Teologia

domingo, 17 de novembro de 2019

POVO DE DEUS



Gerhardt Pfandl*

Ser parte da igreja remanescente não significa exclusivismo. Deus tem uma igreja invisível composta por fiéis de todos os tempos

Em 22 de outubro de 1844, milhares de ansiosos cristãos nos Estados Unidos esperaram o segundo advento de Cristo. Obviamente, eles estavam enganados, mas daquele grupo desapontado, posteriormente surgiu a Igreja Adventista do Sétimo Dia, também referida por seus membros como “igreja remanescente”. Os adventistas se definem dessa maneira tendo como base uma cuidadosa exegese de alguns textos do livro de Apocalipse. Quais são esses textos? Por que os adventistas veem neles sua identidade como “igreja remanescente”?

Apocalipse 12 ensina claramente que Deus tem uma igreja remanescente no fim do tempo. Depois de descrever a história da igreja cristã (sob o simbolismo de uma mulher), do tempo de Cristo (o filho no verso 5) até o fim dos 1.260 anos (538-1798), diz o Apocalipse: “O dragão irou-se contra a mulher e saiu para guerrear contra o restante da sua descendência, os que obedecem aos mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12:17).

Esse verso nos leva à época posterior ao período dos 1.260 anos (Ap 12:6, 14), ou seja ao século 19. Sabendo ser incapaz de destruir o povo de Deus, Satanás se tornou irado contra um grupo específico chamado “o restante da Sua descendência” ou “o remanescente de sua semente” – a igreja remanescente. Agora, o foco não repousa sobre a mulher (símbolo do fiel povo de Deus através dos tempos), mas sobre esse grupo em particular. “O restante de Sua descendência” ou a igreja remanescente.

Apenas duas vezes, nesse capítulo, João menciona uma “descendência” da mulher. A primeira é referente ao Filho da mulher (v. 5), o Messias; a segunda, ao “restante de Sua descendência”, a igreja remanescente. Nas duas vezes, João identifica claramente a descendência da mulher, o que apoia a visão de que “o restante de sua descendência” compreende a igreja remanescente visível. São apresentadas duas marcas identificadoras, ou dois sinais, dessa igreja remanescente: “obedecem aos mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus.”

Obediência aos mandamentos

Quaisquer que sejam os mandamentos que queiramos incluir no primeiro sinal de identificação, certamente, devemos incluir os dez mandamentos. Assim, o primeiro sinal de identificação da igreja remanescente é sua lealdade aos mandamentos de Deus – todos os dez, incluindo o quarto, o mandamento sobre o sábado. Parafraseando Apocalipse 17, podemos dizer: “No fim do tempo, Deus terá uma igreja – a igreja remanescente – que será reconhecida pelo fato de que ela guarda os mandamentos, inclusive o mandamento do sábado, o sétimo dia.”

No tempo dos apóstolos, ou da igreja primitiva, esse não teria sido um sinal especial, porque todos eles observavam o sábado; mas hoje, quando a maioria dos cristãos guarda o domingo, o sábado, na verdade, tem-se tornado marca distintiva.

O testemunho de Jesus

A segunda marca de identidade é “o testemunho de Jesus”. O que significa essa frase? A expressão “testemunho de Jesus” (marturia Iesou) ocorre seis vezes no livro de Apocalipse (1:2, 9; 12:17; 19:10; 20:4).

Primeiramente, consideremos Apocalipse 1:2, 9. A introdução ao livro de Apocalipse apresenta a fonte, isto é, Deus, e o conteúdo desse livro – a revelação de Jesus Cristo. No verso 2, é-nos dito que João conduziu “a Palavra de Deus” e “o testemunho de Jesus”.

Normalmente compreendemos “a Palavra de Deus” como se referindo ao que Deus diz; e o “testemunho de Jesus” algo paralelo à “Palavra de Deus”, devendo significar, portanto, o testemunho que Jesus dá a respeito de Si mesmo. De que maneira Ele faz isso? Quando esteve na Terra, Ele testificou pessoalmente ao povo na Judeia. Depois da ascensão, Ele falou através dos profetas.

Em Apocalipse 1:9, o paralelismo entre a “Palavra de Deus” e “o testemunho de Jesus” é claramente discernível: “Eu, João, irmão e companheiro de vocês no sofrimento, no Reino e na perseverança em Jesus, estava na ilha de Patmos por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus.”

No tempo de João, “a Palavra de Deus” era referência ao Antigo Testamento, e o “testemunho de Jesus” se referia ao que Jesus tinha dito, às verdades que Ele revelou, conforme relatadas nos evangelhos e por meio de Seus profetas, como Pedro e Paulo.

Espírito de profecia

Portanto, em Apocalipse 19:10, nós lemos a explicação: “O testemunho de Jesus é o Espírito de profecia.” O que é “Espírito de profecia”? Essa frase ocorre apenas uma vez na Bíblia e essa única vez é nesse texto. Encontramos um paralelo bíblico muito íntimo em 1 Coríntios 12:8-10, em que Paulo se refere ao Espírito Santo, que, entre outros dons, outorga o dom de profecia, e a pessoa que recebe esse dom é profeta (1Co 12:28; Ef 4:11).

Assim como em 1 Coríntios 12:28 a pessoa que tem o dom de profecia (v. 10) é chamada “profeta”, em Apocalipse 22:8, 9, aqueles que têm o Espírito de profecia (19:10) também são chamados de profeta. Notemos o paralelismo entre Apocalipse 19:10, e 22:8, 9.

A mesma situação ocorre nas duas passagens. João cai aos pés do anjo para adorá-lo. As palavras de resposta do anjo são quase idênticas, porém a diferença é significativa. Em Apocalipse 19:10, os irmãos são identificados pela frase “têm o testemunho de Jesus”; em Apocalipse 22:9, eles são simplesmente chamados de “profetas”.

Assim, se usarmos o princípio protestante de interpretar as Escrituras pelas Escrituras, podemos concluir que “o Espírito de profecia” em Apocalipse 19:10 não é possessão de todos os membros da igreja em geral, mas apenas daqueles que foram chamados para ser profetas. Comentando Apocalipse 19:10, Hermann Strathmann, erudito luterano, diz o seguinte:

“De acordo com o paralelo 22:9, os irmãos mencionados não são os crentes em geral, mas os profetas. Aqui, também, eles são caracterizados como tais. Esse é o ponto do verso 10. Se eles têm o marturia Iesou (o testemunho de Jesus) também têm o Espírito de profecia, ou seja, são profetas.”1

Semelhantemente, James Moffat explica:

“‘Pois o testemunho de Jesus é o Espírito de profecia.’ Esse comentário especificamente define os irmãos que têm o testemunho de Jesus como possuidores de inspiração profética. O testemunho de Jesus é praticamente equivalente a Jesus testemunhando.”2

Testemunho do Targumim

Os leitores judeus nos dias de João conheciam o que significava a expressão “Espírito de profecia”. Eles teriam compreendido a expressão como referência ao Espírito Santo que concede o dom profético ao homem.

O judaísmo rabínico igualou as expressões do Antigo Testamento “Espírito Santo”, “Espírito de Deus” ou “Espírito de Yaweh” com “o Espírito de profecia”. Isso pode ser visto nas ocorrências frequentes dos termos no Targumim (traduções escritas do Antigo Testamento em aramaico), como por exemplo: “Por isso o faraó lhes perguntou: ‘Será que vamos achar alguém como este homem, em quem está o Espírito de profecia do Senhor?’” (Gn 41:38). “Então o Senhor disse a Moisés: ‘Chame Josué, filho de Num, homem em quem está o Espírito de profecia, e imponha as mãos sobre ele’” (Nm 27:18).3

Algumas vezes, o termo “Espírito de profecia” se refere simplesmente ao Espírito Santo, mas, em muitos casos, refere-se ao dom de profecia dado pelo Espírito Santo. Comentando essa expressão no Targumim, F. F. Bruce afirmou:

“A expressão ‘o Espírito de profecia’ é corrente no judaísmo pós-bíblico. É usada, por exemplo, na circunlocução para o Espírito de Yaweh que vem sobre um profeta. Assim, o Targum de Jonathan traduz as palavras de abertura de Isaías 61:1 da seguinte maneira: ‘O Espírito de profecia do Senhor Deus está sobre Mim.’ O pensamento expresso em Apocalipse 19:10 não é diferente ao que já foi citado em 1 Pedro 1:11, onde é mencionado que ‘o Espírito de Cristo’ já tinha dado testemunho de antemão pelos profetas do Antigo Testamento. [...] Em Apocalipse 19:10, entretanto, é através dos profetas cristãos que o Espírito de profecia testemunha. O que os profetas anteriores à era cristã predisseram é proclamado como fato cumprido pelos profetas da era cristã, entre os quais João ocupa lugar destacado.”4

Voltando a Apocalipse 12:17, podemos dizer que “o restante de sua descendência, [...] obedecem aos mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus”, que é o Espírito de profecia ou o dom profético.

Essa interpretação é reforçada pelo estudo da palavra grega echó, cujo significado é “ter”. Essa palavra indica posse de alguma coisa. “O restante de sua descendência” tem um dom concedido por Deus – o dom profético. Se “o testemunho de Jesus” fosse apenas nosso testemunho a respeito de Jesus, João teria escrito algo como: “eles guardam os mandamentos de Deus e testificam a respeito de Jesus”, ou “eles dão testemunho sobre Jesus”. Mas a palavra grega echó nunca é usada no sentido de “dar testemunho”.

Em suma, podemos dizer que a igreja remanescente, que, de acordo com a profecia, existe depois do período dos 1.260 dias (depois de 1798), tem duas características específicas: Guarda os mandamentos de Deus, incluindo o mandamento sobre a observância do sábado, conforme Deus estabeleceu, e tem o testemunho de Jesus, que é o Espírito de profecia, ou o dom profético.

Igreja visível e igreja invisível

Desde seus primórdios em 1863, a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem reivindicado para si mesma essas marcas de identificação. Como adventistas, proclamamos os dez mandamentos, incluindo o sábado, e cremos que, como igreja, temos o testemunho de Jesus, ou seja, cremos que Deus manifestou Seu dom profético na vida e obra de Ellen G. White.

Nossos pioneiros estavam muito certos de que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é a igreja remanescente de Apocalipse 12:17. G. I. Buttler, presidente da Associação Geral entre 1871 e 1888, escreveu um artigo intitulado “Visões e sonhos”, no qual dizia o seguinte:

“Então, não há um povo no qual essas condições sejam preenchidas nestes últimos dias? Acreditamos que ele verdadeiramente existe nos adventistas do sétimo dia. Nos últimos 25 anos, em todo lugar, eles têm reivindicado ser a igreja ‘remanescente’. [...]

“Guardam eles os mandamentos de Deus? Toda pessoa que conheça alguma coisa sobre esse povo pode responder que essa é parte importantíssima de sua fé. [...] No que se refere ao Espírito de profecia, é um fato notável que, desde o início de sua existência como povo, os adventistas do sétimo dia têm afirmado que ele está em exercício ativo entre eles.”5

Ellen G. White acreditava firmemente que os adventistas do sétimo dia compõem a igreja remanescente e que Apocalipse 12:17 é aplicado a eles. Os adventistas do sétimo dia “são o povo representante de Deus na Terra”,6 ela escreveu. “Temos o testemunho de Jesus que é o Espírito de profecia.”7  “Sejam todos cuidadosos para não clamarem contra o único povo que está cumprindo a descrição dada do povo remanescente, que guarda os mandamentos de Deus e tem a fé de Jesus, e que exalta a norma de justiça nestes últimos dias.”8

Nós ainda cremos que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é a igreja remanescente, tendo o Espírito de profecia como marca de identidade.

“Um dos dons do Espírito Santo é a profecia. Esse dom é uma característica da igreja remanescente e foi manifestado no ministério de Ellen G. White. Como a mensageira do Senhor, seus escritos são uma contínua e autorizada fonte de verdade e proporcionam conforto, orientação, instrução e correção à igreja. Eles também tornam claro que a Bíblia é a norma pela qual deve ser provado todo ensino e experiência.”9

Como adventistas do sétimo dia, somos membros da igreja remanescente de Deus. Entretanto, essa identificação não nos concede exclusividade diante de Deus. Jamais ensinamos que somente os adventistas serão salvos; sempre temos reconhecido a realidade do que tem sido chamada “igreja invisível”, composta pelo fiel povo de Deus de todos os tempos. Hoje também Deus tem pessoas fiéis em todas as igrejas, incluindo a igreja católica.10 A salvação não é garantida pelo fato de alguém ser membro de qualquer igreja. Somos salvos como indivíduos, não como igreja. Porém, ser parte da igreja remanescente de Deus significa que temos acesso ao dom especial de Deus, a mensagem inspirada de Ellen G. White, e podemos participar na proclamação das três mensagens angélicas especiais (Ap 14) para o mundo.

Referências:

1. Hermann Strathmann, Theological Dictionary of the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964-1974), v. 4, p. 500.

2. James Moffat, The Expositor’s Greek of the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1956), v. 5, p. 465.

3. Bernard Grossfeld, The Targum Onqelo to Genesis (Collegeville, MN: The Liturgical Press), p. 138, 102, 145.

4. F. F. Bruce, The Time is Fulfiled (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1978), p. 105, 106.

5. G. I. Buttler, Review and Herald 02/06/1874, p. 193.

6. Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja, v. 2, p. 452.

7. ___________, Testemunhos Para Ministros e Obreiros Evangélicos, p. 114.

8. Ibid., p. 58.

9 Nisto Cremos, p. 290.

10 Ellen G. White, Evangelismo, p. 234.

*Gerhardt Pfandl Diretor associado (jubilado) do Instituto de Pesquisa Bíblica da Igreja Adventista do Sétimo Dia

Fonte: Revista Ministério, Jan-Fev 2015, p. 22-24.

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