Aleksandar
S. Santrac
Somente pelo Espírito
de Deus podemos ler e viver corretamente o que dizem as Escrituras. Não devemos
lê-las baseados e orientados por nossa própria tradição. Caso contrário, nunca
iremos progredir na compreensão espiritual da Palavra de Deus.
Certa vez, “um rabino
disse ao seu povo que estudasse a Torá, pois ela iria colocar as Escrituras em
seu coração. Um dos ouvintes perguntou: ‘Por que em nosso coração, e não dentro
dele?’ O rabino respondeu: ‘Só Deus pode colocar as Escrituras lá dentro. Mas a
leitura do texto sagrado pode colocá-las em seu coração, e então, quando o seu
coração se abrir, as palavras sagradas cairão lá dentro.’”1
Toda a vez que um
pastor ou membro da igreja usa as Sagradas Escrituras, seja numa leitura
devocional particular ou na pregação e ensino, “as palavras sagradas têm que
cair dentro do coração”. Para lermos e experimentarmos a Palavra dessa maneira,
primeiro temos que nos tornar plenamente conscientes da natureza única dos
Escritos Sagrados. Essa compreensão e essa experiência não devem ser
consideradas sem importância. De que trata a Bíblia? Qual é o escopo da
autoridade das Escrituras? Qual é a diferença entre o Livro de Deus e outras
fontes cristãs na tradição da igreja? Como devemos interpretar a Bíblia, a fim
de preservar o seu propósito e poder originais, e torná-la um instrumento
transformador? Ao responder a essas perguntas, essas questões quanto à
autoridade e interpretação da Bíblia certamente se tornam relevantes.
Este artigo procura
lidar com essas questões de autoridade e interpretação em termos teológicos
contemporâneos, mas, em primeiro lugar, a inevitável relação entre as
Escrituras e a tradição da igreja deve ser discutida.
A
autoridade das Escrituras e a tradição da igreja
A doutrina evangélica
protestante de sola Scriptura é um dos pilares da Reforma. Uma definição
prática do princípio de sola Scriptura, com base na perspectiva protestante
tradicional, pode incluir: (1) a suprema e absoluta autoridade das Escrituras,
conforme foi dada originalmente, como a palavra final para todas as doutrinas e
práticas; (2) a suficiência das Escrituras como autoridade final escrita da
parte de Deus; (3) a clareza (perspicuidade) essencial da mensagem bíblica; (4)
a primazia das Escrituras sobre toda tradição (em vez de uma rejeição total à
tradição); e (5) o princípio de que as Escrituras interpretam as Escrituras sem
que haja uma autoridade externa.2 Ainda existe hoje uma considerável
controvérsia sobre todos esses pontos.3 Este artigo se centralizará nos pontos
4 e 5.
Nosso ponto de vista
sobre a autoridade das Escrituras deve estar baseado no princípio da sola
Scripturaque, na realidade é transformada na prima Scripturaou na primazia das
Escrituras, acima de toda a tradição da igreja. “Pela Escritura somente”
significa que cada tradição em particular deve ser avaliada ou medida pelo
padrão original dado pela Palavra escrita de Deus. É intrigante ver que até
mesmo as Escrituras pressupõem a existência da tradição oral e escrita na
igreja. Nem todas as referências bíblicas falam da tradição em termos
positivos.4 No entanto, a transmissão da tradição autorizada é mencionada em
linguagem positiva – por exemplo, em 1 Coríntios 11:2, e especialmente em 2
Tessalonicenses 2:15 lemos: “Portanto, irmãos, permaneçam firmes e apeguem-se às
tradições (paradoseis) que foram ensinadas a vocês, quer de viva voz, quer por
carta nossa.”5
É fato bem conhecido
que a teologia católica contemporânea afirma que essa tradição do ensino tem
sido transmitida e “desenvolvida em consonância com as Escrituras hebraicas,
com a Palavra escrita dada por Deus no passado.”6 A compatibilidade entre as
Escrituras e a tradição, portanto, é aceita. Mesmo que essa consonância se
torne questionável, não se pode negar que a tradição, de fato, teve um papel
normativo na igreja apostólica, e um bom exemplo disso é 1 Coríntios 11:23. O
que Paulo recebeu ele passou adiante. As palavras paradoseis (tradições) e
paradidonai (adiante) são encontradas no Novo Testamento, mas não na Septuaginta
(LXX).7Esse argumento é usado dentro da teologia católica tradicional como
evidência de que o Novo Testamento é principalmente a proclamação oral das
Escrituras do Antigo Testamento, e não as Escrituras em si. Por outro lado, os
evangélicos afirmam que os tessalonicenses acreditavam somente nas paradoseis
ouvidas diretamente dos lábios de Paulo.8 David T. King, um erudito evangélico,
afirma que essa tradição “relacionada à transmissão da mensagem apostólica”,
[...] é entendida como aquela que foi transmitida de acordo com as
Escrituras.”9 Todo ensino, portanto, transmitido no espírito da Palavra
permanece como uma tradição autêntica na igreja.
Recentemente, o
evangelicalismo progressivo parece confirmar a necessidade da tradição na
igreja. Esse movimento surgiu entre os evangélicos progressistas mais jovens,
adotando posições mais próximas ao catolicismo romano, a fim de evitar o risco
de múltiplas interpretações subjetivas das Escrituras.10 Afirmam que a
autoridade das Escrituras é inseparável da tradição da igreja e que a função e
a interpretação da Bíblia são impossíveis fora dessa mesma tradição.11 Sua
conclusão final pode ser duvidosa, mas não podemos negar a realidade da
tradição da igreja.
Um judeu messiânico,
David H. Stern, faz o seguinte comentário sobre 2 Tessalonicenses 3:15 no Jewish
New Testament Commentary, de sua autoria: “Tanto o cristianismo quanto o
judaísmo têm tradições que não são explicitamente declaradas nas Escrituras. É
errado dizer, como fazem alguns protestantes, que o judaísmo tem tradições, mas
que o cristianismo está livre delas, como se isso fosse uma virtude. Não só tal
noção, por si mesma, é antibíblica, como pode ser comprovada por esse
versículo, mas, de fato, é falsa e, na verdade, impossível. Um grupo da igreja
pode ter uma ideologia que defenda ‘somente as Escrituras’ e se oponha a
qualquer tipo de tradição; mas um observador – que não precisa ser um sociólogo
profissional – não terá dificuldade alguma em discernir suas tradições. A vida
sem tradições simplesmente não existe.”12
A propósito, devido aos
recentes debates sobre as Escrituras e a tradição, a teologia adventista
provavelmente tenha que desenvolver essa relação muito mais do que antes.
Inegavelmente, o adventismo, por sua própria existência como comunidade,
adquiriu uma tradição histórica baseada nos ensinamentos que tiveram a
influência de seus fundadores e pioneiros. Já que sempre respeitamos o
princípio de Sola Scriptura, e a autoridade única e absoluta das Escrituras,
tanto na teologia como na prática, também temos que encontrar uma forma adequada
de articular a relação entre a Bíblia e a nossa tradição.
Se o princípio de sola
Scriptura é entendido como prima Scriptura, a teologia adventista deveria
avaliar ou mensurar todas as fontes extrabíblicas, incluindo as formas mais
abalizadas da tradição adventista. Caso contrário, teríamos que descartar o
princípio de as Escrituras somente e considerar as fontes extrabíblicas como
tendo tanta importância e autoridade quanto a Palavra de Deus, o que nos
tornaria ritualistas. Portanto, há apenas uma Palavra de Deus com permanente
autoridade: isto é, as Sagradas Escrituras, pelas quais todas as outras
doutrinas, revelações, visões e ensinamentos são julgados.
Para resumir, o âmbito
da autoridade das Escrituras é expresso da melhor forma pelo princípio da prima
Scriptura. Toda a tradição da igreja, que abrange a experiência histórica e a
interpretação da Palavra de Deus, pelo povo de Deus, assim como toda revelação
contemporânea, devem ser examinadas pela Palavra revelada na Bíblia. Conforme
disse o apóstolo Paulo: “Não apaguem o Espírito. Não tratem com desprezo as
profecias, mas ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom.”13
A
interpretação das Escrituras
O escopo deste artigo
não permite uma discussão sobre a complexa história e a metodologia da
interpretação bíblica.14 Nosso propósito é tão somente responder à questão
fundamental: Como podemos interpretar corretamente as Escrituras, a fim de
preservar a sua autoridade e intenção originais, e evitar a armadilha dos
múltiplos significados?
O princípio luterano
diz que a Sacra Scriptura sui ipsius interpres (as Sagradas Escrituras a si
mesmo se interpretam) tornando-se o princípio fundamental da interpretação
protestante da Bíblia.15 Lutero acreditava que o significado da Bíblia estava
escondido dentro da própria Palavra de Deus. Sacra Scriptura sui ipsius
interpres significa que o texto por si só faz com que se preste atenção a ele.
Não é o intérprete que dá sentido ao texto ou torna o texto compreensível. O
próprio texto expressa o que ele tem a dizer por si mesmo.
No entanto, em algumas
discussões recentes, evangélicos contemporâneos afirmam que esse princípio era
muito simplista e que mesmo Lutero foi tendencioso na interpretação das
Escrituras16, reconhecendo que os preconceitos da tradição relacionados às
Sagradas Escrituras não podem ser evitados.
Infelizmente, os
ensinamentos luteranos preservaram algumas doutrinas antibíblicas. Portanto, o
princípio “pela Escritura somente” deve ser condicionado à compreensão adequada
da comunidade da igreja (autoridade externa), uma vez que o texto pertence e é
criado dentro da comunidade da igreja, e o leitor e intérprete é o corpo de
Cristo. A fim de evitar uma dupla fidelidade para com as Escrituras e a
tradição da igreja, que sempre interpreta as Escrituras, temos que encontrar um
método de interpretação bíblica com base apenas nas Escrituras, mas também
idealizado corretamente dentro da comunidade de fé. O que quero dizer com isso?
A fim de evitar uma
leitura tendenciosa das Escrituras, temos que ler e interpretá-las somente com
a ajuda do Espírito de Deus. Isso não diminui ou enfraquece o papel da
comunidade de fiéis como intérprete. Em primeiro lugar, o Espírito Santo sempre
faz com que a comunidade se mantenha fiel e obediente a Cristo. O Espírito
também transforma a nossa mente, tornando-a dirigida para a Bíblia e
centralizada em Cristo. Portanto, é somente pelo Espírito de Deus que podemos
ler e viver corretamente o que dizem as Escrituras. Não devemos lê-las baseados
e orientados por nossa própria tradição. Caso contrário, nunca iremos progredir
em nossa compreensão espiritual da Palavra de Deus.
A tradição da igreja é
uma necessidade, uma vez que sempre haverá diferentes ensinamentos cristãos,
novas revelações, visões e experiências dentro da comunidade de fé. A
comunidade de fé, cheia do Espírito, é uma intérprete dinâmica da Palavra, e só
a comunidade de fé cheia do Espírito é capaz de avaliar ou examinar cada
tradição da igreja. A comunidade de fé cheia do Espírito é o corpo de Cristo
liderado pela “ala de ensino” da igreja (professores e líderes que têm dons
espirituais de sabedoria, conhecimento e uma compreensão mais profunda da
Palavra de Deus). Dessa forma, evitamos uma dupla fidelidade: tanto às
Escrituras como à tradição das igrejas tradicionais, e também uma leitura
contemporânea unilateral e tendenciosa dentro da tradição da igreja.
Podemos resumir a
questão desta forma: em primeiro lugar, o principal propósito da Bíblia é
transformar o leitor em um discípulo cheio do Espírito de Cristo, que pertence
a uma comunidade de fé cheia do Espírito. Em segundo lugar, a autoridade da
Bíblia para fazer isso está baseada no fato de que a revelação é inspirada por
Deus (inspirada ou “cheia do Espírito”). Portanto, a interpretação adequada das
Escrituras como a Palavra inspirada de Deus só pode ser feita pela comunidade
de fé cheia do Espírito, liderada por professores e líderes cheios do Espírito.
Esse método de interpretação não será exaustivo, mas certamente irá reduzir de
forma significativa as ideias preconcebidas e os preconceitos.
Implicações
para os estudantes da Bíblia e obreiros pastores
Essa discussão sobre a
autoridade e a interpretação das Sagradas Escrituras leva-me a fazer as
seguintes sugestões para os estudantes da Bíblia, professores e obreiros
ligados à obra pastoral:
Defenda a autoridade
das Escrituras. Quando nós, como ministros, vivemos a
Palavra, sentimos paixão pela Palavra, ensinamos a Palavra e pregamos a Palavra
das Escrituras, defendemos a autoridade da Bíblia de maneira mais prática. O
poder da Palavra é o único poder que pode nos transformar e nos manter fiéis.
Esteja ciente de sua
própria tradição, e não restrinja o Espírito.
Nenhuma comunidade da igreja surgiu em um vácuo espiritual. Cada comunidade de
fé tem a sua tradição histórica. A tradição não é um conceito falso. É uma
necessidade histórica e o resultado do desenvolvimento da comunidade da igreja.
Portanto, esteja ciente das tradições da sua comunidade e faça um esforço para
ler e avaliar essas tradições à luz das Escrituras Sagradas e não vice-versa.
Também, esteja pronto a permitir que os membros da igreja expressem suas
crenças e opiniões teológicas em um fórum apropriado.
Seja um estudante,
professor, ou ministro cheio do Espírito. Dedique
tempo para investigar profundamente as Escrituras. O Espírito Santo não virá
com o estudo ocasional e rápido da Bíblia. Esteja sempre pronto a ser
surpreendido por uma nova visão espiritual. Ser receptivo para com Deus é um
pré-requisito para o recebimento do Espírito Santo. Esteja pronto a examinar
suas crenças tendenciosas e práticas pecaminosas. Lembre-se, é somente por meio
do Espírito Santo que a realidade de Cristo se torna plenamente compreensível e
somente pelo Espírito é possível fazer uma abordagem apropriada da Palavra de
Deus.
Seja um professor cheio
do Espírito Santo na comunidade de fiéis. Ensine
diligentemente a Palavra de Deus e ore pelo recebimento do Espírito para que
tenha discernimento e compreensão. Seja um líder e reformador entre os fiéis.
Oriente-os a buscarem uma compreensão e uma interpretação correta das
Escrituras. Não hesite em ouvir as ideias espirituais dos membros da igreja
local e aja em conformidade com as Escrituras. Ensine a sua comunidade a ser
receptiva à direção do Espírito em cada interpretação bíblica recebida.
O Espírito Santo sempre
nos conduzirá à compreensão e à interpretação verdadeira da Palavra de Deus.
Isso requer trabalho diligente da parte da comunidade de fé dedicada ao seu
estudo e interpretação, mas, certamente, traz resultados mais positivos.
Martinho Lutero advertiu certa vez: “Temo que as escolas [e igrejas] revelem os
portões do inferno, a menos que trabalhem diligentemente para explicar as
Santas Escrituras e gravá-las no coração dos jovens. ”17
Aleksandar
S. Santrac, DPhil pela Universidade de Belgrado,
Sérvia, e PhD pela Universidade North-West, África do Sul), é professor de
Ética e Religião e presidente do Departamento de Religião na Universidade
Adventista de Washington, Takoma Park, Maryland, EUA; é também professor
extraordinário de Dogmática na Universidade North-West, África do Sul. E-mail: asantrac@wau.edu
REFERÊNCIAS
1. Anne Lamott,
Plan B: Further Thoughts on Faith (http://www.goodreads.com/quotes/tag/
scripture).
2. Norman L. Giesler and Ralph E. MacKenzie, Roman
Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences (Grand Rapids, Michigan:
Baker Books, 1995), p. 178, 179.
3. Ver Aleksandar S. Santrac, Sola Scriptura: Benedict
XVI’s Theology of the Word of God (Saarbrücken, Germany: Lambert Academic
Publishing, 2013).
4. Ver Mateus 15:2;
Marcos 7:3; Gálatas 1:14; Colossenses 2:8.
5. Todas as citações
bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional.
6. Joseph Fitzmyer, Scripture: The Soul of Theology
(New York: Paulist Press, 1994), p. 77.
7. Ibid., p. 75.
8. John MacArthur Jr., “The Sufficiency of the Written
Word: Answering the Modern Roman Catholic Apologists,” emDon Kistler, ed., Sola
Scriptura: The Protestant Position on the Bible (Lake Mary, Florida: Ligonier
Ministries, 2009), p. 71-90.
9. David T. King, “A Biblical Defense of the
Reformation Principle of Sola Scriptura, ” em Holy Scripture: The Ground and Pillar
of Our Faith, vol. 1. (Battle Ground, Washington: Christian Resources, 2001),
p. 113.
10. Donald Bloesch, Holy Scripture: Revelation,
Inspiration & Interpretation (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
1994), p. 153; S.M. Hutchens, “The Bible under Spirit and Church,” Touchstone 4
(2): p. 3-10.
11. Bloesch, 155; Stanley J. Grenz, “How Do We Know
What to Believe?” in William C. Placher, ed., Essentials of Christian Theology
(Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox, 2003), 33; John R. Franke,
“Scripture, Tradition and Authority: Reconstructing the Evangelical Conception
of Sola Scriptura” in Vincent E. Bacote, Laura C. Miguélez, & Dennis L.
Okholm, Evangelicals & Scripture: Tradition, Authority and Hermeneutics
(Downers Grove, Illinois: Intervarsity Press, 2004), p. 204, 205 e 209, 2010;
William Neil, The Rediscovery of the Bible (New York: Harper & Bros.,
1954), p. 114.
12. David H. Stern, Jewish New Testament Commentary
(Clarksville, Maryland: Jewish New Testament Publications, 1992), p. 630.
13. 1 Tessalonicenses 5:19-21.
14. Ver Santrac: Sola
Scriptura.
15. Ibid., p. 33.
16. Ibid., p. 34-40.
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