Teologia

quinta-feira, 18 de junho de 2020

O QUE VAMOS LEVAR PARA O CÉU: O TEMPERAMENTO, O CARÁTER OU A PERSONALIDADE?


O. Javier Mamani-Benito*

Deus não nos pede para sermos cada vez melhores, Ele nos pede para nascermos de novo. Somente então seremos capazes de desenvolver um caráter à Sua imagem. O caráter transformado é o único tesouro que podemos levar para o Céu.

Quando fazia a pesquisa para a minha tese de graduação, deparei-me com este texto − um dos mais incisivos que já li nos escritos de Ellen White: “Os traços de caráter que nutrirdes na vida não se mudarão pela morte ou pela ressurreição. Saireis do sepulcro com a mesma disposição que manifestáveis no lar e na sociedade”.1 À primeira vista, a declaração é muito clara e inequívoca. Se a lermos cuidadosamente, podemos concluir que o caráter se refere à nossa maneira de ser, sentir, pensar e agir. Pessoalmente, sinto-me em conflito com essa interpretação tão simplista, especialmente no contexto da minha profissão como psicólogo. A literatura psicológica descreve as pessoas com muito mais nuances, envolvendo conceitos como os de temperamento e de personalidade, além do caráter. Esses três termos são usados frequentemente de forma intercambiável, mas a psicologia determinou limites claros quanto ao seu uso. Muitos pesquisadores têm sugerido que o conceito de personalidade explica melhor as diferenças entre as pessoas e a organização geral das características. A personalidade em si pode ser vista como composta pelo temperamento e o caráter.2

Ao procurar entender e encontrar uma resposta para a pergunta apresentada no título deste artigo, devemos levar em consideração a origem e o significado de cada termo à luz da literatura da psicologia.

TEMPERAMENTO

A palavra temperamento vem do latim temperamentum, significando “mistura”.3 Palavras como melancólico, sanguíneo, colérico e fleumático são usadas frequentemente para descrever as pessoas. O temperamento representa a parte biológica do comportamento humano, que é determinado pela genética. Os traços de temperamento estão presentes por ocasião do nascimento, e assim permanecem ao longo da vida. As influências ambientais intencionais, particularmente a influência dos pais, ou mesmo o impacto não intencional das experiências traumáticas, afetam o temperamento, mas não o alteram completamente.

CARÁTER

O termo grego para caráter significa “marca”. É o cunho pessoal que uma pessoa dá aos seus atos.4 Diferente do temperamento com o qual a pessoa nasce, o caráter está relacionado à parte da personalidade que é aprendida. Os resultados obtidos com as experiências da vida, por sua vez, moldam o aspecto biológico, isto é, os traços do temperamento. A formação do caráter é o resultado da interação do indivíduo com seu ambiente e é medido pela ética, pela moral e o raciocínio virtuoso, pela motivação e também pelo comportamento.5 O caráter é uma função da autorregulamentação social, que resulta na descrição de uma pessoa como honesta, boa etc.

PERSONALIDADE

A formação da palavra “personalidade” vem do termo latino personare,6 que se referia às máscaras usadas pelos atores de teatro na Grécia Antiga e significava o papel desempenhado pelo ator. Em épocas posteriores, o termo foi usado para designar um indivíduo separado do seu ambiente e, a partir da Idade Média, passou a descrever as características que determinam as tendências comportamentais de um indivíduo. Em Psicologia, a personalidade é definida como um grupo de elementos psicológicos que difere um indivíduo dos outros. Dessa forma, o termo se refere a todo o conjunto de caraterísticas de uma pessoa, como também aos padrões de pensamento, sentimentos e comportamento, como também a forma em que eles se unem como um todo. A formação da personalidade resulta de uma integração da base biológica (temperamento) com o padrão de comportamento aprendido e influenciado pelo meio ambiente (caráter).7 Na formação da personalidade, as influências ambientais interagem com a tendência genética e juntos formam os traços particulares da pessoa. O caráter é uma parte da personalidade e é o que a pessoa é internamente no que diz respeito às motivações e à tomada das decisões mentais e morais. Tanto o temperamento como o caráter são influenciados, mas não totalmente mudados pelo ambiente. A personalidade é quem a pessoa revela ser externamente, a concha externa com a qual os outros interagem, comparada aos termos mais específicos do temperamento e do caráter, que são os elementos dos quais é ela constituída.8

Tendo esclarecido a origem e o significado desses termos, e entendendo que eles não são sinônimos, com diferentes conotações quanto ao comportamento humano, estamos mais próximos da resposta à pergunta feita anteriormente. Permita-me acrescentar mais um ponto de vista com base nas Escrituras: Paulo escreveu que, quando Jesus vier pela segunda vez, vamos passar pela experiência da transformação do nosso corpo (1 Coríntios 15:42-55). Essa transformação é necessária, pois nosso corpo atual passou pela corrupção por causa do pecado e da morte.9 A transformação pela qual nosso corpo passará por ocasião da Segunda Vinda será semelhante à que Jesus passou quando ressurgiu. Essa transformação é essencial para que os seres humanos possam se adaptar às novas condições do Céu. Na ressurreição, nosso corpo será despido de toda corrupção e das enfermidades do pecado, e receberá um novo e glorioso corpo, igual ao de Jesus ressuscitado (Colossenses 3:4; 1 Tessalonissenses 4:16, 17). Dito isto, não nos devemos esquecer de que a única coisa que não será mudada por ocasião da Segunda Vinda é o nosso caráter. Quando nos encontrarmos com nosso Senhor em sua segunda vinda, será com o caráter transformado que já temos.10 Por toda a eternidade, vamos manter esse caráter que foi transformado por Sua graça.

Se dissermos que o que levamos para o Céu é o temperamento e a personalidade, isso seria contrário ao que a Bíblia diz. Lembremo-nos de que a personalidade inclui tanto o temperamento (com o qual nascemos) como o caráter (que é aprendido). As Escrituras nos levam a entender que nosso novo corpo incluirá uma base biológica. Isso implica em um temperamento não predisposto à hereditariedade do pecado. Em Êxodo 20:5, no contexto do mandamento, Deus diz que vai visitar os pecados dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta gerações. Isso nada mais é do que o resultado de um comportamento pecaminoso operando através das leis da hereditariedade, passando de uma geração para outra.11 Considerado dentro desse contexto, nosso novo temperamento será uma nova forma de apoio biológico para o caráter formado aqui na Terra. Ele vai remover a possibilidade de reter e desenvolver os impulsos da nossa natureza pecaminosa que inerentemente distorce a formação de um caráter como o de Jesus.

É por isso que Ellen White enfatizou a importância da transformação de caráter enquanto ainda estamos aqui na Terra. Reflita nesta declaração feita por ela: “Não se herda caráter perfeito e nobre. Não o recebemos por acaso. O caráter nobre é ganho por esforço individual mediante os méritos e a graça de Cristo. Deus dá os talentos e as faculdades mentais; nós formamos o caráter”.12

Com base nessa análise e entendendo a importância da formação do caráter essencial, é natural que todo crente pergunte: “Como posso desenvolver um caráter de acordo com as condições requeridas pelo Céu?” Nessa busca por respostas à luz da Palavra de Deus, o encontro de Nicodemos com Jesus nos é bastante útil (ver João 3:1-21). Em sua procura para entender a verdade, Nicodemos recebeu uma resposta clara: “Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo” (verso 3).13 Como Nicodemos não conseguiu entender essas palavras, Jesus acrescentou: “Digo-lhe a verdade: Ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nascer da água e do Espírito” (verso 5). A resposta de Jesus referia-se ao batismo com água e à completa transformação da vida pelo poder do Espírito Santo.14 Nascer “da água e do Espírito” significa “nascer de novo”, nascer do Alto. Aqueles que experimentam esse novo nascimento reconhecem a Deus como Pai e refletem o Seu caráter. Entender essa bela dinâmica envolve aceitar que a transformação trazida pelo Espírito Santo também nos faz aspirar a viver uma vida comprometida em vencer o pecado e ter a capacidade de dominar os impulsos do passado. Isso se ajusta perfeitamente às descobertas científicas que discutem a parte aprendida do comportamento humano, ou seja, o caráter. Essa transformação magnífica foi elucidada por Ellen White quando escreveu: “Todos os justos atributos de caráter habitam em Deus como um todo perfeito, harmonioso. Todo aquele que recebe a Cristo como Salvador pessoal é privilegiado com a posse desses atributos”.15

Todo crente que deseja desenvolver um caráter digno do reino do Céu deve primeiro aceitar a Jesus como seu Salvador pessoal, mostrar seu compromisso publicamente por meio do batismo e renovar pessoalmente esse pacto cada dia, para que o poder do Espírito Santo possa realizar a mais complicada intervenção terapêutica conhecida na psicologia − a transformação do caráter da pessoa. Isso também torna claro que, embora um agente externo efetue essa obra, cada pessoa deve continuar exercendo a sua vontade e esforçar-se para realizar as mudanças necessárias. Ellen White fez a mesma colocação desta maneira: “Um caráter bom não vem por acaso; é formado por esforço perseverante, incansável”.16 Os membros da igreja que trabalham na área da psicologia concordam com essa declaração. Toda pessoa que deseja fazer mudanças e aprimorar sua personalidade deve fazer o compromisso de investir na parte do comportamento que se aprende. Essa transformação pode ser alcançada se a pessoa introduz mudanças em seus hábitos pessoais e estilo de vida para que a coerência e a estabilidade sejam implantadas em seus padrões de comportamento ao longo do tempo.

As livrarias estão cheias de livros de autoajuda sobre como ser mais feliz, bem-sucedido ou emagrecer. Deus não nos pede para sermos cada vez melhores, Ele pede para nascermos de novo. Somente então seremos capazes de desenvolver um caráter à Sua imagem. O caráter transformado é o único tesouro que podemos levar para o Céu. O corpo que temos agora vai ser transformado e adaptado às condições de perfeição do Céu quando Cristo voltar. Os fiéis que estiverem vivos passarão por essa transformação. Aqueles que dormiram em Cristo ressurgirão com um corpo imortal. Como a crisálida que a borboleta abandona antes de alçar seu primeiro voo, o corpo mortal e a parte pecaminosa do temperamento e da personalidade serão deixados para trás. As inclinações do nosso coração estarão livres da tentação dos desejos enganosos e pecaminosos. Nossas ambições serão santas, nosso caráter será transformado e santificado, mas quem nós somos, como indivíduos únicos, todos vamos permanecer os mesmos. Esse processo começa com o novo nascimento. Se essa é uma decisão que você já fez, o Espírito Santo concluir a boa obra que começou!

*O. Javier Mamani-Benito (MEd pela Universidad Peruana Unión, Peru) é professor de Psicologia na Universidad Peruana Unión, em Lima, Peru, e pesquisador certificado pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia do Peru. E-mail: oscar.mb@upeu.edu.pe.

NOTAS E REFERÊNCIAS

1. Ellen G. White, O Lar Adventista (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira,1992), 16.

2. Ángel Izquierdo Martínez, “Temperamento, carácter, personalidad. Una aproximación a su concepto e interacción,” Revista Complutense de Educación (2002): 2: 617-643.

3. Lilia Alborez, Ma Marquez, e Bruno Estañol, “¿Qué es el temperamento? El retorno de un concepto ancestral,” Salud Mental,/i> (2003): 3: 16-26.

4. Ibid.

5. “How Does Personality Differ From Character and Temperament?” enotes.com: https://www.enotes.com/search?q=how+does+persona lity+differ+from+character.

6. Merfi Montaño, Jenny Palacios, and Carlos Gantiva, “Teorías de la personalidad. Un análisis histórico del concepto y su medición.” Psicología. Avances de la disciplina (2009): 2: 81-107.

7. Psicología. Avances de la disciplina (2009): 2: 81-107.

8. Alex Figueroba, “Diferencias entre personalidad, temperamento y carácter.” Psicología y Mente.com: https://psicologiaymente.net/ personalidad/personalidad-temperamento-caracter-diferencias.

9. Francis D. Nichol, ed., Seventh-day Adventist Bible Commentary, (Washington, D.C.: Review and Herald, 1980), 812, 813.

10. Ibid.

11. Ibid., Êxodo.

12. Ellen G. White, Parábolas de Jesus (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996), 331.

13. Todos os textos bíblicos citados neste artigo foram extraídos da Nova Versão Internacional.

14. Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, João 3.

15. Ellen White, Para Conhecê-Lo (Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1965), 131.

16. Ibid., 233.

FONTE: https://dialogue.adventist.org/pt/3339/o-que-vamos-levar-para-o-ceu-o-temperamento-o-caracter-ou-a-personalidade

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário