Teologia

sexta-feira, 30 de abril de 2021

OS ESCRITOS DE ELLEN G. WHITE: UMA LENTE PROFÉTICA PARA O NOSSO TEMPO


 Mxolisi Michael Sokupa*

O ministério de Ellen G. White estava sempre apontando para as Escrituras e para Cristo, a mais clara revelação do amor de Deus e de Seu caráter. Seus escritos têm atuado como uma lente para a compreensão da Bíblia, de seus princípios e quanto à maneira de aplicá-los para o nosso tempo.

A Bíblia registra muitas ocasiões históricas em que tudo parecia fora de foco: a adoração, as atividades do templo e muitas coisas mais. A história de Josias apresenta um desses casos. Em face da triste situação ocasionada por uma história herdada, o jovem rei “fez o que o Senhor aprova e andou nos caminhos de Davi, seu predecessor, sem desviar-se nem para a direita nem para a esquerda. No oitavo ano do seu reinado, sendo ainda bem jovem, ele começou a buscar o Deus de Davi, [...] começou a purificar Judá e Jerusalém dos altares idólatras, dos postes sagrados, das imagens esculpidas e dos ídolos de metal” (2 Crônicas 34:2, 3).1 Devido ao seu total compromisso com Deus, Josias realizou a reforma e removeu os ídolos que havia entre todas as tribos de Israel. Depois de Josias “purificar a terra” da adoração de ídolos (v. 34:8), ordenou que fosse feita a restauração do templo, há muito negligenciada. No processo de renovação do templo, o sumo sacerdote encontrou “o Livro da Lei” nos escombros (v. 34:14). O livro foi levado ao rei e lido diante dele.

Josias refletiu sobre o que dizia o texto sagrado. Agora, mais ciente da situação, ele pôde perceber quais eram os problemas. Depois da leitura, o rei “rasgou as suas vestes” (verso 34:19). Ele compreendeu então as palavras do livro: a linguagem, a gramática, a sintaxe e o contexto eram muito claros para ele. Enviou então uma delegação para “consultar o Senhor” (v. 34:21) por ele. A delegação foi até Hulda, a profetisa, que atuou como uma lente para revelar as implicações da mensagem do livro a Israel e Judá, e para explicá-la ao rei e ao seu povo.

Observe quantas vezes é feita a referência ao livro nessa narrativa. Hilkias, o sacerdote, encontrou o livro da Lei do Senhor dado a Moisés (v. 34:14). Ele informou Safã, o escriba: “Encontrei o Livro da Lei na casa do Senhor” (v. 34:15); “Então Safã levou o livro ao rei” (v. 34:16). Houve um deliberado e repetido esforço para que o livro fosse explicado e se tornasse mais claro. Só nesse capítulo, são feitas referências ao livro cerca de 15 vezes. A história fornece um paralelo interessante entre os escritos de Ellen G. White e a Bíblia hoje.

A compreensão das Escrituras requer ferramentas interpretativas. As colocações de Ellen G. White nos fornecem essas ferramentas, mas não substituem um estudo rigoroso das Escrituras. Por exemplo, durante as conferências de 1848-1850, sobre o sábado e o santuário, o desenvolvimento doutrinário da igreja esteve profunda e principalmente centralizado no estudo das Escrituras. Deus, em certas ocasiões, propiciava uma lente profética para apoiar uma passagem das Escrituras, a fim de confirmar ou iluminar os estudiosos mais sinceros da Bíblia. Essa lente era frequentemente encontrada na pena e na voz de Ellen G. White. Antes, porém, uma breve resenha do papel de Ellen White para o progresso do Movimento do Advento pode ser necessária para os leitores que podem não estar totalmente familiarizados com o seu ministério.

O PAPEL DE ELLEN G. WHITE ENTRE 1844 E 1852

A lente profética para o nosso tempo foi revelada quando Deus deu uma visão à jovem Ellen Harmon, em Dezembro de 1844, poucas semanas após o Desapontamento, quando as expectativas dos crentes mileritas na vinda de Jesus não foram cumpridas.2 Deus deu a esses crentes um vislumbre de esperança, por meio de uma visão em que foi mostrada a Ellen “a viagem do povo do advento para a Nova Jerusalém. Embora essa visão não tenha explicado a razão do Desapontamento, [...] deu a eles a certeza de que Deus os guiava e continuaria a guiá-los enquanto viajavam em direção à cidade celestial”.3 A visão encorajou muitos crentes desorientados a voltarem ao estudo da Palavra de Deus. Essa visão trouxe ânimo aos crentes do início do Movimento do Advento e ainda hoje é de grande ajuda quando as coisas parecem bastante desfocadas aos olhos humanos. Ela nos atrai de volta ao estudo da Palavra de Deus.

Depois veio o período de 1848-1850, dos estudos da Bíblia e do desenvolvimento das principais crenças doutrinárias da Igreja Adventista, ainda emergente. Durante esse período, Ellen White disse: “Minha mente estava por assim dizer fechada, não podia compreender o sentido das passagens que estudávamos. Essa foi uma das maiores tristezas de minha vida. Fiquei nesse estado de espírito até que nos fossem tornados claros todos os principais pontos da nossa fé, e em harmonia com a Palavra de Deus. Os irmãos sabiam que, quando não em visão, eu não compreendia esses assuntos, e aceitaram como luz direta do Céu as revelações dadas.”4

Assim, o desenvolvimento das doutrinas dos primeiros adventistas não era baseado nas visões de Ellen White, mas, foi firmado através de um estudo rigoroso da Bíblia. Mas “quando os pioneiros se viam incapazes de avançar, Ellen White recebia a luz que ajudava a explanar a dificuldade e abria o caminho para o estudo continuar. As visões também aplicavam a marca da aprovação de Deus nas conclusões corretas. Assim, o dom profético agia como corretor de erros e confirma- dor da verdade”.5

Durante as conferências bíblicas de 1848 a 1852, houve algumas divergências doutrinárias e teológicas entre os adventistas. James White, num artigo publicado em 1868, relatou um problema ocorrido no final da década de 1840, em torno da questão sobre o início do sábado. Nesse artigo, ele relatou os acontecimentos em torno da mudança das seis da tarde para o início do sábado, em que havia três pontos de vista diferentes sobre o assunto: (1) O sábado começa ao nascer do sol no sétimo dia; (2) começa às 18:00 de sexta-feira à noite e (3) começa ao pôr-do-sol de sexta-feira e termina ao pôr-do-sol do sábado. Houve fortes argumentos de todos os lados da discussão. Ellen White teve uma visão durante a reunião de encerramento da conferência em Battle Creek, na qual lhe foi mostrado que a posição correta era a de que o sábado começa ao pôr do sol de sexta-feira.6

Houve controvérsia: Por que a correção chegou tão tarde? A resposta de James White é pertinente: “Eu sou imensamente agradecido a Deus por haver corrigido o erro no Seu tempo oportuno, não permitindo que uma infeliz divisão existisse entre nós neste ponto.” Ele afirmou ainda: “Não parece ser desejo do Senhor ensinar Seu povo em questões bíblicas através do dom do Espírito até que Seus servos tenham diligentemente pesquisado a Palavra. Quando isso foi feito com respeito ao assunto do tempo de início do sábado e a maioria estava convencida, contudo alguns estavam em perigo de permanecer em desarmonia com o corpo da igreja neste assunto, então, sim, então, era o tempo certo para Deus demonstrar Sua bondade através da manifestação dos dons do Seu Espírito na realização dessa obra.”7

Sem a lente profética, algumas disputas doutrinárias naquelas primeiras fases de desenvolvimento teriam desfeito o Movimento por estarem em desarmonia.

OS ANOS DE ORGANIZAÇÃO — 1860 A 1863

Nos primeiros anos de desenvolvimento, os pioneiros se opuseram a qualquer forma de organização eclesiástica. Eles viam a organização como sendo uma “Babilônia”. Em meio a toda essa oposição e contra a sua própria propensão inicial, Ellen White escreveu: “O Senhor tem mostrado que a ordem evangélica tem sido demasiado receada e negligenciada. [...] A formalidade deve ser banida, mas, ao fazê-lo, não deve ser a ordem negligenciada. Há ordem no Céu. Havia ordem na igreja quando Cristo esteve na Terra, e depois que Ele partiu, a ordem foi estritamente observada entre os Seus apóstolos. E agora, nestes últimos dias, quando Deus está levando os Seus filhos à unidade da fé, há mais real necessidade de ordem que jamais antes.”8

Ellen White abordou mais tarde a discussão, dirigindo a atenção para as passagens bíblicas e os seus antecedentes históricos. Ela argumentou: “A ordem que foi mantida na primitiva igreja cristã, possibilitou-lhes avançarem firmemente como bem disciplinado exército, vestido com a armadura de Deus.”9 Depois disso, ela colocou a lente profética em Atos 15, para levar ao ponto inicial sobre a importância da organização. Ela também citou 1 Coríntios 14:33: “Pois Deus não é Deus de desordem, mas de paz. Como em todas as igrejas dos santos”,10 e aplicou a instrução de Paulo aos tempos modernos: “Ele [Deus] requer que o método e a ordem sejam observados na administração dos negócios da igreja hoje, não menos do que o foram nos antigos tempos. Deseja que Sua obra seja levada avante com proficiência e exatidão, de modo que possa pôr sobre ela o selo de Sua aprovação.”11

Assim, o papel de Ellen White como uma lente profética em assuntos de organização da igreja é um bom exemplo de como os seus escritos são relevantes em situações em que não existe um “assim diz o Senhor”. Em tais áreas, para ajudar a orientar a igreja, os princípios das Escrituras podem ser extraídos com a ajuda dos escritos de Ellen White.

A CRISE DOUTRINÁRIA DE 1888

Considere outra área fundamental: a crise doutrinária ocorrida na sessão da Associação Geral de Minneápolis, em 1888. Nessa época, a igreja aceitava bem os conselhos de Ellen White. A liderança tinha confiança em sua orientação. Alguns até imaginavam que poderiam manipular o dom da profecia para satisfazer seus desejos. Ao procurar entender os acontecimentos que levaram à realização da Associação Geral de 1888, George Knight observa como George Butler, então presidente da Associação Geral, tentou colocar Ellen White do seu lado em relação ao debate sobre a lei em Gálatas, se era a lei cerimonial ou moral. Ele queria resolver esse assunto suprimindo duas fortes vozes que pairavam no horizonte teológico da igreja, com relação ao tema da justificação pela fé. E. J. Waggoner e A. T. Jones estavam apresentando a mensagem da justificação pela fé com tanta ênfase, que os líderes da igreja, entre eles, George Butler e Uriah Smith, opuseram-se com base no argumento de que o tema iria eclipsar o sábado. Ellen White, no entanto, deu a orientação de que os dois jovens tinham uma mensagem que a igreja precisava ouvir.12 Ela também dirigiu a mente dos pastores para o estudo da Bíblia.13

Ellen White não se pronunciou quanto à lei em Gálatas porque Deus a dirigiu de forma diferente. Ela incentivou os pastores a estudarem as Escrituras por si mesmos. George Knight observa que “Butler e seus colegas procuraram resolver a questão da interpretação bíblica confiando na autoridade de Ellen White. Ela, porém, recusou essa conduta e dirigiu repetidamente a denominação para a Bíblia como a única autoridade válida para resolver as questões de interpretação bíblica. Ela se recusou a permitir que seus escritos servissem de base para resolver a questão da lei em Gálatas.”14 Assim, a experiência de 1888 traz uma lição importantíssima para o nosso tempo: ver Ellen White como uma lente para as Escrituras não dispensa o estudo minucioso da Palavra de Deus.

1901-1903 A REORGANIZAÇÃO

Considere este outro caso: em 1o de abril de 1901, durante a sessão da Associação Geral, foi realizada uma reunião na biblioteca do Colégio de Battle Creek. A natureza da discussão não é clara, a não ser pelo fato de que uma pequena comissão decidiu convidar Ellen White “para estar presente e colocar diante de nós [membros da comissão] qualquer luz que ela pudesse ter para nós”.15 Deus havia mostrado aos líderes da igreja naquela época que as mensagens enviadas por meio de Ellen White eram tanto para o benefício da igreja em geral, como também para aqueles que eram os destinatários de testemunhos específicos. Nessa ocasião, não havia nenhuma agenda sobre a mesa, e Ellen White foi convidada a falar à comissão e trazer alguma luz sobre os temas em questão (embora não explicitados). Ela começou por aconselhá-los sobre a necessidade da descentralização. Isso levou à reorganização da Igreja Adventista do Sétimo Dia, entre 1901 e 1903, em consonância com o seu conselho. Podemos aprender com essa fase da história da Igreja que Ellen White também deu conselhos de natureza prática, abordando várias áreas da experiência cristã, como os relacionamentos, o casamento, e mesmo sobre os temas polêmicos do momento, como a liberdade religiosa e o racismo. Quando tiradas do seu contexto original, porém, é provável que haja um mal-entendido e má aplicação das suas mensagens. O contexto continua sendo uma lente importante para assegurar uma clara visão.

DE 1915 ATÉ O PRESENTE

Ellen White faleceu em 16 de julho de 1915. Desde então, tem havido uma série de avanços sobre como devemos nos relacionar com seus escritos. Antes de 1915, se houvesse alguma coisa que necessitasse ser esclarecida, a pessoa falava diretamente com Ellen White. Antes da sua morte, em seu testamento, ela constituiu uma equipe de fideicomissários para atuarem como guardiães do legado que ela estava deixando: todos os seus escritos, que compreendiam os livros, cartas, manuscritos, diários, panfletos, artigos de jornal e objetos. Hoje, temos a maioria desses documentos que podem ser acessados on-line e em compilações. Essa riqueza de luz profética ainda atua como uma lente para ampliar as Escrituras até o nível em que Ellen White a possuía. Podemos explorar esse tesouro e ter as nossas necessidades de orientação atendidas em inúmeras áreas.

Iniciamos este artigo com uma história do Antigo Testamento. O papel profético de Hulda não era fazer um estudo do Livro da Lei, mas ampliá-lo e aplicá-lo para o seu tempo. Sua mensagem a Josias previa e exigia a leitura e compreensão do Livro da Lei. Há provas claras de que o rei compreendeu a sua mensagem e respondeu a ela adequadamente.

Vemos um padrão semelhante na experiência de Ellen White. Foram-lhe dadas mensagens que confirmavam ou traziam luz aos primeiros adventistas quando estes ainda estavam presos a algum ponto sem terem uma clara compreensão sobre o assunto. O papel de Ellen White era o de confirmar, em vez de iniciar nas doutrinas. O seu ministério foi sempre apontar para as Escrituras e para Cristo, que é a mais clara revelação do amor de Deus e de Seu carácter. Seus escritos têm atuado como uma lente para a compreensão da Bíblia, de seus princípios e de como eles podem ser aplicados para o nosso tempo.

 

*Mxolisi Michael Sokupa PhD pelo Adventist International Institute of Advanced Studies, Filipinas; DTh pela Universidade de Stellenbosch, África do Sul, é diretor associado do Ellen G. White Estate na Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, Silver Spring, Maryland, EUA. E-mail: SokupaM@gc.adventist.org.

 

Citação Recomendada

Mxolisi Michael Sokupa , “Os escritos de Ellen G. White uma lente profética para o nosso tempo,” Diálogo 33:1 (2021): 17-20

 

NOTAS E REFERÊNCIAS

1. As referências bíblicas citadas neste artigo, a menos que de outra forma indicado, são creditadas à Nova Versão Internacional da Bíblia Sagrada

2. A maioria dos historiadores da história religiosa americana reconhecem Miller como um personagem influente que, juntamente com outros, inaugurou uma nova era do zelo milerita nas décadas de 1830 e 1840. Miller predisse que a Segunda Vinda de Jesus ocorreria por volta de outubro de 1844. Ver Susan Juster, Doomsayers: Anglo-American Prophecy in the Age of Revolution (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003), p. 213.

3. Ellen White, Primeiros Escritos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988), xvi.

4. _________, Mensagens Escolhidas, Vol. 1 (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1985), p. 207.

5. _________, Primeiros Escritos, xxiii.

6. Ver James White, “Time to Commence the Sabbath”, Advent Review and Sabbath Herald 31:11 (25 de fevereiro de 1868), p.168.

7. Ibid.

8. White, Primeiros Escritos, p. 97.

9. _________, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1986), p. 95.

10. Ibid.p. 96

11. Ibid. Ver também Capítulo 19, páginas 188-200.

12. George Knight, “General Conference of 1888”, The Ellen G. White Encyclopedia, Denis Fortin e Jerry Moon, eds. (Hagerstown, Md.: Review and Herald, 2013), p. 836.

13. Ellen G. White, Carta 13, 1888, para E.P. Daniels, 3 de julho de 1888.

14. Knight, “General Conference of 1888”, The Ellen G. White Encyclopedia, p.837.

15. Ellen G. White, Ms 43a, 1901 (1o de abril, 1901), “Elder A. G. Daniells in the Chair...”

 

FONTE: Revista Diálogo Universitário

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