contínuos e definidos efeitos dos pecados dos outros sobre Ele foi superada por
Seu eterno amor. Prosseguiu na criação dos anjos e do homem a despeito do
terrível custo para Sua própria Pessoa." [25]
Mas, o
fato de Cristo os ter criado, apesar de saber previamente que eles cairiam, não
torna Deus, em última análise, o autor do pecado? — A questão básica na
compreensão deste assunto é fazermos "a diferença entre ‘praescientia’ e ‘praedestinatio’,
isto é, entre a presciência e a eterna eleição de Deus. A presciência de Deus nenhuma outra coisa é senão isso que
Deus sabe todas as coisas antes de acontecerem [26]; "mas ela "não é causativa em si mesma". [27]
Deus é o
autor de tudo que foi criado (Apoc. 4:11), mas não de tudo que existe; porque o
pecado realmente existe, mas não foi criado. Segundo Bavinck, "o pecado de
fato não tem origem, mas só um início". [28] E Berckouwer acrescenta que "o pecado é presente e não
tem direito de existir. Existe, e ninguém explica a sua origem. Entrou sem
motivo no mundo..." [29] Ele
é biblicamente descrito como o ‘mysterium iniquitatis’ ("mistério da
iniqüidade" — II Tess. 2:7), por causa do seu "caráter sem sentido e
sem motivo", [30] "ilegítimo
e injustificável" [31] e
"estranho, que não podemos discernir pela nossa inteligência humana e
limitada". [32]
Ellen G.
White afirma que "a existência do pecado é inexplicável". [33]
"O pecado é um intruso, por cuja presença nenhuma razão se pode dar. É misterioso,
inexplicável; desculpá-lo corresponde a defendê-lo. Se para ele se pudesse
encontrar desculpa, ou mostrar-se causa para a sua existência, deixaria de ser
pecado." [34] Para Kierkegaard, o pecado é uma posição, e está além da
capacidade do pecador compreender o pecado. Se pudesse compreendê-lo, estaria
acima dele. "O fato de que ele é compreendido significa precisamente que é
negado." [35]
A razão
por que Deus não pode ser responsabilizado pela queda de Suas criaturas, é a
maneira como Ele as trata. A respeito de Lúcifer é dito que "Deus, em Sua
misericórdia, suportou longamente a Satanás. ... Reiteradas vezes lhe foi
oferecido o perdão, sob a condição de que se arrependesse e submetesse."
[36] Para Adão, segundo Gerhard von Rad, "a própria proibição de comer do
fruto da árvore do conhecimento é resultado da solicitude de Deus, pois se
comesse desses frutos o homem se destruiria". [37] E para a pecadora raça
humana, Deus não somente proveu o plano da redenção, como também é concedido um
tempo de graça a cada pecador, durante a sua existência.
E
Berckouwer conclui: "A respeito da ‘praescientia Dei’ foi esclarecido que
esta não é a causa do mal, e também sobre o pecado hereditário foi dito que
Deus não é seu autor, e tudo isto é concebido sem mais ‘extra conversiam’,
afirmando-se que Deus não nos torna pecaminosos, pois a nossa natureza corrupta
é obra de Satanás." [38] Crer numa
presciência divina relativa, como o "conhecimento mediato" ou a
"onisciência aberta", apenas põe o problema um pouco mais distante,
mas não o soluciona. "O problema que sempre surgiu não foi originado por
nossa falta de visão dos caminhos de Deus, mas está relacionado com o fato de
que se trata aqui do pecado, que nunca pode ser posto ou visto numa relação
lúcida sem lançar sombras sobre a glória de Deus." [39]
Mas,
apesar de o pecado ser um mistério, a grande realidade da "ação vitoriosa
de Deus sobre o pecado" [40] permanece como ponto crucial da história
salvífica. A doutrina da "onisciência
aberta" admite a possibilidade de surgir uma nova rebelião, após a final
erradicação do pecado; [41] mas
a Bíblia assegura que "não se levantará por duas vezes a angústia"
(Naum 1:9), e o Espírito de Profecia confirma estas palavras ao
declarar que "a rebelião não se levantará segunda vez. Jamais poderá
entrar o pecado no Universo. Todos estarão por todos os séculos garantidos
contra a apostasia". [42] E a garantia contra uma nova rebelião está na
morte de Cristo sobre a cruz do Calvário.
"Quando
Satanás for destruído, não existirá alguém para tentar ao mal; a expiação
jamais precisará ser repetida; e não haverá o perigo de outra rebelião no
universo de Deus. Aquilo unicamente que pode de maneira eficaz afastar do
pecado neste mundo de escuridão, irá impedir o pecado no Céu. O significado da
morte de Cristo será compreendido pelos santos e pelos anjos." [43]
A
Presciência Divina e as Profecias Bíblicas
As
profecias bíblicas têm sido consideradas "o diapasão da Bíblia — sua grande,
dominante nota do Gênesis ao Apocalipse"; [44] porque cerca de um terço da
Bíblia está relacionado com profecias. [45]
A
literatura profética da Bíblia, essencialmente, tem sido classificada em dois
grandes grupos: 1) Profecia geral, como por exemplo a que pode ser encontrada
em Isaías, Jeremias, Amós, etc; e 2) profecia apocalíptica, como de Daniel.46
Porém, neste estudo, para melhor compreensão, analisaremos as profecias
bíblicas sob três aspectos diferentes, muito embora possam estar relacionados
em alguns pontos: 1) Profecias condicionais; 2) profecias incondicionais; 3)
profecias messiânicas.
As
profecias condicionais são aquelas profecias dos profetas hebreus,
especialmente, nas quais o elemento humano está diretamente envolvido num
relacionamento de concerto. Este relacionamento de concerto envolve pelo menos
duas partes — de um lado aparece a parte divina, e do outro, a parte humana.
Para que tais profecias se cumpram, é necessário que ambas as partes cumpram a
expectativa do concerto; se uma parte falhar, a profecia não encontra o seu
pleno cumprimento previsto. Nestas profecias, Deus sempre cumpre as
expectativas do concerto; portanto, o seu cumprimento final depende de o homem
também cumprir a sua parte do concerto. Um exemplo clássico das profecias
condicionais encontramos na pregação de Jonas em Nínive, que dependia da
resposta dos ninivitas ao chamado ao arrependimento. Em Isaías 58:13 e 14
encontramos bem vívida a condicionalidade da promessa divina: "Se
desviares o teu pé de profanar o sábado...; então te deleitarás no
Senhor." Igualmente a promessa da salvação individual repousa sob a
condição de termos a Cristo (I S. João 5:12).
Por
profecias incondicionais subentendemos as profecias preditivas ou
apocalípticas, que, muito embora encontrem o seu cumprimento ao longo da
história humana, não dependem diretamente do elemento humano; isto é, não estão
baseadas num relacionamento de concerto. "A profecia apocalíptica realça o
fato de que Deus está no comando e a história da salvação avança de acordo com
a Sua presciência.... A literatura apocalíptica tem em torno de si uma
incondicionalidade e inevitabilidade que confere a suas predições um aspecto
absoluto.... Não importa o que façam os poderes do mal, o bem irá triunfar de
acordo com a presciência de Deus." [47] Um exemplo clássico destas
profecias encontramos em Daniel 2, onde o curso da história humana desfila
diante do profeta, até o seu fim, com a implantação do reino de Deus na Terra.
Aparentemente,
essas profecias suportam a idéia da presciência relativa, mas se as
investigarmos em profundidade, tal posição não pode ser mantida. As profecias
incondicionais, dado o seu cumprimento incondicional, suportam apenas duas
possibilidades: ou Deus predestinou todo o curso da História, ou Ele o anteviu,
e então o revelou aos profetas; mas mesmo neste caso, não podemos nos esquecer
de que "o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens" (Dan.
4:25). Porque a alegação de que Deus podia
predizer o futuro da História, com base nos fatores já existentes na época em
que a profecia foi revelada, [48] deixa muito a desejar; pois prever o curso da história humana
por cerca de quinze séculos, como é o caso das profecias de Daniel, exige muito mais fé do que crer que Deus tem a capacidade de o
antever pela Sua presciência.
Como
vimos anteriormente, Deus apenas predestina o bem; ao passo que a atuação do
mal, Ele apenas antevê. E neste ponto surgem algumas indagações: Será que
durante o ministério profético de Isaías já existiam fatores que permitiam
predizer a atuação, bem como o fato de que o indivíduo pagão que tomaria
Babilônia e libertaria o povo judeu do cativeiro receberia o nome de
"Ciro", aproximadamente 150 anos depois? (Isa. 44:28; 45:1-6). Será
que todos os mínimos detalhes proféticos que encontramos em Jeremias 50 e 51,
sobre a queda de Babilônia, foram previstos como decorrência de fatores
naturais já existentes?
Há
apenas duas opções satisfatórias: estas profecias, ou são fruto de uma
presciência divina; ou os instrumentos humanos não foram completamente livres
em suas ações, pois estas já estavam determinadas. E ainda, será que ao tempo
da segunda visão de Daniel (c. 551 A.C.) já existiam fatores determinantes,
pelos quais podia ser prevista a atuação histórica de Alexandre o Grande, e
especialmente o fato e que ele morreria repentinamente no auge do seu poder em
323 A.C. (Dan. 8:5-8) e que o seu sucessor não conseguiria manter o império
unido (Dan. 8:8)?
Surgem
também no cenário bíblico as profecias messiânicas, as quais, muito embora
consideremos como fazendo parte das profecias cujo cumprimento é incondicional,
analisaremos particularmente. Estas profecias têm sido classificadas em dois
grupos principais: as que tratam do Messias como Servo Sofredor, e as que
tratam a respeito do Messias Triunfante, isto é, da glória messiânica. Quanto à Sua missão como Servo Sofredor, a Bíblia descreve os
Seus sofrimentos e a Sua morte como o cumprimento do "determinado desígnio
e presciência de Deus" (Atos 2:23).
Neste
caso, por que a Bíblia não fala apenas em desígnio, mas acrescenta também o
cumprimento da presciência divina? — Porque ambas não são a mesma coisa, nem o
poderiam ser; pois a Bíblia não descreve apenas a atuação divina em relação à
morte de Cristo (desígnio), como também o papel que os poderes do mal iriam
desempenhar (pres¬ciência), o qual não foi predestinado por Deus, pois neste
caso Ele estaria predesti¬nando o mal, o que não é compatível com o Seu
caráter. Os
detalhes das profecias messiânicas que descrevem a atuação dos poderes do mal,
através de instrumentalidades humanas, só podem ser explicados a contento como
tendo sido fruto da presciência divina absoluta e não causativa.
Será
que no tempo de Davi já existiam fatores pelos quais podia ser predito que um
"amigo íntimo" do Messias, que com Ele comia do Seu pão, O trairia?
(Sal. 41:9; 55:12-14; cf. S. Mat. 26:20-25.) Baseado em que Cristo pôde
declarar antecipadamente que Pedro O havia de negar "três vezes"
antes que o galo cantasse? (S. Mat. 26:33; cf. S. Mat. 26:69-75.) E quanto às "trinta
moedas de prata" que o traidor iria arrojar "ao oleiro na casa do
Senhor"? (Zac. 11:12 e 13; cf. S. Mat. 27:3-10.)
Será
que cerca de um milênio antes de ocorrer, já existiam fatores que possibilitavam
predizer que as vestes de Cristo seriam repartidas pelos soldados, e que sobre
a Sua túnica lançariam sortes? (Sal. 22:18; cf. S. Mat. 27:35) O Salmo 22, que tem sido
considerado "o Salmo da Cruz", apresenta detalhes surpreendentes. A
origem da crucifixão como modo de execução não é clara. Mas sabemos que
"já os persas e certas tribos bárbaras, como os citas, durante a segunda
metade do último milênio antes de Cristo, podem ter introduzido esta forma
cruel de dar morte a uma pessoa". [49]
Também
para os judeus a crucifixão era desconhecida antes do cativeiro babilónico.
"Os judeus executavam seus criminosos por apedrejamento. A crucifixão era
um costume romano e grego; porém os impérios grego e romano não existiam no
tempo de Davi. Não obstante, encontramos aqui uma profecia escrita 1.000 anos
antes do nascimento de Cristo, por um homem que jamais viu ou ouviu falar de
tal método de punição capital como a crucifixão." [50] (Sal. 22:16 —
"traspassaram-Me as mãos e os pés".) Mas já na própria serpente que
Moisés erigiu no deserto, encontramos um tipo da morte do Messias (Núm. 21:8 e
9; cf. S. João 3:14). E o próprio capítulo 53 de Isaías parece ter sido escrito
ao pé da cruz de Cristo. [51]
Quanto às
profecias que falam do triunfo do Messias sobre a morte, a Bíblia não fala em
termos de possibilidades, mas de realidades. O próprio Cristo declarou que Ele
ressuscitaria ao terceiro dia (S. Mat. 16:21; 17:23; 20:19; etc). É certo que
Cristo poderia ter fracassado em Sua missão; mas Deus em Sua presciência viu
que isto não ocorreria, daí a forma enfática como são enunciadas essas
profecias.
Afirmamos
anteriormente que a presciência divina absoluta não é causativa; e isto
transparece claramente nas predições concernentes à segunda vinda de Cristo. A
Bíblia faz o tempo em que esse evento ocorrerá depender da atuação humana com
respeito à proclamação do evangelho (S. Mat. 24:14) e à aceitação prática do
evangelho na vida dos crentes (II S. Ped. 3:9); e o aspecto condicional do
tempo para que esse evento ocorra é mais do que reforçado em II S. Ped. 3:12,
ao declarar que pela atuação humana positiva, esse dia pode ser apressado.
E a Sra.
White já afirmou em 1903 que, "se o povo de Deus houvesse mantido viva
ligação com Ele, se Lhe houvessem obedecido à Palavra, estariam hoje na Canaã
celestial". [52] Mas, por outro lado, o próprio Cristo declarou que Deus,
o Pai, sabe o dia e a hora em que esse evento ocorrerá (S. Mat. 24:36). Se adotarmos a posição da presciência divina relativa, isto
é, que Deus não conhece absolutamente os atos livres dos homens antes que
realmente ocorram, nós encontraremos aqui, não apenas uma tensão, como uma
contradição; e para solucionarmos esse problema, teremos de ofuscar uma das
partes — ou teremos de declarar que esse evento é um ato divino cujo tempo
independe da atuação humana, ou teremos de negar que Deus realmente o saiba.
E a
questão torna-se ainda mais difícil ao considerarmos que a declaração de
Cristo, afirmando que Deus sabe o tempo exato para esse evento, antecede a
afirmação de II S. Pedro 3:12, sobre a possibilidade humana de apressar esse
evento. Aceitarmos que a presciência divina é absoluta e não causativa, não é
apenas uma possibilidade para solucionarmos o problema, mas é a única solução
satisfatória para essa tensão.
Caso
contrário, teremos de encarar este aspecto da tensão sobre a segunda vinda de
Cristo da mesma maneira como a doutrina da "onisciência aberta"
considera a tensão que aparece no Espírito de Profecia, sobre o fato de Deus
saber anteriormente da apostasia de Lúcifer e da queda do homem, como uma
contradição, cuja parte que mais lhe convém e que melhor se adapte ao esquema
teológico estabelecido é afirmada, negando-se a veracidade absoluta do conceito
que a outra apresenta.
Da
perspectiva do livre-arbítrio humano é dito que "se o homem fosse desleal
a Deus ..."; [53] e da perspectiva da presciência divina é declarado que
"desde o princípio (isto é, antes que ocorresse) Deus e Cristo sabiam da
apostasia de Satanás, e da queda do homem... Previu-a" [54] Para uma fiel exegese, tanto do texto bíblico, como do
Espírito de Profecia, não podemos estabelecer um conceito negando o outro. Para
aqueles que não conseguem conviver com uma tensão teológica, esse pode parecer
o caminho mais fácil, mas não é o mais fiel e seguro.
Afirmar
que "a própria visão de Ellen White da relação de Deus com o tempo pode
não ser precisamente o que a linguagem empregada" em certas partes dos
seus escritos dê a entender, e que ela apenas usou "a linguagem e os
conceitos da teologia convencional para fazer um ponto de apoio", mas que
esta não expressava claramente a sua ideia geral, [55] é negar a inspiração dos
escritos de Ellen G. White, surgindo assim a necessidade de uma espécie de
demitologização do Espírito de Profecia.
A
Presciência Divina e as Visões Proféticas
Ainda
dentro do contexto profético, podemos destacar um aspecto muito importante, que
são as revelações divinas quanto ao futuro, sob a forma de visões proféticas.
Este talvez seja o aspecto no qual transparece mais claramente a extensão e
abrangência da presciência divina. Segundo
Gerhard von Rad, numa visão o profeta "vê toda a história do mundo
desfilar como um filme diante de seu espírito". [56]
Em outras
palavras, numa visão imediata o profeta antevê eventos longínquos, tanto da
ação divina, como da atuação humana e da influência dos poderes do mal na
História. Se analisarmos detidamente as visões
proféticas, não poderemos chegar a outra conclusão senão que, ou todas as
coisas, tanto o bem como o mal, estão predestinadas por Deus, ou Deus conhece
todas as coisas futuras absolutamente, sem que isto implique em predestinação e
determinismo. E, pelas razões anteriormente apresentadas, não podemos crer numa
predestinação absoluta, mas apenas numa presciência divina absoluta e não
causativa.
No escopo
das sete cartas profético-apocalípticas de Cristo às sete igrejas da Ásia
Menor, não cabe a ideia de que Deus não conhece o futuro nos seus mínimos detalhes.
Pelo contrário, na frequente expressão "conheço as tuas obras" (Apoc.
2:2, 19, etc.) transparece claramente o aspecto absoluto da presciência divina
não causativa, pois nelas aparecem igualmente reprovações a essas obras
previamente conhecidas, dos vários períodos proféticos da história da Igreja cristã
através dos séculos. Não apenas os aspectos simbólicos do Apocalipse confirmam
este aspecto, mas também as visões concretas da "grande multidão"
(cap. 7:9 ss.), e quando o apóstolo João antevê "os vencedores" (cap.
15:2), bem como "os mortos" ímpios diante do juízo divino (cap.
20:12).
Também
nas visões dadas à Sra. White sobre as glórias da era vindoura, ela viu os
144.000 receberem "os amigos que deles tinham sido separados pela
morte", [57] e ainda mais, ela declara que no lar celestial teve o
privilégio de ver "mesas de pedra, em que estavam gravados com letras de
ouro os nomes dos 144.000". [58]
Tais
visões, tanto as do apóstolo João como as de Ellen G. White, apresentam
aspectos futuros da salvação que ainda não estavam definidos no tempo em que
foram concedidas, como é o caso dos 144.000, que é um grupo cuja definição
ainda está no futuro, pois depende do livre-arbítrio humano.
E o
Espírito de Profecia declara também que a Adão foi concedida uma visão
panorâmica do futuro, na qual ele pôde ver vários aspectos que tomariam lugar
na história humana. [59] Igualmente Cristo, antes de Sua encarnação, viu todos
os acontecimentos que marcariam o Seu ministério terrestre, "toda
angústia..., todo insulto..., toda privação" que Lhe caberia suportar.
[60] E a presciência divina absoluta
transparece também na descrição do conhecimento prévio que Deus tinha de Jacó e
Esaú, os dois irmãos gêmeos. "Deus conhece o fim desde o princípio. Sabia,
antes do nascimento de Jacó e Esaú, que caracteres iriam desenvolver. Sabia que
Esaú não teria um coração obediente a Ele." [61]
Para
termos, porém, melhor compreensão da onisciência e da presciência divinas, não
podemos deixar de considerar algumas visões de Ellen G. White, que são
descritas no livro Crede em Seus Profetas. Pouco depois de sua chegada à
Austrália, em dezembro de 1891, a Sra. White teve uma visão, na qual via o Sr.
N. D. Faulk-head, um comerciante de muito êxito, que era também líder em cinco
ou mais sociedades secretas.
Depois
dessa visão a respeito dele e outro, ela se sentou e escreveu o caso do irmão
Faulkhead em cerca de 50 páginas, com muitos pormenores. Quando ela quis
colocar a mensagem no correio, isto lhe foi impedido. Cerca de doze meses mais
tarde, quando ela voltou a Melburne, no dia 13 de dezembro de 1892, teve uma
entrevista com o irmão Faulkhead, na qual ela lhe apresentou a mensagem contida
no manuscrito que descrevia a visão recebida a seu respeito um ano antes. Entre
outras coisas, a Sra. White havia descrito exatamente a atitude das pessoas
presentes naquelas reuniões secretas a que ele vinha assistindo, o que dissera
nessas reuniões, onde se sentava, a espécie de assento em que se sentara, e
outros pormenores, os quais, confessou ele, só podiam ser descritos com tanta
exatidão por Deus, através de Sua fiel mensageira. [62]
Talvez a
visão mais impressionante a esse respeito seja a que a Sra. White teve no dia 3
de novembro de 1890, em Salamanca, Nova Iorque, na qual ela viu uma reunião de
um pequeno grupo de homens que havia de se realizar a uns quatro meses mais
tarde, na noite de 7 de março de 1891. Nesta visão ela viu um homem erguer-se e
levantar um exemplar do American Sentinel, bem alto no ar, e apontar a vários
artigos, declarando que assuntos tais como o sábado e a segunda vinda de Cristo
não deviam achar lugar num jornal que servia de porta-voz à Associação de
Liberdade Religiosa.
Por
várias vezes a Sra. White começou a contar o que vira na visão, mas cada vez
ela vacilava, e não podia lembrar um único pormenor a respeito; até que no
domingo pela manhã, 8 de março de 1891, ela descreveu nos seus mínimos detalhes
a visão que tivera quatro meses atrás, e que era uma descrição fiel dessa
reunião estritamente secreta, que um pequeno grupo de homens fizera na noite
anterior, no escritório da Review and Herald. [63] Isto nos pode levar apenas a uma única conclusão: Deus sabe
todos os detalhes do futuro, com tal precisão, porque a presciência divina é
absoluta, e não causativa.
Considerações
Adicionais
A
doutrina da presciência divina relativa se propõe a solver algumas tensões
teológicas com as quais a teologia tradicional tem convivido por séculos;
porém, nessa tentativa, surgem tensões ainda maiores e incompatíveis com certos
aspectos da revelação divina.
A
transcendência de Deus é um fato absoluto, e, para conhecê-Lo, a filosofia e a
lógica humana não são suficientes; porque as limitações da natureza humana, não
apenas limitam a nossa capacidade de compreensão, mas limitam o próprio grau da
revelação divina (S. João 16:12). E Deus não
pode ser limitado dentro de um esquema teológico; porque Ele é aquilo que
revela a respeito de Si mesmo, e muito mais. "O homem como homem não tem
acesso à vida interior de Deus, nenhum conhecimento do ser essencial de Deus.
Teologia não é um estudo de "Deus em Si mesmo", mas de "Deus
como Se tem revelado"." [64]
E neste
ponto cabe a clássica diferenciação entre o Deus ‘absconditus’ e o ‘Deus
revelatus’; entre aquilo que Ele é em essência, e aquilo que Ele pode revelar a
respeito de Si mesmo, devido às limitações que nos são impostas pela nossa
natureza humana pecaminosa. E Deus revela aos
homens certos aspectos de Sua própria natureza e com respeito ao futuro em
proporções limitadas àquilo que interessa à salvação histórica e individual dos
pecadores. A respeito daquilo que transcende essa revelação divina, não nos
compete especular (Deut. 29:29).
Na
verdade, a doutrina da "onisciência aberta" confunde o interesse divino
do futuro com a ignorância divina em relação ao futuro; ou seja, para que Deus
Se interesse no futuro de Suas criaturas livres, é necessário que este esteja
indefinido aos Seus olhos. [65] Tal dedução
pode ser considerada simplesmente como uma visão antropomórfica de Deus; pois o
fato de um professor prever que um de seus alunos não será aprovado no final do
ano letivo, não é sinônimo de que ele perca o interesse e passe a negligenciar
tal aluno, salvo se for um mau professor; pelo contrário, na maioria das vezes
maior atenção lhe é ainda dispensada. Assim Deus, apesar de conhecer
previamente todas as coisas, não perde o Seu interesse com os seres humanos,
mas continua a fazer com que o Seu Sol nasça "sobre maus e bons" e
com que a chuva venha "sobre justos e injustos" (S.
Mat. 5:45).
Não! Ele
não apenas pode nos socorrer após havermos sofrido um acidente automobilístico,
mas Ele já nos prepara antecipadamente para as crises que sobre nós poderão
abater-se, de forma que as provações da vida não ultrapassem as nossas forças
(I Cor. 10:13).
A
presciência divina relativa cria também um problema existencial — não podemos
confiar plenamente em Deus, pois Ele pode ser surpreendido em alguns aspectos,
como é o caso de um acidente automobilístico, para o qual não existem fatores
que possam determinar previamente, na maioria dos casos, o que é resultante de
atitudes e reflexos momentâneos. E neste caso, Deus seria injusto ao permitir
que os pecadores impenitentes morressem perdidos, ainda em tenra idade, sendo que
eles poderiam arrepender-se posteriormente, o que, segundo a doutrina da
"onisciência aberta", Deus não pode saber com segurança, mas apenas
as possibilidades. Mas para que Ele soubesse todas as possibilidades que tal
indivíduo teria, seria necessário que conhecesse absolutamente as ações e
atitudes dos outros seres livres que com ele viessem a se relacionar, e que
seriam os instrumentos para lhe estenderem o chamado à salvação, o que por sua
vez também são ações livres.
Através
das profecias bíblicas não podemos conceber a ideia de um Deus que adivinhou a
atuação futura do mal em seus mínimos detalhes, e acertou; pois Deus não trata
com possibilidades apenas, mas com realidades. A Bíblia não afirma que Deus
anuncia desde o princípio "o que pode acontecer", mas "o que há
de acontecer" (Isa.46:10).
Se Deus
não conhece os detalhes das livres ações futuras, teremos que admitir
necessariamente que os detalhes que foram profeticamente apontados, são frutos
da predestinação divina, tanto para a perdição (como o papel que Judas
desempenharia), como para salvação; o que não é compatível com o caráter
divino.
Será que o Deus que teve poder para criar seres livres "do
nada" [ex-nihilo], não teria poder para conhecer antecipadamente as suas
ações? A resposta para esta pergunta encontramos no Salmo 139, onde lemos:
"Senhor, Tu me sondas e me conheces.... De longe penetras os meus
pensamentos." "Ainda a palavra me não chegou à língua, e Tu, Senhor,
já a conheces toda." "Os Teus olhos me viram a substância ainda
informe, e no Teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles
escrito e determinado (aos olhos de Deus), quando nem um deles havia
ainda." Versos
1,4 e 16.
Na
verdade, se a minha perspectiva futura é limitada, isto não implica em que a de
Deus também o seja; porque Deus não está limitado pelo tempo (II S. Ped. 3:8),
e Ele "não vê como vê o homem" (I Sam. 16:7).
A
doutrina da "onisciência aberta" não apenas supervaloriza o
livre-arbítrio humano, em detrimento da presciência divina, como ainda faz uma
interpretação parcial do conceito bíblico. Assim como não é correto indagarmos:
"Jesus Cristo é divino ou humano?", porque Ele é ambas as coisas; não
é correto perguntarmos: "A presciência divina é absoluta ou o homem possui
livre-arbítrio?", porque ambos os conceitos são firmemente estabelecidos
biblicamente, e não podemos ser parciais. A pergunta que deve ser feita ao
tratarmos da presciência divina é se ela é causativa, ou não.
"Os
falsos profetas discursam somente em termos gerais e em linguagem ambígua. Suas
declarações podem ter os mais contraditórios significados.... A clareza e
plenitude das declarações proféticas podem ser consideradas unicamente como uma
revelação do Deus onisciente. .... As predições divinas são claras em
suas anunciações. Não há ambiguidade, nem duplo significado. ... Ninguém é
deixado em dúvida, quer o evento a ocorrer seja favorável, quer desfavorável.
Ninguém é deixado em dúvida sobre qual o lugar ou o povo que é o objetivo
principal da profecia. Neste caso (Ezeq. 26:7-14) cada circunstância é narrada
com tantos e minuciosos detalhes como se fosse uma parte de história ocorrida
diante dos olhos do narrador.... As predições de Deus sempre se cumprem. Pois
para Deus não existe futuro. Ele vê coisas distantes como se estivessem
próximas. Olhando através da perspectiva dos séculos, Ele percebe como cada
evento desponta do evento que o precede." [66]
Mas a "Sua presciência ... não envolve qualquer força posta sobre a
vontade humana". [67] "A presciência não é causativa em si mesma. Ela não
pode ser confundida com a vontade predeterminante de Deus. As ações livres não
ocorrem porque são previstas, mas elas são previstas porque irão ocorrer."[68] E Deus "não somente conhece antecipadamente os
motivos que irão ocasionar os atos dos homens, mas prevê diretamente os
próprios atos". [69]
Contra a
doutrina da presciência divina relativa, "nós incitamos não apenas a nossa
convicção fundamental da perfeição de Deus, mas também o constante testemunho
das Escrituras. Em Isaías 41:21 e 22, Deus faz de Sua presciência a prova de
Sua divindade na controvérsia com os ídolos. Se
Deus não pode prever os atos humanos livres, então "o Cordeiro que foi
morto, desde a fundação do mundo" (Apoc. 13:8) era apenas um sacrifício a
ser oferecido caso Adão fosse cair, não sabendo Deus se ele iria ou não cair; e
caso Judas viesse a trair a Cristo, não sabendo Deus se ele iria ou não
fazê-lo. Sem dúvida, visto que o curso da Natureza é mudado
pela vontade do homem quando ele queima cidades e derruba florestas, Deus não
pode nesta teoria predizer mesmo o curso da Natureza. Todas as profecias são,
portanto, um protesto contra essa visão". [70]
Na
verdade, a Bíblia diz que Deus é "perfeito em conhecimento" (Jó
37:16) e "conhece todas as coisas" (I S. João 3:20), inclusive
"o que há de acontecer" (Isa. 46:10). E neste ponto a razão humana
deve prostrar-se ante a onisciência divina e declarar: "Ó profundidade da
riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são
os Seus juízos e quão inescrutáveis os Seus caminhos!" Rom. 11:33.
Referências
1. A
posição de Pelágio "é bem expressa na frase: "Se eu devo, eu
posso." Sua atitude era a de ética estóica popular". — Williston
Walker, História da igreja Cristã (Rio de Janeiro, JUERP-ASTE, 1980), pág. 240.
2. Livro
de Concórdia — As Confissões da Igreja Evangélica Luterana (São Leopoldo,
Ed. Sinodal. Ed. Concórdia, 1980), págs. 497 e 660-678.
3. Williston Walker, op.
cit., pág. 236.
4. Este
aspecto é muito enfatizado por A. W. Pink, em seu livro Deus é Soberano
(Atibaia, Ed. Fiel, 1977).
5. Williston Walker, op.
cit, pág. 236.
6. Herman Bavinck, The
Doctrine of God (Edimburgo, The Banner of Truth Trust, 1979), pág. 189.
7. Ibidem. Ver também Louis
Berkhof, Systematic Theology (Edimburgo, The Banner of Truth Trust, 1976),
págs. 66-68.
8. Richard Rice, The
Openness of God (Washington, D. C, Review and Herald Publ. Ass., 1980),
págs. 47 e 48.
9. Herman Bavinck, op. cit,
pág. 189.
10.
Sanday. Citado por Russell Norman Champlin, em O Novo Testamento interpretado
Versículo por Versículo (Guaratinguetá, A Voz da Bíblia, s. d.), vol. 3, pág.
727.
11. Russell Norman Champlin, op. cit, vol. 3,
pág. 753.
12. Louis Berkhof, op. cit, pág. 118.
13. Russell Norman Champlin, op. cit., vol. 3,
pág. 75*3.
14.
Philip Chaff. Citado por Modesto Marques de Oliveira, em História das Religiões
Contemporâneas (São Paulo, IAE, s. d.), pág. 9.
15. J.
Ivan Crawford, Buscando a Glória de Deus — Lição da Escola Sabatina,
abril-junho de 1982, ed. do professor, pág. 60.
16. Pedro
Apolinário, Análise de Textos Bíblicos de Difícil Interpretação (São Paulo,
IAE, 1980), vol. 1, pág. 19.
17. G. C. Berkouwer, Faith
and Justification (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publ.Comp., 1979), pág. 164.
18. A. W.
Tozer, Mais Perto de Deus (São Paulo, Ed. Mundo Cristão, 1980), pág. 132.
19.
Martinho Lutero, Da Liberdade Cristã (São Leopoldo, Ed. Sinodal, 1979), pág. 9.
20. Idem,
pág. 48.
21. Ellen
G. White, Caminho a Cristo, pág. 17.
22. Idem,
pág. 42.
23. Ellen
G. White, O Desejado de Todas as Nações, págs. 17 e 18.
24. Ellen G. White, SDA
Bible Commentary, vol. 6, pág. 1.082.
25.
Norman R. Gulley, O Sacrifício Expiatório de Cristo — Lição da Escola Sabatina,
janeiro-março de 1983, ed. do professor, pág. 5.
26. Livro de Concórdia,
pág. 532.
27. Augustus H. Strong,
Systematic Theology (Valley Forge, PA., Jud-son Press, 1979), pág. 286.
28.
Citado por G. C. Berkouwer, em Doutrina Bíblica do Pecado (São Paulo, ASTE,
1970), pág. 79.
29. G. C.
Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, pág. 50.
30. Idem,
pág. 112.
31. Idem,
pág. 44.
32. Idem,
pág. 107.
33. Ellen
G. White, Testemunhos Para Ministros e Obreiros Evangélicos, pág. 265.
34. Ellen
G. White, O Grande Conflito, pág. 496.
35. Soren
Kierkegaard. Citado por William E. Hulme, em Dinâmica da Santi/icação (São
Leopoldo, Ed. Sinodal/C. P. Concórdia, 1976), pág. 21.
36. Ellen
G. White, O Grande Conflito, pág. 498. Ver também Patriarcas e Profetas,
capítulo "Por Que Foi Permitido o Pecado?"
37.
Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento — Teologia das Tradições
Históricas de Israel (São Paulo, ASTE, 1973), vol. 1, pág. 156.
38. G. C.
Berkouwer, Doutrina Bíblica do Pecado, pág. 28.
39. Idem,
pág. 48.
40. Idem,
pág. 28.
41. Richard Rice, op. cit.,
pág. 54.
42. Ellen
G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 22.
43. Ellen G. White, SDA
Bible Commentary, vol. 5, pág. 1.132.
44. Herbert Lockyer, All
the Messianic Prophecies of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publ. House, 1980), pág. 16.
45. Idem,
pág. 15.
46. O
Ministério Adventista, março-junho de 1981, pág. 23.
47. Ibidem.
48. Richard Rice, op. cit.,
pág. 64.
49.
Siegfried H. Horn, "Sentença: Morte de Cruz" — O Atalaia, abril de
1981, pág. 5.Ver também Martin Henger, Crucifixion (Filadélfia Fortress Press,
1977), págs. 22 ss.
50.
Herbert Lockyer, op. cit., pág. 150.
51. Para
um estudo mais detalhado sobre as profecias messiânicas a respeito da morte de
Cristo, ver Herbert Lockyer, op. cit, cap. 8: "Prophecies of His
Death."
52. Ellen G. White,
Evangelismo, pág. 694.
53. Ellen G. White, SDA
Bible Commentary, vol. 6, pág. 1.070.
54. Ellen
G. White, O Desejado de Todas as Nações, págs. 17 e 18.
55. Richard Rice, op. cit,
pág. 92.
56. Gerhard von Rad, op. cit, vol. 2, pág. 315.
57. Ellen
G. White, Primeiros Escritos, pág. 16.
58. Idem,
pág. 19.
59. Ellen
G. White, História da Redenção, págs. 48-50.
60. Ellen
G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 396.
61. Ellen
G. White, História da Redenção, pág. 87.
62.
Denton E. Rebok, Crede em Seus Profetas (Santo André, Casa Publicadora
Brasileira, 1967), págs. 97-106.
63. Idem, págs. 73-76.
64. Leon Morris, I Believe
in Revelation (Londres, Hodder and Stoughton, 1976), pág. 11.
65. Richard Rice, op. cit.,
pág. 80.
66. The Pulpit Commentary
(Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publ. C, 1962),
vol. 12 — Ezekiel II, pág. 77.
67. Idem, vol. 18 — Acts I. pág. 52.
68. Augustus H. Strong, op. cit., pág. 286.
69. Idem,
pág. 284.
70. Idem,
pág. 285.
Fonte:
Revista O Ministério Nov-Dez/1984.
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