Por Marcos De Benedicto
Cem anos depois de sua
morte, Ellen White ainda é a personalidade mais influente do adventismo
Se você viajasse cem
anos de volta no tempo, em direção a Santa Helena, na Califórnia, poderia
testemunhar o fim de uma era e o início de outra na história de um movimento
destinado a mudar a maneira de muita gente ver Deus, o Universo, o estilo de
vida, o conflito entre o bem e o mal, o labirinto das ideias religiosas e o fim
do mundo.
Às 15h40 de uma
sexta-feira, dia 16 de julho de 1915, aos 87 anos, chegou ao fim a longa
jornada de 70 anos de ministério de Ellen Gould (Harmon) White, “uma das
mulheres mais notáveis do século 19”, no dizer de Jerry Moon e Denis Kaiser na
enciclopédia de quase 1.500 páginas escritas em memória dela. De acordo com seu
filho William, a morte da matriarca foi como uma vela se apagando. “Eu sei em
quem tenho crido”, ele pareceu ouvi-la dizer.
Contudo, o tempo não
apagou a memória nem a influência dela. Ao contrário, em 2014, a revista
Smithsonian a classificou como uma das cem personalidades mais importantes da
história norte-americana, num seleto grupo de apenas 11 pessoas na categoria de
figuras religiosas. E, enquanto se multiplicam teses sobre seus conceitos,
simpósios continuam a marcar o centenário de seu adeus. Se cem anos costumam
ocultar a maioria absoluta dos nomes na irrelevância da obscuridade, no caso de
Ellen White fizeram sua história brilhar ainda mais. “A mulher que uma vez
gritou ‘Glória!’ diante da visão do céu conquistou sua própria glória na
Terra”, comentou Jonathan Butler na obra Ellen Harmon White: American Prophet,
lançada no ano passado pela editora da Universidade de Oxford.
Para muitos
adventistas, foi difícil acreditar que estava sendo virada a última página do
livro da vida da mensageira do Senhor. Alguns achavam que ela permaneceria viva
até a volta de Jesus. Porém, os sinais de fraqueza já vinham sendo notados. No
dia 25 de fevereiro de 1915, William White havia anunciado na Review and Herald
que sua idosa mãe, com a memória já vacilando, havia caído e fraturado o fêmur.
Uma celebridade como
Ellen White não podia ser sepultada sem múltiplas despedidas. Por isso, foram
programados três funerais. O primeiro, mais informal, foi realizado no domingo
à tarde, 18 de julho, no gramado de Elmshaven, sua última residência. Levada de
trem para Richmond, na Califórnia, onde estava sendo realizada uma reunião
campal, cerca de mil pessoas participaram de outro funeral na segunda de manhã,
dia 19. À tarde, ela foi transportada para Chicago, de onde seria levada para
Battle Creek, local da terceira cerimônia, a 3.600 km de Richmond.
No sábado, 24 de julho,
desde as 8h da manhã, 3 mil pessoas se acotovelaram na igreja do tabernáculo
para se despedir da irmã White (na realidade, mais mãe do que irmã), enquanto
pelo menos mil ficaram do lado de fora. A cerimônia começou às 11 horas. Música
e oração antecederam a longa biografia apresentada por Arthur Daniells,
presidente mundial da igreja, e o sermão de Stephen Haskell, que em 1894 havia
chegado a pedi-la em casamento, quando a profetisa já era viúva. Uma longa
procissão de automóveis e pessoas de muitos lugares acompanhou o féretro até o
cemitério de Oak Hill, onde a mensageira repousa até que o Senhor a desperte
para a imortalidade.
RETRATO
Entre esse momento e o
início de sua carreira foram 70 anos de vida intensa. Os primeiros passos na
vida cristã ocorreram quando a menina Ellen cresceu numa piedosa família
metodista em Portland (Maine), com cerca de 12 mil habitantes na época e 66 mil
hoje. Se o estilo de vida atual da cidade não combinaria com o padrão austero e
vitoriano de Ellen White, o belo farol da cidade portuária, inaugurado em 1791
e talvez contemplado muitas vezes por ela, serviria de símbolo da luz menor que
a profetisa espalhou para guiar milhões à luz maior, a Bíblia.
Nascida em 26 de
novembro de 1827 perto da cidadezinha de Gorham, Maine, Ellen veio ao mundo ao
lado da irmã gêmea Elizabeth (Lizzie). Seus pais, Robert e Eunice, que já
tinham dois filhos e quatro filhas, eram muito religiosos e exerceram uma boa
influência na vida da menina. Três filhas deles se casaram com pastores. Eunice
Gould Harmon, uma mulher de caráter e princípios, tinha capacidade de pensar de
forma clara e rápida, o que “a tornou uma firme e sábia disciplinadora”, como
observaram Moon e Kaiser. Robert Harmon, alternando-se entre a atividade na
fazenda em Poland e Gorham e o negócio de chapéus em Portland, mostrou a
importância do trabalho sério.
Ellen não cresceu numa
família literária, mas tinha uma ambição muito grande de estudar. Contudo, em
dezembro de 1836, seu sonho foi interrompido subitamente por um acidente
trágico. Ao voltar da escola, Ellen, Lizzie e uma amiga foram hostilizadas por
uma colega mais velha. Diante da ameaça, as três, seguindo o conselho dos pais,
procuraram ir para casa o mais rápido possível. Porém, a menina jogou uma pedra
na direção delas. Quando Ellen olhou para trás, a pedra acertou-lhe a face em
cheio. Nocauteada, rosto ensanguentado, ela perdeu os sentidos. Levada para
casa, passou três semanas em estado semiconsciente.
A menina ficou tão
desfigurada que o pai, ao voltar de viagem, não a reconheceu. O acidente
afetou-lhe a autoestima. Anos depois, a adolescente carente de relacionamentos
sociais olhava-se no espelho e sofria com a imagem contemplada. A ideia de
conviver com aquela face parecia-lhe insuportável. Desejou morrer, mas não
podia fazê-lo estando despreparada.
Durante a década de
1830 e o início dos anos 1840, acompanhada da família, Ellen frequentava a
igreja metodista da rua Chestnut, a maior da denominação no Maine. A igreja
tinha uma boa biblioteca com livros para crianças, inclusive alguns sobre uma
menina chamada Ellen. Fascinada por boa literatura, nossa personagem leu muitos
desses livros, mas as histórias idealizadas a deixavam deprimida, pois
imaginava que jamais conseguiria alcançar tal nível de perfeição e santidade.
Seu medo de perder a salvação só se dissiparia quando, após algumas crises, em
momentos diferentes, ela passou por um processo de conversão, e a noção de
justificação pela fé começou a ganhar moldura na mente da adolescente.
Em 1842, mesmo depois
de estar se preparando para o batismo e ter se tornado uma ardorosa fã da
mensagem de Guilherme Miller, que visitara Portland duas vezes, ela ainda
lutava com o medo de não estar preparada para a volta de Jesus, especialmente
porque a ideia do tormento eterno espalhava em seu coração o terror de um Deus
tirano que sentia prazer “na agonia dos condenados”. A descoberta posterior de
que a alma não é imortal e de que os ímpios não vão queimar no fogo do inferno
para sempre foi um alívio indizível. Finalmente, ela havia descoberto a face
amorosa de Deus, que a aceitava sem julgar sua própria face.
A ênfase no amor de
Deus marcaria algumas de suas obras mais importantes. As palavras “Deus é amor”
estão na abertura e no encerramento de sua obra magna, os cinco volumes da
série Conflito dos Séculos. Como uma moldura para seu pensamento, essas
palavras iniciam Patriarcas e Profetas e, mais de 3.500 páginas depois, fecham
O Grande Conflito. Para a autora, o aspecto central do conflito cósmico é o
caráter de Deus, expresso em sua lei de amor, que resume o estilo divino de
exercer o poder.
Batizada nas águas do
Oceano Atlântico, em 26 de junho de 1842, Ellen estava pronta para seguir seu
Salvador com grande dedicação. No entanto, à medida que o dia marcado para a
volta de Jesus se aproximava, ela ainda se preocupava com seu processo de
santificação, tema enfatizado na Igreja Metodista. Foi nessa época que, notando
a ansiedade da filha, Eunice Harmon a enviou para falar com o pastor Levi
Stockman. “Ellen, você é apenas uma menina”, ele ponderou. “Sua experiência é
muito singular para alguém da sua idade. Jesus deve estar preparando você para
uma obra especial.” Sem dúvida, estava.
A mensagem milerita da
segunda vinda de Cristo, cronometrada para ocorrer primeiramente em 1843 e
depois em 22 de outubro de 1844, encheu de alegria o coração da jovem Ellen.
Mais tarde, ela descreveria esse período como “o ano mais feliz de minha vida”.
No entanto, o dia 22 chegou e se foi sem que os 50 a 100 mil mileritas,
liderados por dezenas de ministros atraídos de várias denominações, pudessem
ver a glória de Jesus nas nuvens. A decepção foi tão grande que, no restante da
noite, as lágrimas incharam os olhos de muitos e banharam a “pedra da
ascensão”. Ellen também chorou.
No cenário
pós-desapontamento, surgiu um emaranhado de crenças sobre a volta de Jesus. Até
o clareamento das ideias, foram muitas horas de estudo profundo e intensa
oração. Ellen participou desse período e, mesmo com as novas descobertas,
reposicionando 22 de outubro como a data da mudança de fase no ministério de
Cristo no santuário celestial, não deixou de crer no iminente segundo advento
literal. Mais tarde, contra os espiritualizadores, ela pintaria um quadro
literalista e esplendoroso das realidades celestiais e da volta de Cristo.
Ellen nunca perdeu o
senso de urgência. Com o olhar fixo no céu, nutria uma expectativa inabalável
na proximidade da segunda vinda. Para ela, se a igreja houvesse cumprido seu
papel em advertir o mundo, Cristo já poderia ter voltado. Deus é soberano em
seus propósitos, mas interage com as variáveis humanas. Na perspectiva dela,
está em nosso poder apressar o aparecimento do Filho do Homem nas nuvens para
pôr fim à história de pecado e à miséria do mundo.
Jonathan Butler
observou: “Cada página que Ellen White escreveu e cada sermão que pregou
estimulavam os adventistas ao mais alto grau moral possível no preparo para a
vinda de Cristo. E, como era típico do período, fez isso ao abraçar a moral com
mais ardor do que a teologia, o aspecto experiencial acima do ideológico.”
Em vez de elaborar um
sistema teológico, diz Butler, Ellen escreveu testemunhos, apresentando “o
adventismo como uma história épica” na série Conflito dos Séculos, e não “um
conjunto de ideias”. Na verdade, nos escritos dela, um coerente e sofisticado
sistema de crenças convive lado a lado com uma forte experiência de fé. Em
grande parte por influência de Ellen White, o adventismo combina a excelência
da razão bíblica e o melhor do coração religioso. Familiar com o estilo
metodista, mesmo condenando o fanatismo e o desequilíbrio, ela não se acanhava
de dizer: “Glória! Glória! Glória!”
Embora muitos mileritas
considerassem o casamento uma iniciativa imprópria em face do iminente regresso
de Cristo, Ellen acabou se unindo, no dia 30 de agosto de 1846, a um pregador
oriundo da Conexão Cristã chamado James (Tiago) Springer White. Ao lado de
outras pessoas, ele já vinha acompanhando Ellen em suas viagens para falar de
suas visões. O enlace sugeria que a vida na Terra continuaria, mas era melhor
enfrentar a crítica de falta de fé do que de mau comportamento.
A parceria no amor e no
ministério não poderia ter sido melhor, apesar da personalidade forte dos dois
e de alguns desentendimentos. Afinal, um presidente da Associação Geral
multitarefa e uma profetisa determinada viajando juntos 24 horas por dia não
deve ter sido fácil. Mas o casamento se sustentou porque era nutrido por um
amor sincero, um objetivo comum e um propósito maior do que os dois: a missão
de preparar um povo para se encontrar com Jesus.
Ellen não seria Ellen
White sem Tiago. Em seu livro The Prophetess of Health, Ronald Numbers destacou
o papel do casal: “O adventismo do sétimo dia não seria o mesmo sem Ellen
White; ele não existiria sem Tiago.” A união durou até 1881, quando,
precocemente, ele morreu aos 60 anos. Parecia que ela não suportaria a perda,
mas a graça divina e outras pessoas a ajudaram a prosseguir. Vida dividida ao
meio, Ellen ficou casada por 35 anos e viúva por 34.
AMBIENTE
Ellen White transcendeu
seu contexto, pois tinha uma mensagem eterna para proclamar, mas não deve ser
entendida como alguém de outro mundo. Em certo sentido, ela foi uma mulher de
sua época, usando as roupas do momento, abordando os temas do dia a dia e
discutindo questões em pauta no adventismo e fora dele. Personalidade antenada
nos acontecimentos, mente aguçada pela percepção do Espírito, observadora
privilegiada da história, ela sonhava com a transformação da sociedade e a
inauguração de outra era. Contudo, a esperança do futuro não tirava seus pés da
realidade.
“A era vitoriana foi
excepcional, e Ellen White também”, observou o historiador Grant Wacker no
prefácio da obra Ellen Harmon White: American Prophet. “Todas as eras passam
por mudanças, mas a América vitoriana testemunhou mudanças em um grau que
continua sem paralelo”, escreveu. Entre outras coisas, as carroças puxadas a
cavalo foram substituídas pelas locomotivas e os automóveis, a revolução
industrial impulsionou a produção em massa e mudou o cenário das empresas, os
relógios mais precisos possibilitaram uma consciência maior da passagem do
tempo e incentivaram o senso de disciplina, o reavivamento transmitiu a ideia
de um Deus mais próximo e a ênfase na moralidade e no caráter servia de régua
para medir as artes e o entretenimento.
Para ele, Ellen White
“não pode ser reduzida ao seu tempo, pois trouxe extraordinários ‘dons e
graças’ ao seu trabalho, como diriam seus pais metodistas”, e em aspectos
cruciais ela contrariou o pensamento da época. No entanto, “ela somente pode
ser compreendida no contexto das realizações tecnológicas, das estruturas
sociais, das pressuposições culturais e das aspirações religiosas da época”.
Por exemplo, é
impossível imaginar seu sucesso sem a tecnologia das estradas de ferro e o
alcance da imprensa. “Viajante compulsiva”, como define Wacker, “ela fez 24
viagens por trem de Michigan para a Califórnia.” Isso sem falar nos dois anos
de giro pela Europa (1885-1887) e nos quase dez anos na Austrália (1891-1900).
Escritora prolífica, inserida num adventismo dependente das publicações, ela
contou com a revolução da imprensa a vapor e as novas máquinas para fabricar
papel.
No contexto religioso,
Ellen White foi (a)típica também. Ela era essencialmente protestante,
partilhando muitos traços de sua herança metodista, que dominou o século 19, e
cultivando mentalidade “antipapista”, comum na época, mas foi além da retórica
protestante. Ela incorporou novos arrazoados bíblicos para explicar por que o
poderio sedutor do catolicismo, com seus rituais paganizados, não combina com o
evangelho e a essência do cristianismo puro. No entanto, longe de se opor a
Roma por se opor, ela via um grande número de fiéis no romanismo, gente que
precisava ser resgatada de Babilônia para receber o sinal de Deus. De igual
modo, sentenciou que as promessas enganosas do espiritismo, com seus
expedientes proibidos, não são rotas aceitáveis para a verdade. E censurou os
excessos do pentecostalismo, com seus carismas divorciados da sã doutrina.
A reforma de saúde,
também apregoada por muitos sonhadores da época, como Sylvester Graham, e tão
necessária numa sociedade em que a medicina era mais precária do que a
expectativa de vida abaixo dos 40 anos (em 1850) e num tempo em que os venenos
vinham disfarçados com o nome de remédios, foi objeto de especial atenção de Ellen
White. Novamente, ela capitalizou ideias e movimentos da época, mas transcendeu
o contexto.
“A principal diferença
entre Ellen White os reformadores de sua época era filosófica”, comenta George
Knight. Ela colocou seus conselhos na moldura do conflito cósmico, aplicando-os
igualmente ao dia a dia e ao preparo para o tempo do fim e ligando-os à
medicina e às três mensagens angélicas de Apocalipse 14. Para White, é dever
dos adventistas viver bem e levar alívio ao mundo adoecido. Suas obras nessa
área, com o selo da inspiração validando conceitos e adiantando prognósticos,
têm sido amplamente comprovadas pela ciência.
Ellen White tinha o Céu
no coração e o coração no Céu, mas não perdia a oportunidade de falar das
realidades terrenas. Vivendo à frente de sua época em vários aspectos, ela
pregava um estilo de vida austero e produtivo. Sua percepção das artes e da
vida era pragmática. O que contribui para a moralidade e o desenvolvimento do
caráter deve ser valorizado; o que atrapalha deve ser descartado. Literalmente,
seu olhar para as coisas da Terra era condicionado pelas visões do Céu.
INSPIRAÇÃO
Ao longo de 70 anos,
desde a primeira visão aos 17 até a morte aos 87, Deus concedeu a Ellen White
cerca 2 mil sonhos e visões, que variavam de menos de um minuto a quatro horas
e abrangiam uma diversidade de assuntos. As primeiras visões eram mais longas e
mais abrangentes, enquanto as últimas eram mais breves e mais limitadas no
enfoque.
O caminho das visões
foi aberto em dezembro de 1844, cerca de dois meses depois do desapontamento.
Durante um culto na casa de amigos, o poder de Deus repousou sobre Ellen, que
perdeu a noção do ambiente. Foi-lhe mostrada a jornada do povo do advento para
a cidade de Deus. Essa visão se encontra em Primeiros Escritos, páginas 13 a
20. No fim do relato, ela lamentou ter que voltar a este “mundo escuro”, onde
todas coisas “parecem demasiadamente áridas”. “Chorei quando me encontrei aqui,
e senti saudades”, revelou. “Eu tinha visto um mundo melhor, e o atual perdeu
seu valor.”
Em abril de 1847, sete
meses depois que o casal White havia começado a observar o sábado com base nas
evidências bíblicas apresentadas em um folheto escrito por Joseph Bates, Ellen
teve uma visão destacando a importância do sábado. Ela contemplou as tábuas da
lei no santuário celestial e um “halo deglória” circundando o quarto
mandamento, que “brilhava mais do que os outros”. Esse padrão de receber uma
visão para confirmar o estudo da Bíblia e ampliar a compreensão do assunto se
repetiu em várias circunstâncias.
Uma das visões mais
importantes ocorreu em Ohio, na escola pública de Lovett’s Grove, em 1858. Em
duas horas de visão, ela contemplou o desenrolar do grande conflito entre
Cristo e Satanás, cada lado com seus anjos. Embora dois dias depois o inimigo
tenha tentado tirar-lhe a vida para que ela não compartilhasse o conteúdo
revelador, Deus a sustentou, e as cenas mostradas apareceram no mesmo ano nas
páginas do volume 1 de Spiritual Gifts.
Em Otsego, Michigan, no
dia 6 de junho de 1863, num momento em que a saúde de Tiago White e de outros
líderes da obra estava em estado deplorável, Ellen recebeu uma visão
estabelecendo uma conexão entre o corpo e a espiritualidade. Essa visão, ao
lado de outras com a mesma tônica, deu origem não só a livros e revistas, mas
também a instituições de saúde. A partir dessa data, ela sempre enfatizou a
reforma de saúde e o vegetarianismo, embora sua vitória permanente sobre o
apetite cárneo só tenha ocorrido nos anos 1890.
Para virtualmente todas
as áreas importantes da vida e da igreja, Ellen White recebeu visões e
instruções divinas. E o fenômeno de sua inspiração não se tratava apenas de
alta voltagem cerebral, mas de revelações objetivas vindas do Espírito de Deus.
Ela passou em todos os testes bíblicos de um profeta verdadeiro. As evidências
e os frutos de seu chamado e ministério perduram até hoje.
Pelos relatos
disponíveis de Tiago White, John Loughborough e outros, é possível reconstruir
o roteiro de uma visão típica de Ellen White: (1) os presentes no ambiente
sentiam uma forte impressão da presença de Deus; (2) quando a visão começava,
ela exclamava “Glória!” ou “Glória ao Senhor!”; (3) no início, ela
experimentava fraqueza, mas depois manifestava força sobrenatural; (4) ela não
respirava, mas seu batimento cardíaco continuava normal; (5) às vezes, ela
pontuava com exclamações a cena que lhe estava sendo apresentada; (6) seus
olhos ficavam abertos, como se ela estivesse assistindo a algo; (7) sua posição
podia variar, ficando sentada, reclinada ou andando, e fazia gestos graciosos;
(8) ela ficava inconsciente do que acontecia ao redor; (9) o fim da visão era
indicado por uma profunda inspiração, e logo sua respiração voltava ao normal;
(10) após a visão, tudo lhe parecia escuro.
Para os adventistas,
conforme se lê no livro Nisto Cremos, “os escritos de Ellen White não
constituem um substituto para a Bíblia”, que ocupa “posição única”. Entretanto,
eles reconhecem a necessidade do dom profético, conforme escreveu a própria
Ellen White em O Grande Conflito: “O fato de que Deus revelou sua vontade aos
homens por meio de sua Palavra não tornou desnecessária a contínua presença e
direção do Espírito Santo. Ao contrário, o Espírito foi prometido pelo nosso
Salvador para aclarar a Palavra a seus servos, para iluminar e aplicar seus
ensinos.”
Alguns críticos debatem
sobre o grau de inspiração dos escritos de Ellen White e os empréstimos
literários em suas obras. Nem precisariam fazê-lo, pois praticamente todos os
tipos de questionamentos e análises foram feitos pelos próprios adventistas ao
longo do tempo. Desde que Dudley Canright se tornou o pai dos críticos
whiteanos, muitos outros apareceram usando o mesmo tipo de arsenal,
especialmente a acusação de plágio. Porém, ela tem sobrevivido a todos. De
fato, Ellen White citou muitos autores e contou com a ajuda de uma equipe de
assistentes, mas fez as coisas dentro das regras da época e do seu conceito de
inspiração. Esse conceito, como expresso na introdução de O Grande Conflito, vê
os escritos sagrados como “uma união do divino com o humano”, mas apresentados
na linguagem humana e refletindo a cultura e o estilo dos diferentes autores.
LEGADO
Movida pelo Espírito de
Deus e pela necessidade da igreja, Ellen White escreveu o impressionante total
de mais de 100 mil páginas. Um balanço por ocasião de sua morte indica 26
livros publicados, 200 folhetos e panfletos e 5 mil artigos, sem falar num
grande número de manuscritos, cartas e diários. Hoje, só em português são 118
títulos, incluindo as meditações. Por exemplo, o livro Caminho a Cristo já foi
traduzido para mais de 165 línguas e vendeu mais de 100 milhões de cópias.
Falando com a
autoridade de profetisa, mas apresentando insights profundamente teológicos,
ela ajudou a decifrar os meandros da história religiosa do mundo. Sua
metanarrativa do grande conflito antecipou um estilo de fazer teologia
valorizado na atualidade.
Antes de morrer, Ellen
White tomou providências em testamento, modificado várias vezes (1891, 1901,
1906, 1909, 1912), para que seus escritos perpetuassem seu legado. O Ellen G.
White Estate foi criado como expressão do desejo dela para manter a custódia de
seus escritos, lidar com suas propriedades, preparar compilações de seus
manuscritos e assegurar a impressão de novas traduções.
Seu testamento final,
datado de 9 de fevereiro de 1912, nomeou uma comissão de cinco líderes para
servirem como depositários: Arthur G. Daniells, presidente da Associação Geral;
William C. White, seu filho; Clarence Crisler, um estimado secretário dela por
muitos anos; Charles Jones, gerente da Pacific Press; e Francis Wilcox, editor
da Review and Herald. Até hoje, a instituição procura “manter viva a visão”,
como diz seu slogan.
Ao falar na cerimônia
de despedida de Ellen White em Battle Creek, que já não era o centro do
adventismo, mas teve a honra de sediar o adeus à profetisa, o presidente Arthur
Daniells falou de sua confiança no legado que ela deixaria: “Sua voz está
silente; sua pena foi colocada de lado. Porém, a poderosa influência dessa vida
ativa, vigorosa e plena do Espírito continuará.” Para ele, o monumento que ela
deixou “nunca irá ruir nem perecer”. Ele não se referia apenas a seu corpo
literário, mas às suas contribuições em muitas áreas.
Mulher de visão, Ellen
White foi também uma visionária que ajudou a estabelecer uma igreja e forjar a
alma de um povo. Mensageira e profetisa, falou de muitas maneiras, pois um
profeta não comunica apenas com as palavras, mas pelas ações. Suas iniciativas,
decisões, elogios e censuras se tornam parâmetros para as gerações seguintes.
No livro Adventism and the American Republic, Douglas Morgan afirma que Ellen
White influenciou “todos os aspectos da crença e vida adventista do sétimo
dia”.
Os escritos de Ellen
White, que era apaixonada pela Bíblia e por Jesus, são um tesouro inesgotável.
Assim como tiramos “coisas novas e coisas velhas” do depósito inspirado das
Escrituras (Mt 13:52), do armazém dos testemunhos tiramos coisas para todas as
necessidades. Quando o Espírito de Deus se manifesta, o resultado é tão rico
que podemos explorar a mina da verdade por cem anos ininterruptos, extraindo
mensagens, conselhos e conceitos, sem esgotá-la.
“A responsabilidade de
minha obra é preparar um povo que subsista no dia do Senhor”, ela escreveu
(Mensagens Escolhidas, v. 2). “Seja ou não poupada a minha vida, meus escritos
falarão sem cessar, e sua obra irá avante enquanto o tempo durar”, acrescentou.
Contudo, para obter o benefício, é necessário ler e estudar os escritos da
autora inspirada. Todo esse tesouro será inútil se não for explorado. O legado
de Ellen White nesses cem anos não deve ser apenas da igreja, mas de cada um;
não deve ficar apenas no papel, mas ser guardado no coração e aplicado à vida.
MARCOS DE BENEDICTO é
editor da Revista Adventista
Fontes
Arthur L. White, Ellen White: Mulher de Visão (CPB,
2015).
Denis Fortin e Jerry Moon (orgs.), The Ellen G. White
Encyclopedia (Review and Herald, 2013).
Ellen G. White,
Primeiros Escritos (CPB, 1991).
George R. Knight, Walking with Ellen White (Review and
Herald, 1999).
Terrie Dopp A. Amodt, Gary Land e Ronald L. Numbers
(orgs.), Ellen Harmon White: American Prophet (Oxford University Press, 2014).
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