Teologia

domingo, 15 de outubro de 2023

A TERRA PRÉ-EXISTENTE: REFLEXÕES SOBRE A IDEIA DE QUE A TERRA JÁ EXISTIA ANTES DA SEMANA DA CRIAÇÃO EM GÊNESIS 1


 Ricardo André

INTRODUÇÃO:

A narrativa da criação em Gênesis 1 é uma das histórias mais conhecidas da Bíblia e é fundamental para muitas tradições religiosas, especialmente o Cristianismo e o Judaísmo. A passagem descreve a criação do mundo em seis dias, culminando com a criação do homem e da mulher no sexto dia, e Deus descansando no sétimo dia.  No entanto, existe uma questão intrigante que tem sido debatida ao longo dos séculos: a Terra já existia antes da semana da criação?

Os primeiros versículos de Gênesis 1 fornecem um ponto de partida para explorar essa questão. Eles afirmam: "No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus se move sobre as águas" (Gênesis 1:1-2, NVI). Alguns estudiosos argumentam que esses versículos sugerem a existência prévia da Terra, que estava "sem forma e vazia" antes do ato criativo descrito no restante do capítulo.

Há várias interpretações sobre o estado da Terra antes da criação da luz, dos céus, das plantas e dos animais. Alguns acreditam que a Terra pré-existente era um caos desordenado e vazio, enquanto outros veem como uma matéria-prima não organizada, esperando uma intervenção criativa de Deus.

INTERPRETAÇÕES TEOLÓGICAS:

1) A Teoria criacionista tradicional: Alguns grupos religiosos, defendem a interpretação literal do Gênesis 1. Eles acreditam que a Terra foi criada em sua forma atual, com uma semana de criação literal que ocorreu há cerca de 6.000 anos. Nessa perspectiva, a Terra não existia antes dessa semana. Ainda segundo essa teoria, Gênesis 1:1 é parte do primeiro dia da semana da criação. Desse modo, o verso 2 descreve a condição da Terra imediatamente após a criação dos “céus e da Terra” – o nosso planeta e o céu atmosférico que o circunda – e antes da criação da luz. O quarto mandamento da lei de Deus afirma: “Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou” (Êx 20:11). De acordo com a teoria criacionista tradicional, a expressão “tudo o que neles existe” inclui a matéria-prima dos céus e da Terra.

Ainda segundo essa interpretação, a criação ex nihilo (a partir do nada), argumenta que Deus criou o universo a partir do zero, sem utilizar preexistências. Isso é consistente com a ideia de um Deus todo-poderoso que não depende de elementos pré-existentes para criar.

Essa teoria foi defendida pelos reformadores protestantes do século XVI, Martinho Lutero e John Calvino. A escritora cristã Ellen G. White também defendia essa interpretação. É o que se depreende de sua afirmação: “A teoria de que Deus não criou a matéria ao trazer à existência o mundo não tem fundamento. Na formação de nosso mundo, Deus não dependeu de matéria preexistente” (Testemunhos Para a Igreja, v. 8, p. 258).

É importante ressaltar que, um dos problemas com essa teoria é que se o planeta Terra foi criado no primeiro dia (“no princípio”), o relato de Gênesis 1 informa que o Sol pareceu três dias depois, no 4º dia da semana literal da criação (Gn 1:14-18). Caso a Terra fosse mais antiga que o Sol, em torno do que ela teria orbitado até o 4º dia da criação? Com a palavra os que defendem a ideia da criação em uma única etapa.

2) A teoria criacionista da Terra Antiga: Outra interpretação teológica aceita por muitos é o criacionismo da Terra Antiga. Segundo essa visão, a Terra já existia antes da semana da criação, e os "dias" de Gênesis 1 podem ser entendidos como períodos de tempo significativos, não necessariamente dias literários de 24 horas. As Testemunhas de Jeová é um dos grupos religiosos que promovem essa teoria.

Na obra A Vida – Qual a sua origem? A evolução ou a criação?, da Sociedade Torre de Vigia, ed. de 1985, afirma-se: “A primeira parte de Gênesis indica que a Terra já poderia existir bilhões de anos antes do primeiro “dia” de Gênesis, embora não diga por quanto tempo (p. 26). Mais adiante é dito que “pareceria razoável que os “dias” de Gênesis abrangessem, igualmente, longos períodos – milênios” (p. 27). Entretanto, a ideia de que os dias da semana da criação representaram longos períodos de anos não encontra apoio bíblico.

A palavra hebraica traduzida por dia é “yom” (Nisto Cremos: As 28 Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia [CPB, 2018], p. 89). De fato, o termo “yom” pode referir-se a um período de mais de 24 horas. Mas no caso dos dias da criação, nem de perto isto pode ser, pois quando “a Bíblia emprega a palavra “dia” associada a um numeral em um relato histórico, “dia” sempre se refere a um dia normal; por exemplo, “no primeiro dia”, “no segundo dia”, etc. (Nm 7:12-78; 29:1-35)” (Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 106). Isto ocorre nos dias da semana mencionados em Gênesis. Vejamos:

1) “Houve tarde e manhã, o primeiro dia” (Gênesis 1.5);

2) “Houve tarde e manhã, o segundo dia” (verso 8);

3) “Houve tarde e manhã, o terceiro dia” (verso 13);

4) “Houve tarde e manhã, o quarto dia” (verso 19);

5) “Houve tarde e manhã, o quinto dia” (verso 23);

6) “Houve tarde e manhã, o sexto dia” (verso 31);

Deve-se ressaltar também outros fatos importantes que nos impedem de crer que Deus tenha criado o mundo em milhares de anos ao invés de criá-lo em “dias”: Os versos de Gênesis 1 falam que a semana da criação era composta de “tarde e manhã”, e não de “milhares de anos”. “A declaração literal: ‘Foi tarde [com as horas sucessivas da noite], e foi manhã [com as horas sucessivas do dia], dia um é claramente a descrição de um dia astronômico, isto é, um dia com a duração de 24 horas. [...] A duração do sétimo dia necessariamente determina a extensão dos outros seis” (Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia [CPB, 211], v. 1, p. 191).

O teólogo Jirí Moskala destaca: “Outros textos bíblicos também interpretam os sete dias da criação de forma literal. Por exemplo, o quarto mandamento contém a frase: “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a Terra [...] e, ao sétimo dia, descansou” (Êx 20:11); e, em Êxodo 31:17, os israelitas são instruídos a guardar o sábado “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a Terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento”. Em ambos os textos, os seres humanos recebem instrução para seguir o exemplo de Deus e descansar no sétimo dia” (Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 106, 107). Portanto, o quarto mandamento não faria qualquer sentido se cada dia da criação representasse milhares de anos. “A admissão de que os acontecimentos da primeira semana exigiram milhares de milhares de anos, fere diretamente a base do quarto mandamento [...]. É a incredulidade em sua forma mais traiçoeira, e portanto mais perigosa; seu verdadeiro caráter se acha tão disfarçado que é tal opinião mantida e ensinada por muitos que professam crer na Bíblia” (Ellen G. White, Patriarcas e Profetas [CPB, 2007], p. 111).

Na tentativa de dá uma base bíblica a sua teoria de que os dias da criação representam longos períodos de anos, as Testemunhas de Jeová citam em suas literaturas o texto de 2 Pedro 3:8, que diz: “Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia.” Pedro não está dizendo que cada dia da criação equivale a mil anos pelas seguintes razões:

1) Ele não estava falando da criação do Gênesis, mas, da volta de Jesus. Por isso, o argumento dele é o de que o Senhor sabe melhor que ninguém o dia que tem de voltar a esse mundo para terminar com o pecado.

2) A conjunção comparativa – como (como mil anos) está apenas comparando um dia de 24h com mil anos porque Deus é eterno e, para Ele, não faz diferença um dia de mil anos. Pedro não usou o termo “um dia é mil anos”. Portanto, ele comparou um dia com mil anos e não afirmou que um dia é mil anos.

3) A teoria da lacuna ou do “intervalo passivo”: Muitos cristãos defendem a existência de uma "lacuna" ou “intervalo” de tempo entre os versículos de Gênesis 1:1, 2 e 1: 1:3-31, argumentando que a expressão “no princípio criou Deus os Céus e a Terra” refere-se à criação do Universo, incluindo a Terra em seu estado bruto, há bilhões de anos. Portanto, quando a História começou, a Terra já estava aqui, mas ainda era tohu vhohu (“sem forma e vazia”), escura e úmida. Na última parte do versículo 2 diz-se que o Espírito Santo pairava por sobre as águas, mostrando a existência da água bem antes da semana da criação. Depois disso, em outro estágio, a 6.000 anos atrás, Deus organizou os elementos em nosso planeta e fez surgir nele a vida, em seis dias consecutivos de 24 horas. No sétimo dia, Ele terminou Sua obra e descansou (Gn 2:2). Para esses cristãos, essa teoria se harmoniza com as descobertas científicas sobre a idade da Terra, que indicam que o planeta tem bilhões de anos. Essa abordagem busca manter a integridade da fé religiosa sem negar os avanços da ciência nesse aspecto.

Importante dizer que, os cristãos que promovem essa teoria não pretendem, de forma alguma, endossar as datações geológicas de milhões de anos adotadas pelos evolucionistas. A ideia de que as camadas geológicas e os fósseis ali contidos datam de milhões de anos confronta com o relato bíblico da criação, que revela que a criação da vida é recente.

QUAL TEORIA É SUSTENTADA PELA IGREJA ADVENTISTA?

Para responder a essa pergunta citamos a Enciclopédia Adventista do Sétimo Dia: “Os adventistas sempre defenderam a crença na criação ex nihilo – que Deus não dependeu de matéria preexistente quando trouxe a Terra à existência. Eles geralmente admitem como fato consumado que, no primeiro dia da criação, Deus criou a matéria que compunha a Terra e a seguir prosseguiu com a obra dos seis dias. Desde o início, porém, tem havido alguns adventistas para quem Deus, mediante Sua palavra, criou a substância da Terra antes dos eventos ocorridos nos seis dias literais da criação” (p. 357). (Citado em Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 103).

Como se vê, a teoria predominante entre os adventistas é a criacionista tradicional. Contudo, nem sempre foi assim. Nos primórdios do adventismo, a teoria da lacuna era predominante entre os pioneiros adventistas. MC Wilcox em 1898 escreveu: “Quando Deus criou, ou trouxe à existência, o céu e a terra? 'No princípio.' Quando foi esse 'início', quanto tempo durou, é inútil conjecturar; pois não é revelado. É evidente que foi um período anterior aos seis dias de trabalho” ("O Evangelho em Gênesis Um", The Signs of the Times, 24.27 (7 de julho de 1898): 16). Hoje, ainda há muitos adventistas que sustentam a teoria do “intervalo passivo”. Estou entre eles. Até porque, como afirmou o teólogo adventista Gerhard Pfandl, “o primeiro capítulo de Gênesis admite, portanto, duas teorias: a do intervalo passivo e a criacionista tradicional” (Interpretando as Escrituras: descubra o sentido dos textos mais difíceis da Bíblia [CPB, 2019], p. 103).

Embora as Sagradas Escrituras não digam explicitamente que o Universo e a própria Terra já existiam muito antes do início da vida na Terra, temos boas razões bíblicas para acreditar nessa interpretação. Em primeiro lugar, em Jó 38:4-6, Deus afirma que houve seres vivos, chamados de “filhos de Deus”, que rejubilaram enquanto Ele “lançava os fundamentos da Terra”. A implicação lógica desse texto é que seres preexistentes viviam no Universo antes da criação da Terra. Acreditar que todo o Universo passou a existir a partir da semana da criação traz sérias dificuldades para o intérprete desse texto. Em Segundo lugar, a serpente estava presente no jardim do Éden antes que Adão e Eva pecassem (Gn 3:1; Ap 12:9), sem que haja qualquer referência à sua origem, sugerindo que ele já existia naquela semana inicial. O livro de Ezequiel descreve Satanás no jardim do Éden como coberto de pedras preciosas (Ez 28:13).

Ainda em referência a Lúcifer, Isaías 14 diz-nos que, quando ele rebelou-se contra Deus, alguns elementos cósmicos já existiam: ele desejava subir “acima das estrelas de Deus” (v. 13) e “acima das mais altas nuvens” (v. 14), evidenciando nitidamente que o Universo, com seus elementos básicos (tempo, matéria e vida), já existiam antes da semana da criação.

Em terceiro lugar, o próprio relato de Gênesis 1:1-3 deixa claro que, quando Deus criou a luz, no primeiro dia, o Espírito de Deus “pairava por sobre as águas”. O teólogo adventista William H. Shea, ao comentar essa passagem no Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, reconhece “o fato de que a Terra inerte se achava em um estado aquoso antes dos acontecimentos da semana da criação” (p. 469). Vale ressaltar que, na história do adventismo, a teoria de que a Terra poderia ter sido criada em um estado aquoso, sem forma e vazia antes da semana da criação não é totalmente nova. De acordo com o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, várias pessoas, desde os tempos do pioneiro adventista Uriah Smith, década de 1860, tinham a compreensão de “que o testemunho bíblico sugere, ou pelo menos permite sugerir, que a substância da Terra e do sistema solar tenha resultado, pelo menos em parte, de atividade criadora ocorrida anteriormente à semana da Criação (v. 1, p. 24).

Em quarto lugar, ao lermos o relato dos dias da criação em Gênesis 1, notamos que cada dia é introduzido com a expressão “e disse Deus”, e concluído com “houve tarde e a manhã, o primeiro dia”, “houve tarde e a manhã, o segundo dia”, e assim sucessivamente. Acontece, que esse padrão repetitivo empregado para cada dia da criação não é usado nos versículos 1 e 2, o que sugere a ideia de que esses versos não fazem parte do primeiro dia da criação (v. 3-5), mas a um tempo ou período muito anterior a semana da criação. Desse modo, não obstante os eventos ocorridos na semana da criação tenham acontecido entre 6 e 10 mil anos, as Sagradas Escrituras apontam diversas evidências de que o Universo, assim como a própria Terra em seu estado físico, é muito mais antigo que isso.

Particularmente, não tenho dúvidas de que, o relato da criação apresenta a ação de Deus em dois momentos distintos: o primeiro, criando a matéria e a energia (Gn 1:1, 2); e o segundo, dando forma a essa matéria e trazendo à existência seres vivos (Gn 1:3-31). Crer dessa forma não significa diminuir o poder criador de Deus. Sendo soberano, ele pode escolher criar como desejar, seja de uma vez ou em etapas, sem que isso signifique apoio à teoria da evolução.

Vale aqui destacar um pensamento relevante de Ellen G. White: “Na verdadeira ciência não pode existir coisa alguma contrária aos ensinamentos da Palavra de Deus, uma vez que ambas são originadas do mesmo Autor. A correta compreensão das duas sempre provará que se encontram em mútua harmonia” (Testemunhos Para a Igreja, v. 8, p. 258). A ciência mostra que o Universo e o próprio planeta Terra são muito mais antigos que a vida na Terra. Nesse aspecto, as Sagradas Escrituras e a ciência estão, como afirmou Ellen White, “em mútua harmonia”, e nos mostra que ciência e Bíblia, quando há “correta compreensão das duas”, podem andar de mãos dadas.

CONCLUSÃO:

A questão de que a Terra já existia antes da semana da criação em Gênesis 1 é um tópico complexo que tem sido desafiado por teólogos e estudiosos ao longo da história. As duas interpretações teológicas, como a teoria criacionista tradicional e a teoria da lacuna prevalecentes no meio adventista, fornecem maneiras diversas de abordar essa questão. Cada cristão é livre para escolher a que melhor responde as suas necessidades. Independentemente da visão que alguém adote, é importante lembrar que a mensagem fundamental de Gênesis 1 é uma crença na criação divina e no poder criativo de Deus.

A discussão sobre a Terra pré-existente não deve obscurecer o ponto central da passagem, que é o reconhecimento de que o relato da criação em Gênesis foi um fato histórico, de um Deus amoroso que criou todas as coisas visíveis e invisíveis, em seis dias de 24 horas. Portanto, embora esse debate teológico possa ser interessante e desafiador, ele não deve desviar a atenção da fé fundamental nas Escrituras Sagradas e na importância da adoração a Deus como Criador. A doutrina da criação deve nos levar a uma experiência de admiração e obediência a Deus Yahweh, à semelhança do que ocorreu com o profeta Isaías (cap. 6).

 

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