Teologia

sexta-feira, 28 de maio de 2021

A VIDA QUE AGORA EU VIVO


 John M. Fowler*

A vida cristã não começa com o nascimento. Começa com a morte. Até que o EU morra, até que o EU seja crucificado, não há começo algum.

O que é a vida? A questão é tão antiga quanto a humanidade. Desde o Éden até agora, ao longo dos altos e baixos da investigação humana, a pergunta tem sido feita e refeita novamente. Na verdade, a História é a luta contínua da humanidade com essa questão. Por onde começamos? Deixados à nossa própria imaginação e raciocínio, estamos sem esperança, desesperados, solitários, cansados e, muitas vezes, fartos. No final do melhor das nossas próprias reflexões, a vida permanece um mistério.

A que, então, devemos recorrer para obter uma resposta? À filosofia, que vê a vida em termos de polaridade e paradoxo? À política, para a qual a vida é um jogo de poder que manipula as pessoas em nome do bem comum? À economia, para a qual a vida é uma curva na arte da gestão humana, ou da má gestão de recursos? À educação, para a qual a vida é uma questão de ajustamento e de crescimento? Ao misticismo oriental, para o qual a vida não tem nem princípio, nem fim, nem aqui, nem no além, mas sim um processo sempre em curso, que jamais acaba? Ou ao niilismo, que grita como o Macbeth, de Shakespeare, dizendo que “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria. Não significa nada.”

Não, nenhum desses pode satisfazer os supremos anseios do nosso coração. Na verdade, o significado da vida jamais poderá ser encontrado dentro da própria vida. Deve haver algo que venha em nosso auxílio, além das fronteiras da busca e da pesquisa humanas, algo que venha de um acontecimento divino na História, que revele o que é a vida, o que está errado com ela, e como a vida pode se desenvolver para refletir o plano original de Deus.

Existe algum acontecimento assim?

Sim, existe. É um acontecimento que nos leva para além dos acidentes e realizações da vida e nos confronta com o propósito e o significado divinos. É um acontecimento que ganhou a batalha decisiva na história do grande conflito entre o bem e o mal e assegurou o triunfo final de Deus, a derrota do Inimigo, a vitória sobre o pecado e a garantia de que pedaços de barro partidos, como nós somos, podem ser juntados para que possamos aproveitar a oportunidade divina de voltarmos a ser completos novamente.

É o acontecimento da Cruz, que o apóstolo Paulo assim proclamou tão corajosamente: “[...] Deus em Cristo estava reconciliando Consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação” (2 Coríntios 5:19)1.

A Cruz não foi uma tragédia simplesmente. Não foi um incidente infeliz na vida de um bom homem. Não foi nem mesmo um martírio. Foi a revelação suprema do amor de Deus para com os seres humanos. Foi a maneira de Deus mostrar que a vida tem significado, mesmo em meio ao caos; que a vida tem seu propósito mesmo em face à destruição; que a vida tem um destino, apesar de estar rodeada de desespero. Ao vermos a Cruz, devemos descobrir duas verdades básicas: uma compreensão de quem somos e o reconhecimento daquilo em que podemos nos tornar pelo poder dessa Cruz.

A COMPREENSÃO DE QUEM NÓS SOMOS

Quando Jesus bradou na Cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que estão fazendo” (Lucas 23:34), Ele estava expressando uma verdade inegável e universal. O primeiro e principal problema dos seres humanos é que nós não conhecemos a nós mesmos. Em nossa ignorância do que a vida humana deve ser, tratamos os outros como máquinas a serem manipuladas e usadas; ignoramos a supremacia de Deus; confundimos amor com luxúria, ego com Deus, meios com objetivos, beleza com carnificina. Vivemos em um mundo próprio, feito de nada, destinado ao derrotismo.

E da Cruz vem o brado: basta!

Jesus suportou esse instrumento de vergonha por nós. Ele deu tanto valor ao quanto valemos que estava disposto a descer aos valados da história para nos buscar e colocar-nos sob o sol do amor de Deus. À sombra da cruz, descobrimos o nosso valor, a nossa dignidade e o nosso preço. O Homem da Cruz teria ido lá para salvar uma única pessoa − apenas eu, se eu fosse o único pecador no Universo. A Cruz tem uma mensagem singular a transmitir: Deus me amou tanto como pessoa que me deu o Seu único Filho para que eu não perecesse, mas tivesse a vida eterna [paráfrase de João 3:16]. Na Cruz, recebo um senso de dignidade e valor que o próprio Criador me conferiu − um valor que ninguém pode tirar de mim.

Mas isso não é tudo!

Na Cruz também aprendo quão indigno eu sou de receber tal sacrifício. Entre o alto valor e a completa inutilidade está a surpreendente graça da Cruz lembrando-me de que fui criado à imagem de Deus, mas que sou um pecador. Pela minha própria escolha, revoltei-me contra Deus. O pecado manchou, feriu, despedaçou a imagem de Deus dentro de mim. Destruiu a minha vida. O que eu não gostaria de fazer, eu faço; o que eu gostaria de fazer, sou incapaz de fazê-lo. Sou impotente e indefeso. E então exclamo: “Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?” (Romanos 7:24).

A resposta vem celeremente lá da Cruz: “Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Romanos 7:25). A Cruz me assegura que, seja qual for meu estado, não estou sem esperança. O fardo do pecado pode ter me subjugado. Posso ser fraco, vacilante, tímido, sem esperança; posso ser sobrecarregado pela culpa; posso ser impotente para enfrentar os grandes problemas da vida. Mas, na Cruz, a “dobradiça do destino” (pedindo emprestada essa frase a Churchill) virou-se para provocar uma mudança na vida humana, dando-lhe uma nova qualidade, uma dimensão mais profunda, um novo valor: Uma nova criação em Cristo Jesus − um novo EU, um novo VOCÊ se tornou possível.

RECONHECIMENTO DA NOVA VIDA: COMO?

Como essa nova vida se torna possível? Como eu, um pecador sem esperança, um pecador condenado à morte, posso ter essa esperança de ser uma nova pessoa? A nova vida se torna possível por meio deste único, glorioso e indiscutível fato: “o sangue de Jesus, Seu Filho, nos purifica de todo o pecado” (1 João 1:7). Rejeitar a realidade do sangue de Jesus derramado na Cruz para sustentar que não existe tal ato substitutivo (de que Jesus morreu pelos meus pecados), envolvido no acontecimento da cruz, é negar a origem divina e o propósito da cruz.

Jesus não era um Lincoln que morreu pela preservação de uma nação e pela libertação de um povo; Ele não era um Gandhi que morreu pela derrubada do jugo político ou por uma nação que estava emergindo. Jesus foi o ato redentivo de Deus para o problema do pecado. Para não nos esquecermos disso, Jesus afirmou que o Seu sangue deveria ser “derramado em favor de muitos, para o perdão dos pecados” (Mateus 26:28).

Esse derramamento de sangue é essencial para o plano da salvação oferecida por Deus. Sem ele não há esperança para o pecador. E assim afirma o apóstolo Paulo: “De fato, no devido tempo, quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios. [...]. Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores (Romanos 5: 6, 8). Essa afirmação: “de uma vez por todas” (ver Romanos 6:10; Hebreus 7:27; 10:10), sobre a morte sacrificial, e substitutiva de Jesus, assegura-nos a remoção do pecado e a redenção dos seres humanos.

O sangue de Jesus, então, é a semente de uma nova vida de crescimento para aquele que é salvo do pecado. Mas tanto a nova vida como o crescimento têm vários aspectos importantes.

Primeiro, a reconciliação. Um dos primeiros aspectos da nova vida cristã e de seu crescimento é a reconciliação. A Cruz é o instrumento de Deus para realizar a reconciliação do homem com Ele. “Deus estava em Cristo”, diz Paulo, “reconciliando Consigo o mundo” (2 Coríntios 5:19). Por causa do que Ele fez na Cruz, sou capaz de me apresentar diante de Deus sem pecado e sem temor. O que me afastou de Deus já foi resolvido. O Homem da Cruz abriu um novo caminho até a própria presença de Deus e exorta seus seguidores a entrarem numa sempiterna comunhão com Ele.

A reconciliação com Deus abre imediatamente a segunda fase do processo: a reconciliação com os nossos semelhantes. Uma das belas imagens que vejo na Cruz é a grande variedade de pessoas que ali se aglomeraram ao seu redor. Nem todos eram admiradores de Jesus. Nem todos eram santos. Mas olhe para eles. Havia egípcios que se orgulhavam da sua perspicácia nos negócios; havia romanos que se orgulhavam da sua cultura e civilização; havia gregos que se distinguiam em sua excelência no ensino; lá estavam judeus que se consideravam o povo escolhido de Deus; também escravos que buscavam a liberdade; homens livres que se entregavam ao luxo do ócio e do lazer; havia entre eles homens, mulheres e crianças.

A Cruz, porém, não fez distinção alguma entre eles. Diante da Cruz, todos eles eram considerados pecadores; a cruz oferecia a todos o caminho divino da reconciliação. Ao pé da Cruz, o chão está nivelado. Seres humanos com seres humanos estão todos unidos − já nada mais os divide. É lançada uma nova irmandade. Tem início uma nova forma de fraternidade. O Oriente se funde com Ocidente, o Norte desce para Sul, o branco aperta a mão do negro, o rico corre até o pobre para apertar sua mão. A Cruz convida todos à fonte ensanguentada para que possam saborear a doçura da vida, partilhar da experiência da graça e proclamar ao mundo a criação de um novo arco-íris da família de Deus. Assim Paulo declara aos Efésios: Jesus, “Ele é a nossa paz, o Qual de ambos os povos [judeus e gentios] fez um; e, tendo derribado a parede da separação, [...] para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade (Efésios 2:14-16 – ARA).

Podemos ousar afirmar que somos cristãos empenhados na cruz e, no entanto, negar a realidade que está na raiz do evangelho: que em Cristo Jesus somos todos um. O fanatismo, seja qual for a sua natureza − racial, econômica, cultural, de cor, tribo, etnia, nacionalidade, casta, sexo ou seja o que for – contra a Cruz − e é uma conduta inaceitável para aquele que afirma ter compreendido o poder da Cruz.

Em segundo lugar, a morte do próprio EU. Um segundo importante aspecto da nova vida cristã e de seu crescimento é a morte do antigo eu. Não se pode ler o Novo Testamento sem se ter de lidar com este aspecto fundamental da nova vida do cristão. Leia Gálatas 2:20 e 21: “Fui crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim”. Ou leia Romanos 6:6 a 11: “O nosso velho homem foi crucificado com Ele, para que o corpo do pecado fosse eliminado, para que deixássemos de ser escravos do pecado... considerai-vos de fato mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor.”

A vida cristã não começa com o nascimento. Começa com a morte. Até que o EU morra, até que o EU seja crucificado, não há princípio nenhum. Tem que haver uma cirurgia radical, deliberada e total do EU. “Portanto, se alguém está em Cristo, é uma nova criação; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se tornou novo” (2 Coríntios 5:17).

Alguma coisa acontece a uma pessoa que deixa Jesus Se tornar o Controlador total da sua vida. Simão, o vacilante, torna-se Pedro, o corajoso. Saulo, o perseguidor, torna-se Paulo, o mártir. Tomé, o incrédulo, torna-se o missionário da linha de frente. A covardia dá lugar à coragem. A incredulidade morre e a fé ganha nova vida. O ciúme é engolido pelo amor. O egoísmo desaparece na preocupação fraterna. O pecado não tem lugar no coração. O EU permanece crucificado.

Assim, o apelo à vida cristã é um apelo à Cruz − para negar continuamente a si mesmo o seu persistente desejo de ser o seu próprio salvador, a fim de aderir plenamente ao Homem da Cruz “para que a fé que vocês têm não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1 Coríntios 2:5).

Em terceiro lugar, viver uma nova vida. Um terceiro aspecto da vida cristã e do crescimento é viver um nova vida. Um dos grandes mal-entendidos da vida cristã é que a salvação é um dom gratuito da graça de Deus, e esse é o fim da história. Não é. Sim, é verdade que “vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2:8, 9).

Sim, a graça é gratuita, mas não barata. A graça barata denota não somente a indiferença de todos às exigências do discipulado, mas também uma cegueira e surdez pessoal ao chamado de Jesus para O seguir. Conforme afirmou o teólogo alemão Bonhoeffer: “Graça barata é a pregação do perdão sem exigir arrependimento, batismo sem a disciplina da igreja, comunhão sem confissão, absolvição sem confissão pessoal. Graça barata é a graça sem discipulado, graça sem a cruz, graça sem Jesus, vivo e encarnado.”2 A graça barata nada tem a ver com o chamado feito por Jesus. Quando Jesus chama uma pessoa, Ele lhe oferece uma cruz para carregar. Ser discípulo é ser um seguidor, e ser um seguidor de Jesus não tem a ver com nenhum truque barato. Paulo escreveu enfaticamente sobre as obrigações da graça. “Pela graça de Deus eu sou o que sou, e a Sua graça para comigo não foi em vão” (1 Coríntios 15:10). Você percebe como Paulo reconhece a soberania da graça de Deus em sua vida? Esta graça não lhe foi dada em vão. O grego para “em vão”, eis kenon, é traduzido literalmente como “para o vazio”. Ou seja, Paulo não recebeu a graça para levar uma vida vã e vazia, mas sim, para ter uma vida cheia dos frutos do Espírito e, mesmo assim, não em suas próprias forças, mas pelo poder da graça de Deus habitando nele. Por isso, ele apelou aos crentes: “insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus” (2 Coríntios 6:1).

Então, o que é a vida? O testemunho bíblico requer que a vida cristã seja uma vida coerente com a vontade de Cristo. O evangelho de Jesus exige que vivamos como Ele viveu − em oração, em obediência, buscando Sua Palavra, fazendo a Sua vontade e indo à Cruz.

Onde quer que haja luta contra o pecado, onde quer que a pobreza e a injustiça desumanizem uma pessoa, onde quer que haja tijolo sem palha, dever sem dignidade, existência sem esperança, religião sem amor, o evangelho com todo o seu poder libertador precisa criar e impactar a nova pessoa.

 

*John M. Fowler (MS pela Universidade de Siracusa, Nova Iorque, EUA; MA e EdD pela Universidade Andrews, Michigan, EUA, é um dos editores da revista Diálogo.

Citação Recomendada

John M. Fowler, "A vida que agora eu vivo," Diálogo 33:1 (2021): 21-23

NOTAS E REFERÊNCIAS

1. Todas as passagens bíblicas deste artigo, a menos que de outra forma anotadas, foram citadas da Nova Versão Internacional da Bíblia Sagrada.

2. Dietrich Bonhoeffer, The Cost of Discipleship (New York: Macmillan, 1959), p. 47.

 

FONTE: Revista Diálogo Universitário

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