Teologia

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

“DEIXADO PARA TRÁS” TEM FUNDAMENTO BÍBLICO?




Prof. Ricardo André de Souza

          No ano de 2007, assisti com um amigo o filme americano Left Behind (Deixado Para Trás) por curiosidade e para que eu pudesse fazer uma análise mais consistente do conteúdo teológico do filme. Esse é o título de uma série de grande sucesso e motivação para uma seqüência de filmes de milhões de dólares.  Ele é baseado no livro que tem o mesmo nome do filme. Escrito em 1995 pelos americanos Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins, o livro logo se tornou best-seller. Em fevereiro de 2001, “Left Behind: O Filme” chegou aos cinemas de todos os Estados Unidos. O segundo filme, Tribulation Force, baseado no livro número dois da série com o mesmo título, foi lançado em 2002.
          Tal série foi traduzida em muitos idiomas ao redor do planeta,  e tem recentemente prendido a imaginação do cristão.  “Deixado Para Trás” alega estar baseada nas profecias bíblicas escatológicas, no retorno secreto de Jesus, no desaparecimento súbito de cristãos e no anticristo que assume o governo do mundo.  

A Concepção Teológica Básica

          A teologia básica da série é esta: em primeiro lugar, "o arrebatamento secreto" produz o desaparecimento imediato de todos os verdadeiros cristãos, que são repentinamente tomados da Terra e levados ao céu. Wim Malgo relata: “Esse acontecimento não será percebido por ninguém. Seremos arrebatados repentinamente, num momento. Terá acontecido, antes que se perceba. Nós esperamos todos os dias” (O Arrebatamento Secreto: O Que é e Quando acontecerá, p. 8). Esse arrebatamento é seguido por um período de sete anos de tribulação que atinge todos os que foram "deixados para trás". Um homem interiormente mau que parece o Sr. Bom Sujeito, mas que é realmente o Sr. Pecado, isto é, o anticristo, surge rapidamente para pôr ordem no caos. Enquanto a saga prossegue, um grupo de novos crentes que aceitaram Jesus Cristo após o arrebatamento, percebem claramente o disfarce do anticristo e se tornam a Tribulation Force (Força da Tribulação) contra o homem do inferno. 

          De acordo com Wim Malgo, “o arrebatamento tem inicialmente um grandioso efeito separador. Duas estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a outra. Dois estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro. Dois estarão numa reunião, ou sentados numa igreja; um será tomado, e outro será deixado. Isso tudo se dará de modo inimaginavelmente rápido. Muitos serão tomados, mais muitos ficarão para trás. Será indizivelmente gloriosos para aqueles que então virem o Senhor, como ele é. Então começam as bodas do Cordeiro. Mas para os que ficarem, iniciarão então sofrimentos inimagináveis sob o domínio anticristão” (Idem, p. 10) O sinistro anticristo, chamado Nicolae Carpathia nas novelas e filmes, volta suas armas de guerra contra os judeus, que são ainda considerados o povo escolhido de Deus. Ao término da tribulação, como clímax do drama, Jesus Cristo retorna de forma visível para vencer Carpathia e sua rede global de partidários, salvando a Força da Tribulação e libertando os judeus no Armagedom.

          Embora a série Left Behind seja nitidamente uma ficção, suas idéias nucleares são agora aceitas por muitas igrejas evangélicas no mundo inteiro, tendo-lhes sido expostas através da mídia, revistas, livros, cursos, seminários e Internet.  
Suas "idéias centrais" podem ser assim resumidas:
1.    O arrebatamento secreto, que traslada a igreja de Deus da Terra para o Céu.
2.    Uma tribulação de sete anos para todos os que ficarem para trás.
3.    O surgimento do anticristo, que assume o governo do mundo.
4.    A batalha final entre o anticristo e os judeus, que são libertados no Armagedom.
          Será que esses ensinos são bíblicos?
 



O arrebatamento secreto

          O arrebatamento secreto é a pedra de esquina de uma escola teológica conhecida como Futurismo Dispensacional. Sua doutrina básica é que todas as promessas feitas por Deus no Velho Testamento à nação de Israel ainda são válidas, mas só podem ser cumpridas literalmente depois de a "atual dispensação da Igreja" chegar ao seu final. Essa "dispensação da Igreja", que começou no Pentecostes, continua até o arrebatamento, quando Cristo retornará secretamente para levar Sua igreja ao Céu. Assim que isso tiver lugar, Deus pode então cumprir Suas promessas aos judeus.

          Embora os defensores do arrebatamento secreto usem vários textos bíblicos para apoiar seus pontos de vista, como Mateus 24:40 e 41, nós nos concentraremos em I Tessalonicenses 4:17, já que isso é que é enfatizado freqüentemente pelos autores de Left Behind. Nesse texto, Paulo declara que quando Cristo voltar, todos os crentes vivos serão "arrebatados". De acordo com Left Behind e os futuristas dispensacionalistas, "arrebatados" aqui significa desaparecer sem deixar rastros. Esse acontecimento é interpretado como algo que será obviamente notado, mas não compreendido pela maioria do mundo. Jesus supostamente retornará silenciosamente, em secreto, de maneira invisível, não percebido pelo mundo, para arrebatar Sua Igreja e levá-la da Terra para o Céu. Depois que todos os cristãos houverem desaparecido, o mundo entrará num período cataclísmico de sete anos de tribulação.  

          Mas aqui está o problema: o contexto de I Tessalonicenses 4:17 revela que o retorno de Cristo é tudo, menos secreto! No verso 16, Paulo diz claramente: "Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus..." (NVI). Certamente essa descrição não pode denotar sigilo ou silêncio, mas abertura e sonoridade. O verso 15 se refere à descida de Cristo como "a vinda do Filho do homem". Para não deixar dúvida quanto a visibilidade de Seu retorno Jesus advertiu Seus discípulos contra o risco de imaginarem um retorno secreto, ao comparar Sua Vinda com a luminosidade e visibilidade do relâmpago (Mateus 24:27) Pode o relâmpago ser secreto e invisível? As Sagradas Escrituras declaram positivamente que tantos os justos quantos os ímpios testemunharão simultaneamente Sua vinda. João escreveu: “Eis que vem com as nuvens e todo o olho O verá, até quantos O traspassaram”. (Apocalipse 1:7).  

          Além disso, observe o contexto de I Tessalonicenses 4:17. Ele não ensina que aqueles que não forem "arrebatados" serão conduzidos a um período de sete anos de tribulação. Mas explica que eles sofrerão "repentina destruição" e que "não escaparão" (I Tessalonicenses 5:3). Um estudo pormenorizado de I Tessalonicenses 4:15 até 5:3 revela claramente que a segunda vinda de Jesus não resulta em um arrebatamento secreto seguido de uma tribulação de sete anos; mais exatamente, a Segunda Vinda é um retorno visível, audível e glorioso de Jesus. Na vinda de Jesus, os santos são ressuscitados dentre os mortos e, juntamente com os santos vivos, os redimidos de todas as eras encontrarão com o Senhor "nos ares". 

          Wim Malgo afirma que o arrebatamento secreto “é o primeiro nível da volta do Senhor. Jesus vem primeiro para os seus nas nuvens do céu... . (Idem, p. 8). Entretanto, é importante que se diga “que não há senão uma segunda vinda de Cristo salientada na Escritura. Ela é especificamente mencionada através de palavras e expressões como manifestação (Tt 2:13), Vinda (Tg 5:8), voltar (Lc 19:12), face do Senhor (2Ts 1:9), aparecerá segunda vez (Hb 9:28), e virei outra vez (Jo 14:3). Jesus disse que viria ‘outra vez’ (Jo14:3); e, na parábola, havia de ‘voltar’ se Sua viagem (Lc 19:12). Referiu-se repetidamente à Sua ‘vinda’, sem nenhuma indicação de um advento de dois cenários ou uma vinda preliminar, secreta ou outra qualquer, para o “arrebatamento” dos santos. A Escritura declara explicitamente que Cristo virá “segunda vez” para salvar os que O aguardam (Hb 9:28); obviamente, ‘nós, os vivos, os que ficarmos’ (Ts 4:17) aguardando por Ele, seremos salvos por ocasião da ressurreição e trasladação dos santos, Istoé, o assim chamado arrebatamento. Não encontramos nenhum texto bíblico que separa da segunda vinda o que é designado como ‘arrebatamento’”. (Questões Sobre Doutrina, p. 320, 321)
 
A tribulação de sete anos

          Os dispensacionalistas também ensinam que haverá uma tribulação de sete anos após o arrebatamento secreto. Eles obtêm esse período septenal de uma interpretação especulativa de Daniel 9:27: "Com muitos Ele fará uma aliança que durará uma semana. No meio da semana Ele dará fim ao sacrifício e à oferta" (NVI). 

          Há dois problemas com a interpretação dispensacionalista dessa profecia. Primeiro, eles tomam a última semana da profecia das 70 semanas de Daniel 9:24-27, e a colocam em um futuro distante, ocasião em que o arrebatamento deve ocorrer e o anticristo se manifestar. Mas um estudo de Daniel 8 e 9 revela claramente que as 70 semanas são um período ininterrupto a ser cumprido da primeira à 70 semana em uma linha de tempo histórico. Interpretação profética correta e exegese coerente não permitem projetar a septuagésima semana a algum período futuro.
O segundo problema é mais sério. De acordo com o princípio dia-ano em profecia (Ezequiel 4:6), "uma semana" quer dizer sete anos literais. Durante esse período, diz Daniel: "Com muitos Ele fará uma aliança que durará uma semana. No meio da semana Ele dará fim ao sacrifício e à oferta." Daniel 9:27, NVI

          A quem esse "ele" se refere? Os dispensacionalistas interpretam o "ele" como o anticristo que surgirá no futuro, o "Nicolae Carpathia" dos autores de Left Behind -- um período futuro de sete anos que terá início com o arrebatamento e continuará com a tribulação. Mas aqui há outro problema: Os eruditos bíblicos do passado têm coerentemente interpretado o "ele" como Jesus Cristo, e o "concerto" firmado como o novo concerto ratificado pela morte de nosso Salvador, 2.000 anos atrás (ver Mateus. 26:28), não como um tratado de paz de sete anos feito pelo anticristo com os judeus após o arrebatamento. 
 
          Observe com atenção mais uma vez: Daniel 9:27 não pode se referir a um tratado de paz, mas ao novo concerto que o Messias estabelecerá. Na Bíblia, o anticristo jamais confirma qualquer concerto. Esse é papel exclusivo do Messias. Além disso, Daniel 9:27 diz: "Com muitos Ele fará uma aliança que durará uma semana. No meio da semana Ele dará fim ao sacrifício e à oferta" (NVI). A "metade" seria três anos e meio dos sete, duração exata do ministério de Cristo. Depois de três anos e meio, através de Sua morte na cruz, Jesus fez cessar "o sacrifício". Ele é o sacrifício final e Sua morte cumpre Daniel 9:27 perfeitamente. 

          Ver Cristo como o "ele" em Daniel 9:27, o qual firmou o concerto e fez com que os sacrifícios judaicos cessassem através de Sua morte sobre a cruz, é a única posição coerente com a interpretação e a escatologia bíblicas.  

O surgimento do anticristo

          Os dispensacionalistas também ensinam que o anticristo é um indivíduo ímpio que aparecerá após o arrebatamento. Mas observe, caro leitor, o que a Bíblia diz. O termo anticristo é usado apenas cinco vezes na Bíblia, em I João 2:18 e 22; 4:3; e em II João 7. Todos esses versos mostram que não há apenas "um homem" chamado anticristo, mas "muitos anticristos" (I João 2:18, NVI). João também diz: "Eles saíram do nosso meio" (verso 19), indicando que esses anticristos surgiram dentro da igreja, não fora, e o apóstolo indicou que eles já estavam atuando em seu tempo (I João 2:18). Por isso, de um modo geral, o anticristo representa essas forças que assumem o nome de "cristãs", mas ensinam e praticam doutrinas que são antibíblicas e contraditórias à posição e ao papel de Cristo, e que não hesitariam em perseguir aqueles que permanecem leais e fiéis a Cristo e Seus ensinos. 

          A profecia bíblica também prediz o surgimento de um "pequeno chifre" misterioso (Daniel 7:8), que é identificado por Paulo como "o homem do pecado" (II Tessalonicenses 2:3), e por João como "a besta" (Apocalipse 13:1). A maioria dos eruditos aplica essas frases a uma só e a mesma entidade. Além disso, Daniel 7:23 define claramente a besta como um reino, não um homem.
O "pequeno chifre" de Daniel também faz guerra contra os santos e prevalece contra eles na história cristã (ver Daniel 7:21). Embora este breve artigo não possa dar provas exaustivas sobre a razão de nossos antepassados protestantes estarem corretos em sua interpretação dessa profecia, é um fato histórico que por mais de 400 anos -- até fins de 1800 -- a maioria dos eruditos batistas, metodistas, presbiterianos, luteranos e menonitas aplicaram as profecias bíblicas sobre o anticristo, não ao futuro Sr. Pecado que se manifesta depois de os fiéis haverem sido arrebatados, mas à organização da igreja de Roma perseguidora dos santos. 
 
"Lutero provou, pelas revelações de Daniel e João, pelas epístolas de Paulo, Pedro e Judas, que o reino do anticristo, predito e descrito na Bíblia, era o papado" (Merle D'Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, 1846, volume 2, cap. XII, p. 215).
  
A batalha final entre o anticristo e os judeus

          O Futurismo Dispensacional considera os principais competidores terrenos no Armagedom como sendo o anticristo e a nação de Israel, não a igreja. Na realidade, uma separação distinta entre Israel e a igreja de Deus é absolutamente essencial ao enredo arrebatamento-anticristo-Israel. Se pudermos provar pelo Novo Testamento que na era cristã o Israel de Deus é a própria Igreja de Deus, então poderemos atestar quão equivocado e antibíblico é o dispensacionalismo. 

          Em primeiro lugar, o Novo Testamento fala sobre a realidade de dois Israéis -- "o Israel segundo a carne" (I Coríntios 10:18) e "o Israel de Deus" centralizado em Jesus Cristo (ver Gálatas 6:14-16). Paulo escreveu: "Nem todos os descendentes de Israel são Israel" (Romanos 9:6, NVI). O que ele quis dizer é que todos os que pertencem à nação israelita não são o Israel de Deus na era pós-cruz. Em outras palavras, alguém pode ser um judeu, um descendente literal de Abraão, mas pela incredulidade e uma vida segundo a carne, não fazer parte do Israel de Deus. Aqueles que pertencem ao Israel de Deus conhecem a Deus por meio da fé pessoal em Jesus Cristo. (Ver Gálatas 3:7 e 14; 6:14-16.)  

          No Velho Testamento, Israel é claramente mencionado como "a semente de Abraão" (Isaías 41:8). No Novo Testamento, Paulo disse aos seus conversos gentios: "E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa" (Gálatas 3:29, NVI). Assim os crentes gentios se tornaram parte do Israel de Deus. Efésios 2 é muito claro: Jesus Cristo, na cruz, destruiu a barreira de separação entre crentes judeus e crentes gentios, e os uniu misteriosamente em "um novo homem" e "em um corpo" (Efésios 2:14-17, NVI). Portanto, toda essa posição dispensacional de separação do legítimo Israel de Deus de Sua verdadeira Igreja é contrária à missão da cruz.
  
          Além disso, em Apocalipse 16:12-16, onde o Armagedom é mencionado, nada é dito sobre uma batalha entre o anticristo e os judeus; nem o texto diz que Cristo vem de forma secreta precedendo essa batalha para arrebatar os santos. Ao invés disso, o texto descreve a "batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso" -- entre os espíritos de demônios (incluindo o anticristo) e as forças do bem. A vitória divina na batalha é garantida pela promessa: "Eis que venho como ladrão", referindo-se à segunda vinda de Cristo (Apocalipse 16:15, NVI; ver também I Tessalonicenses 5:2).
  
           A mensagem da Bíblia é clara. O caminho da salvação está agora aberto a todos, inclusive aos judeus. Mas na segunda vinda de Jesus, tanto os ressuscitados como os santos vivos encontrarão com o Senhor "nos ares" (I Tessalonicenses 4:17, NVI), na mais gloriosa e pública manifestação do triunfo de Deus sobre o pecado e a morte, sobre Satanás e seus agentes malignos. Depois da Segunda Vinda, não haverá segunda oportunidade de salvação. 
 
          A saga do Left Behind pode ser popular e suas idéias propagarem-se pelo mundo. Todavia, o sólido ensino bíblico é contra cada uma das quatro posições centrais sobre as quais o fenômeno de Left Behind está apoiado. Left Behind realmente deixa para trás a verdade bíblica e confia na especulação humana e na fantasia teológica.  


Referências:

MALGO, Wim. O Arrebatamento Secreto: O Que é E quando Acontecerá. Obra Missionária Chamada da Meia-Noite: Porto Alegre, RS.

Questões Sobre Doutrina: O Clássico mais Polêmico da História do Adventismo/ notas e introdução histórica e teológica por George R. Knight. – Ed. Anotada – Tatuí, SP: CPB, 2008.

Nisto Cremos: 27 Ensinos Bíblicos dos Adventistas do Sétimo Dia. Trad. De Hélio L. Grellman. 4ª ed. Tatuí, SP: CPB, 1997.


Nenhum comentário:

Postar um comentário