Teologia

quinta-feira, 16 de março de 2017

AS ESCRITURAS E A TRADIÇÃO: UMA REFLEXÃO ADVENTISTA SOBRE COMO SE RELACIONAM




Aleksandar S. Santrac

Somente pelo Espírito de Deus podemos ler e viver corretamente o que dizem as Escrituras. Não devemos lê-las baseados e orientados por nossa própria tradição. Caso contrário, nunca iremos progredir na compreensão espiritual da Palavra de Deus.

Certa vez, “um rabino disse ao seu povo que estudasse a Torá, pois ela iria colocar as Escrituras em seu coração. Um dos ouvintes perguntou: ‘Por que em nosso coração, e não dentro dele?’ O rabino respondeu: ‘Só Deus pode colocar as Escrituras lá dentro. Mas a leitura do texto sagrado pode colocá-las em seu coração, e então, quando o seu coração se abrir, as palavras sagradas cairão lá dentro.’”1

Toda a vez que um pastor ou membro da igreja usa as Sagradas Escrituras, seja numa leitura devocional particular ou na pregação e ensino, “as palavras sagradas têm que cair dentro do coração”. Para lermos e experimentarmos a Palavra dessa maneira, primeiro temos que nos tornar plenamente conscientes da natureza única dos Escritos Sagrados. Essa compreensão e essa experiência não devem ser consideradas sem importância. De que trata a Bíblia? Qual é o escopo da autoridade das Escrituras? Qual é a diferença entre o Livro de Deus e outras fontes cristãs na tradição da igreja? Como devemos interpretar a Bíblia, a fim de preservar o seu propósito e poder originais, e torná-la um instrumento transformador? Ao responder a essas perguntas, essas questões quanto à autoridade e interpretação da Bíblia certamente se tornam relevantes.

Este artigo procura lidar com essas questões de autoridade e interpretação em termos teológicos contemporâneos, mas, em primeiro lugar, a inevitável relação entre as Escrituras e a tradição da igreja deve ser discutida.

A autoridade das Escrituras e a tradição da igreja

A doutrina evangélica protestante de sola Scriptura é um dos pilares da Reforma. Uma definição prática do princípio de sola Scriptura, com base na perspectiva protestante tradicional, pode incluir: (1) a suprema e absoluta autoridade das Escrituras, conforme foi dada originalmente, como a palavra final para todas as doutrinas e práticas; (2) a suficiência das Escrituras como autoridade final escrita da parte de Deus; (3) a clareza (perspicuidade) essencial da mensagem bíblica; (4) a primazia das Escrituras sobre toda tradição (em vez de uma rejeição total à tradição); e (5) o princípio de que as Escrituras interpretam as Escrituras sem que haja uma autoridade externa.2 Ainda existe hoje uma considerável controvérsia sobre todos esses pontos.3 Este artigo se centralizará nos pontos 4 e 5.

Nosso ponto de vista sobre a autoridade das Escrituras deve estar baseado no princípio da sola Scripturaque, na realidade é transformada na prima Scripturaou na primazia das Escrituras, acima de toda a tradição da igreja. “Pela Escritura somente” significa que cada tradição em particular deve ser avaliada ou medida pelo padrão original dado pela Palavra escrita de Deus. É intrigante ver que até mesmo as Escrituras pressupõem a existência da tradição oral e escrita na igreja. Nem todas as referências bíblicas falam da tradição em termos positivos.4 No entanto, a transmissão da tradição autorizada é mencionada em linguagem positiva – por exemplo, em 1 Coríntios 11:2, e especialmente em 2 Tessalonicenses 2:15 lemos: “Portanto, irmãos, permaneçam firmes e apeguem-se às tradições (paradoseis) que foram ensinadas a vocês, quer de viva voz, quer por carta nossa.”5

É fato bem conhecido que a teologia católica contemporânea afirma que essa tradição do ensino tem sido transmitida e “desenvolvida em consonância com as Escrituras hebraicas, com a Palavra escrita dada por Deus no passado.”6 A compatibilidade entre as Escrituras e a tradição, portanto, é aceita. Mesmo que essa consonância se torne questionável, não se pode negar que a tradição, de fato, teve um papel normativo na igreja apostólica, e um bom exemplo disso é 1 Coríntios 11:23. O que Paulo recebeu ele passou adiante. As palavras paradoseis (tradições) e paradidonai (adiante) são encontradas no Novo Testamento, mas não na Septuaginta (LXX).7Esse argumento é usado dentro da teologia católica tradicional como evidência de que o Novo Testamento é principalmente a proclamação oral das Escrituras do Antigo Testamento, e não as Escrituras em si. Por outro lado, os evangélicos afirmam que os tessalonicenses acreditavam somente nas paradoseis ouvidas diretamente dos lábios de Paulo.8 David T. King, um erudito evangélico, afirma que essa tradição “relacionada à transmissão da mensagem apostólica”, [...] é entendida como aquela que foi transmitida de acordo com as Escrituras.”9 Todo ensino, portanto, transmitido no espírito da Palavra permanece como uma tradição autêntica na igreja.

Recentemente, o evangelicalismo progressivo parece confirmar a necessidade da tradição na igreja. Esse movimento surgiu entre os evangélicos progressistas mais jovens, adotando posições mais próximas ao catolicismo romano, a fim de evitar o risco de múltiplas interpretações subjetivas das Escrituras.10 Afirmam que a autoridade das Escrituras é inseparável da tradição da igreja e que a função e a interpretação da Bíblia são impossíveis fora dessa mesma tradição.11 Sua conclusão final pode ser duvidosa, mas não podemos negar a realidade da tradição da igreja.

Um judeu messiânico, David H. Stern, faz o seguinte comentário sobre 2 Tessalonicenses 3:15 no Jewish New Testament Commentary, de sua autoria: “Tanto o cristianismo quanto o judaísmo têm tradições que não são explicitamente declaradas nas Escrituras. É errado dizer, como fazem alguns protestantes, que o judaísmo tem tradições, mas que o cristianismo está livre delas, como se isso fosse uma virtude. Não só tal noção, por si mesma, é antibíblica, como pode ser comprovada por esse versículo, mas, de fato, é falsa e, na verdade, impossível. Um grupo da igreja pode ter uma ideologia que defenda ‘somente as Escrituras’ e se oponha a qualquer tipo de tradição; mas um observador – que não precisa ser um sociólogo profissional – não terá dificuldade alguma em discernir suas tradições. A vida sem tradições simplesmente não existe.”12

A propósito, devido aos recentes debates sobre as Escrituras e a tradição, a teologia adventista provavelmente tenha que desenvolver essa relação muito mais do que antes. Inegavelmente, o adventismo, por sua própria existência como comunidade, adquiriu uma tradição histórica baseada nos ensinamentos que tiveram a influência de seus fundadores e pioneiros. Já que sempre respeitamos o princípio de Sola Scriptura, e a autoridade única e absoluta das Escrituras, tanto na teologia como na prática, também temos que encontrar uma forma adequada de articular a relação entre a Bíblia e a nossa tradição.

Se o princípio de sola Scriptura é entendido como prima Scriptura, a teologia adventista deveria avaliar ou mensurar todas as fontes extrabíblicas, incluindo as formas mais abalizadas da tradição adventista. Caso contrário, teríamos que descartar o princípio de as Escrituras somente e considerar as fontes extrabíblicas como tendo tanta importância e autoridade quanto a Palavra de Deus, o que nos tornaria ritualistas. Portanto, há apenas uma Palavra de Deus com permanente autoridade: isto é, as Sagradas Escrituras, pelas quais todas as outras doutrinas, revelações, visões e ensinamentos são julgados.

Para resumir, o âmbito da autoridade das Escrituras é expresso da melhor forma pelo princípio da prima Scriptura. Toda a tradição da igreja, que abrange a experiência histórica e a interpretação da Palavra de Deus, pelo povo de Deus, assim como toda revelação contemporânea, devem ser examinadas pela Palavra revelada na Bíblia. Conforme disse o apóstolo Paulo: “Não apaguem o Espírito. Não tratem com desprezo as profecias, mas ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom.”13

A interpretação das Escrituras

O escopo deste artigo não permite uma discussão sobre a complexa história e a metodologia da interpretação bíblica.14 Nosso propósito é tão somente responder à questão fundamental: Como podemos interpretar corretamente as Escrituras, a fim de preservar a sua autoridade e intenção originais, e evitar a armadilha dos múltiplos significados?

O princípio luterano diz que a Sacra Scriptura sui ipsius interpres (as Sagradas Escrituras a si mesmo se interpretam) tornando-se o princípio fundamental da interpretação protestante da Bíblia.15 Lutero acreditava que o significado da Bíblia estava escondido dentro da própria Palavra de Deus. Sacra Scriptura sui ipsius interpres significa que o texto por si só faz com que se preste atenção a ele. Não é o intérprete que dá sentido ao texto ou torna o texto compreensível. O próprio texto expressa o que ele tem a dizer por si mesmo.

No entanto, em algumas discussões recentes, evangélicos contemporâneos afirmam que esse princípio era muito simplista e que mesmo Lutero foi tendencioso na interpretação das Escrituras16, reconhecendo que os preconceitos da tradição relacionados às Sagradas Escrituras não podem ser evitados.

Infelizmente, os ensinamentos luteranos preservaram algumas doutrinas antibíblicas. Portanto, o princípio “pela Escritura somente” deve ser condicionado à compreensão adequada da comunidade da igreja (autoridade externa), uma vez que o texto pertence e é criado dentro da comunidade da igreja, e o leitor e intérprete é o corpo de Cristo. A fim de evitar uma dupla fidelidade para com as Escrituras e a tradição da igreja, que sempre interpreta as Escrituras, temos que encontrar um método de interpretação bíblica com base apenas nas Escrituras, mas também idealizado corretamente dentro da comunidade de fé. O que quero dizer com isso?

A fim de evitar uma leitura tendenciosa das Escrituras, temos que ler e interpretá-las somente com a ajuda do Espírito de Deus. Isso não diminui ou enfraquece o papel da comunidade de fiéis como intérprete. Em primeiro lugar, o Espírito Santo sempre faz com que a comunidade se mantenha fiel e obediente a Cristo. O Espírito também transforma a nossa mente, tornando-a dirigida para a Bíblia e centralizada em Cristo. Portanto, é somente pelo Espírito de Deus que podemos ler e viver corretamente o que dizem as Escrituras. Não devemos lê-las baseados e orientados por nossa própria tradição. Caso contrário, nunca iremos progredir em nossa compreensão espiritual da Palavra de Deus.

A tradição da igreja é uma necessidade, uma vez que sempre haverá diferentes ensinamentos cristãos, novas revelações, visões e experiências dentro da comunidade de fé. A comunidade de fé, cheia do Espírito, é uma intérprete dinâmica da Palavra, e só a comunidade de fé cheia do Espírito é capaz de avaliar ou examinar cada tradição da igreja. A comunidade de fé cheia do Espírito é o corpo de Cristo liderado pela “ala de ensino” da igreja (professores e líderes que têm dons espirituais de sabedoria, conhecimento e uma compreensão mais profunda da Palavra de Deus). Dessa forma, evitamos uma dupla fidelidade: tanto às Escrituras como à tradição das igrejas tradicionais, e também uma leitura contemporânea unilateral e tendenciosa dentro da tradição da igreja.

Podemos resumir a questão desta forma: em primeiro lugar, o principal propósito da Bíblia é transformar o leitor em um discípulo cheio do Espírito de Cristo, que pertence a uma comunidade de fé cheia do Espírito. Em segundo lugar, a autoridade da Bíblia para fazer isso está baseada no fato de que a revelação é inspirada por Deus (inspirada ou “cheia do Espírito”). Portanto, a interpretação adequada das Escrituras como a Palavra inspirada de Deus só pode ser feita pela comunidade de fé cheia do Espírito, liderada por professores e líderes cheios do Espírito. Esse método de interpretação não será exaustivo, mas certamente irá reduzir de forma significativa as ideias preconcebidas e os preconceitos.

Implicações para os estudantes da Bíblia e obreiros pastores

Essa discussão sobre a autoridade e a interpretação das Sagradas Escrituras leva-me a fazer as seguintes sugestões para os estudantes da Bíblia, professores e obreiros ligados à obra pastoral:

Defenda a autoridade das Escrituras. Quando nós, como ministros, vivemos a Palavra, sentimos paixão pela Palavra, ensinamos a Palavra e pregamos a Palavra das Escrituras, defendemos a autoridade da Bíblia de maneira mais prática. O poder da Palavra é o único poder que pode nos transformar e nos manter fiéis.

Esteja ciente de sua própria tradição, e não restrinja o Espírito. Nenhuma comunidade da igreja surgiu em um vácuo espiritual. Cada comunidade de fé tem a sua tradição histórica. A tradição não é um conceito falso. É uma necessidade histórica e o resultado do desenvolvimento da comunidade da igreja. Portanto, esteja ciente das tradições da sua comunidade e faça um esforço para ler e avaliar essas tradições à luz das Escrituras Sagradas e não vice-versa. Também, esteja pronto a permitir que os membros da igreja expressem suas crenças e opiniões teológicas em um fórum apropriado.

Seja um estudante, professor, ou ministro cheio do Espírito. Dedique tempo para investigar profundamente as Escrituras. O Espírito Santo não virá com o estudo ocasional e rápido da Bíblia. Esteja sempre pronto a ser surpreendido por uma nova visão espiritual. Ser receptivo para com Deus é um pré-requisito para o recebimento do Espírito Santo. Esteja pronto a examinar suas crenças tendenciosas e práticas pecaminosas. Lembre-se, é somente por meio do Espírito Santo que a realidade de Cristo se torna plenamente compreensível e somente pelo Espírito é possível fazer uma abordagem apropriada da Palavra de Deus.

Seja um professor cheio do Espírito Santo na comunidade de fiéis. Ensine diligentemente a Palavra de Deus e ore pelo recebimento do Espírito para que tenha discernimento e compreensão. Seja um líder e reformador entre os fiéis. Oriente-os a buscarem uma compreensão e uma interpretação correta das Escrituras. Não hesite em ouvir as ideias espirituais dos membros da igreja local e aja em conformidade com as Escrituras. Ensine a sua comunidade a ser receptiva à direção do Espírito em cada interpretação bíblica recebida.

O Espírito Santo sempre nos conduzirá à compreensão e à interpretação verdadeira da Palavra de Deus. Isso requer trabalho diligente da parte da comunidade de fé dedicada ao seu estudo e interpretação, mas, certamente, traz resultados mais positivos. Martinho Lutero advertiu certa vez: “Temo que as escolas [e igrejas] revelem os portões do inferno, a menos que trabalhem diligentemente para explicar as Santas Escrituras e gravá-las no coração dos jovens. ”17

Aleksandar S. Santrac, DPhil pela Universidade de Belgrado, Sérvia, e PhD pela Universidade North-West, África do Sul), é professor de Ética e Religião e presidente do Departamento de Religião na Universidade Adventista de Washington, Takoma Park, Maryland, EUA; é também professor extraordinário de Dogmática na Universidade North-West, África do Sul. E-mail: asantrac@wau.edu

REFERÊNCIAS

 1. Anne Lamott, Plan B: Further Thoughts on Faith (http://www.goodreads.com/quotes/tag/ scripture).

2. Norman L. Giesler and Ralph E. MacKenzie, Roman Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences (Grand Rapids, Michigan: Baker Books, 1995), p. 178, 179.

3. Ver Aleksandar S. Santrac, Sola Scriptura: Benedict XVI’s Theology of the Word of God (Saarbrücken, Germany: Lambert Academic Publishing, 2013).

4. Ver Mateus 15:2; Marcos 7:3; Gálatas 1:14; Colossenses 2:8.

5. Todas as citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional.

6. Joseph Fitzmyer, Scripture: The Soul of Theology (New York: Paulist Press, 1994), p. 77.

7. Ibid., p. 75.

8. John MacArthur Jr., “The Sufficiency of the Written Word: Answering the Modern Roman Catholic Apologists,” emDon Kistler, ed., Sola Scriptura: The Protestant Position on the Bible (Lake Mary, Florida: Ligonier Ministries, 2009), p. 71-90.

9. David T. King, “A Biblical Defense of the Reformation Principle of Sola Scriptura, ” em Holy Scripture: The Ground and Pillar of Our Faith, vol. 1. (Battle Ground, Washington: Christian Resources, 2001), p. 113.

10. Donald Bloesch, Holy Scripture: Revelation, Inspiration & Interpretation (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1994), p. 153; S.M. Hutchens, “The Bible under Spirit and Church,” Touchstone 4 (2): p. 3-10.

11. Bloesch, 155; Stanley J. Grenz, “How Do We Know What to Believe?” in William C. Placher, ed., Essentials of Christian Theology (Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox, 2003), 33; John R. Franke, “Scripture, Tradition and Authority: Reconstructing the Evangelical Conception of Sola Scriptura” in Vincent E. Bacote, Laura C. Miguélez, & Dennis L. Okholm, Evangelicals & Scripture: Tradition, Authority and Hermeneutics (Downers Grove, Illinois: Intervarsity Press, 2004), p. 204, 205 e 209, 2010; William Neil, The Rediscovery of the Bible (New York: Harper & Bros., 1954), p. 114.

12. David H. Stern, Jewish New Testament Commentary (Clarksville, Maryland: Jewish New Testament Publications, 1992), p. 630.

13. 1 Tessalonicenses 5:19-21.

14. Ver Santrac: Sola Scriptura.

15. Ibid., p. 33.

16. Ibid., p. 34-40.


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