MAOMÉ FOI INFLUENCIADO PELA TRADIÇÃO JUDAICA E CRISTÃ?
por Dominc Saint Pierre
Traduzido por Hugo Martins
Quem foi o profeta
islâmico, Maomé? O que o inspirou? Como podemos nos relacionar com ele ou com
sua mensagem? De uma perspectiva ocidental moderna, a pessoa, o idioma e a
religião associados a Maomé podem parecer primitivos, desconhecidos e até
intimidadores. E se houvesse pontes que permitissem a um pesquisador em busca
de diálogo atravessar e se relacionar?
O objetivo desta
pesquisa é fazer perguntas de nossa perspectiva religiosa ocidental que visam
iluminar as semelhanças que podemos compartilhar com Maomé. Leitores casuais do
Alcorão logo verão que existem temas, narrativas e personagens comuns que se
originam nas escrituras do mundo judaico e cristão. Então, qual é a relação de
Maomé com eles? Quais fontes judaicas ou cristãs ele conhecia? Alguma parte foi
inserida no Alcorão? Proponho demonstrar que Maomé, o profeta do Islã, conheceu
e aprendeu do Talmude Judeu e dos apócrifos cristãos, e, paulatinamente inseriu
essas crenças orais em sua recitação, o Alcorão.
Ao investigar em
detalhes quais fontes judaicas foram consideradas inspiradas por Maomé, deve-se
estabelecer em qual idioma esses documentos estavam escritos. É consensual
entre os estudiosos islâmicos que Maomé era chamado de “iletrado”, ou seja,
analfabeto. Seu grau de aprendizado tem sido muito debatido. O que se sabe é
que desde muito jovem aprendeu a falar e era um comerciante que viajava com
frequência por toda a Península Arábica. Presume-se, em vista disso, uma
compreensão do comércio e uma familiaridade com o diálogo intercultural.
Acredita-se que uma forma antiga de árabe era usada em toda a Península Arábica
durante a vida de Maomé. Essa língua era usada pela maioria dos habitantes,
incluindo os nativos judeus e cristãos. Como Katsh relata:
A maioria dos Geonim
(autoridades talmúdicas) na diáspora sob o governo de Ismael na Babilônia,
Palestina e Pérsia falava árabe, e, da mesma forma, todas as comunidades
judaicas naquelas terras usavam aquela língua. Quaisquer comentários escritos
sobre a Bíblia, a Mishná e o Talmude, escreveram em árabe . . . pois todas as
pessoas entendiam a língua (1980, Introdução p.10).
Esta afirmação é
confirmada pela frase dos rivais de Maomé no Alcorão: “E eles dizem, as
histórias dos antigos, ele lhas escreveu, então estas são lidas para ele de
manhã e à noite” (Yusuf Ali, 2001, 25:5).
Esses antigos, como
discutido posteriormente, são, de fato, referências do mundo judaico e cristão.
Quem eram esses contemporâneos judeus de Maomé na Arábia do século 6 e 7? De
acordo com Katsh, ao revisar os paralelos do Alcorão com a tradição talmúdica,
ele descobriu:
O número considerável
de histórias agádicas citadas nos escritos de Zamakhshari, Baidawi, Bukhari e
Tabari atesta o fato de que os judeus árabes participaram ativamente da vida
espiritual judaica, ergueram muitas sinagogas, escolas e outras instituições, e
conseguiram firmar laços permanentes com os judeus da Palestina e da Babilônia
(1980, Intro p.13).
A Agadá aqui, refere-se
a uma parte homilética do Talmude, conforme estava sendo compilado, repleto de
folclore, contos alegóricos, histórias homiléticas e exemplos de estudos
judaicos do Tanakh. Os escritos dos autores citados são de prestigiosos
estudiosos muçulmanos, reverenciados por suas revisões teológicas e comentários
do Alcorão e dos Hadiths. Podemos, portanto, estabelecer que Maomé falava e
dialogava com judeus de língua árabe que praticavam uma forma autêntica de
judaísmo. Por meio de algum tipo de interação, seja comércio de mercadorias,
diálogos ou intrigas, Maomé esteve inserido, e pela natureza de sua mente
pesquisadora, expôs e aprendeu o judaísmo contemporâneo e o raciocínio talmúdico.
Katsh novamente comenta:
Ele aprendeu bem suas
lições; e quando uma comparação completa é feita do material corânico, de todos
os tipos, com os atuais escritos judaicos em hebraico, podemos afirmar com
ênfase que suas autoridades, quem quer que fossem, foram homens bem versados
na Bíblia, na lei oral e na Agadá (1980, Intro p.2).
É fácil presumir que
Maomé não esteve apenas exposto às doutrinas e princípios do judaísmo de seu
tempo, mas também era erudito e experiente no raciocínio talmúdico. É aqui que
aprendemos a apreciar a profundidade de sua exposição ao referido raciocínio, e
lha reconhecemos dentro do Alcorão:
Ao relacionar a versão
corânica da história bíblica à fonte agádica, conforme indicado em nosso
estudo, as discrepâncias desaparecem quase totalmente. Pois,
surpreendentemente, as narrativas bíblicas são reproduzidas no Alcorão em uma
notável forma agádica (Katsh, 1980, Intro p.5).
A partir disso, pode-se
reconciliar a narrativa aparentemente contraditória dentro do Alcorão com a
narrativa canônica. Como os contos da Agadá e do Talmude dificilmente são
encontrados no Tanakh, propõe-se que tal disparidade foi intencional, não como
um método para substituir ou anular a narrativa canônica, mas para
suplementá-la e divulgá-la com um estilo judaico-árabe autêntico.
Então como ele
interagiu com os antigos cristãos? Quais fontes ele teve acesso? A antiga
Península Arábica oferece uma lente única para visualizar o antigo mundo
cristão. É aqui, na antiga Arábia, que a maior parte do esforço da ortodoxia
ocidental não conseguiu alcançar. Raramente as influências dos concílios católicos,
e seus decretos, intencionaram a mente árabe; quando comparado ao ocidente
ortodoxo, muitos cristãos ali formaram uma coleção de refugiados, párias,
adeptos não ortodoxos e não convencionais. Na verdade, o termo “Nasara” usado
no Alcorão cita esse testemunho ao descrever um tipo particular de cristão. Nas
primeiras porções de Meca do Alcorão, vemos uma curiosa falta de diferenciação
entre cristãos e judeus (Jomier, 1964). Este detalhe permite uma rejeição
casual para o leitor comum, no entanto, sob escrutínio, revela um tipo muito
particular de cristão que era difícil diferenciar dos judeus contemporâneos da
época de Maomé. No Alcorão, temos uma demonstração desse estilo de cristão que
aceitou a mensagem de Maomé, e, nas palavras deles, já lha estavam praticando:
“E quando lhes é recitado, eles dizem: ‘Nós acreditamos nisso, pois é a Verdade
de nosso Senhor: de fato, temos sido muçulmanos (nos curvando à vontade de
Deus) muito antes’”(Yusuf Ali, 2001, 28:53)
Esta testemunha única
descreve um povo que aparentemente não adotou a perspectiva ortodoxa ocidental
de cristianismo, e, presumivelmente, era de uma forma isolada de Cristianismo.
Acredita-se entre os estudiosos que esses cristãos eram da seita nestoriana. No
entanto, há controvérsias: “Portanto, é precipitado imaginar como se referisse
apenas os ortodoxos melquitas, jacobitas e nestorianos (por Nasara)” (Jomier,
1964). O exemplo de como esses cristãos afirmavam ser adeptos anteriores ou
preditivos da mensagem de Maomé sugere que eles pertenciam a uma seita que
compartilhava elementos do judaísmo e uma forma particular de unitarismo
cristão. Ou seja, compartilhavam alguma forma de comunhão com práticas típicas
do judaísmo, enquanto adotavam uma crença concordante na unidade de Deus, como
judeus e Maomé professam. Como refugiados do expurgo ortodoxo ocidental de
hereges nos séculos anteriores, este autor propõe que alguns dos cristãos
árabes contemporâneos de Maomé são de origem judaico-cristã, não nestorianos.
Sua inclinação para a adoção de dogmas heterodoxos e não-ortodoxos, e sua
familiaridade com textos-fontes não-ortodoxos para inspiração religiosa é
notável. Consequentemente, sabemos que a memorização e a recitação eram uma
prática comum entre judeus e cristãos contemporâneos nos dias de Maomé. Desta
maneira Maomé aprendeu; “A tradição oral do texto teve prioridade sobre a
tradição escrita” (Jomier, 1964).
A maioria deles foi
coletada em um estudo que coloca em paralelo os textos rabínicos ou apócrifos,
e suas versões corânicas. (O arrependimento e o perdão de Adão, a pregação de
Noé antes do dilúvio, Salomão e a rainha de Sabá, a infância de Maria, Jesus
falando no berço, milagre de Jesus do pássaro de barro) (Jomier, 1964, p.59).
É certo que essas
referências apócrifas foram adotadas no “manto agádico”, como mencionado
anteriormente no Talmude, pela interação de Maomé e o “Nasara” contemporâneo.
Há muito a ser falado
sobre esses poucos que afirmavam já serem versados no Alcorão antes de Maomé
propagá-lo. Infelizmente, não há nenhuma evidência se estes eram principalmente
de origem judaica ou cristã. No entanto, o importante e consensual entre os
estudiosos é:
“Mais uma vez, o que
está sendo elogiado é a percepção escriturística, uma atitude ou aptidão
espiritual que permite discernir o vindouro e o encerrar da revelação.
Permanecer fiel em piedosa antecipação de seu cumprimento é o significado de
adesão/perseverança. ” “Já Éramos Muçulmanos,” Qur’an 28:52-55 (McAuliffe,
1991) p.258.
Com base na noção que
Maomé não foi apenas exposto à teologia judaica e cristã, mas também aprendeu
seus métodos de interpretação, poder-se-ia perguntar se algum desses temas foi
adotado em sua mente como mensagens autênticas de Deus. Bell propõe que suas
adoções foram intencionais:
A chave para muitas
coisas, tanto no Alcorão quanto na carreira de Maomé, reside, como espero
mostrar, apenas em sua aquisição gradual de conhecimento do que a Bíblia
continha e do que judeus e cristãos acreditavam . . .Devemos vê-lo emprestando
conscientemente; e ele é muito franco sobre isso . . Podem ter sido
originalmente de fora da Arábia, mas na época de Maomé faziam parte da cultura
árabe (1968, p.68-69).
Este método de adoção e
a natureza do conteúdo emprestado revelam o auspício do caráter de Maomé.
Baseado nessas comparações, sua reputação é louvável por buscar sincera e
apaixonadamente Deus e a verdade, com a coragem de se comunicar, aprender,
familiarizar e compreender verdadeiramente as lições enfáticas dessas histórias
de seus contemporâneos.
Relatando a adoção
desses contos, Richard Bell declara: “Em qualquer caso, ele não hesitou em
adotar, como sua própria crença, o que descobriu ser parte dessa revelação, ou
de fato qualquer coisa que ele descobriu ser acreditada e relacionada a ele,
por aqueles que seguiram a religião do Deus Único” (1968). Muitos estudiosos
concordam que seu contato com esses temas e narrativas foi por meio do diálogo,
obtido oralmente, e, em muitos casos, recitado para ele; “Maomé não está se
identificando com judeus ou cristãos, mas coletando informações de qualquer
fonte acessível, e obtendo-as frequentemente em terceira ou quarta mão, e não
na primeira” (Bell, 1968).
A fim de apresentar a
atração religiosa mais plausível de Maomé por essas fontes, devemos fazer
concessões, por causa deste artigo, que seu personagem era um líder muito
venerável, resiliente e devoto. Outras concessões são feitas em relação ao seu
acesso aos textos canônicos. É muito difícil determinar se algum cânone, seja
de precedência judaica ou cristã, estava disponível ao longo da vida de Maomé,
seja em árabe ou outra língua. Isso apresenta dificuldade para o leitor moderno
em se relacionar com ele, visto que, por gerações, tivemos um cânone comum de
escrituras amplamente disponível. Notavelmente, essa séria incerteza lança dúvidas
sobre a natureza das críticas posteriores de Maomé aos textos judaicos e
cristãos. Bell fala abertamente, representando um consenso acadêmico: “Pelo que
sabemos de seus métodos posteriores, é muito improvável que ele tenha usado
qualquer fonte escrita. Ele se baseava em informações orais que lhes eram
fornecidas em resposta às suas perguntas” (1968). Apesar de quaisquer
questionamento quanto a tradição oral, está claro que Maomé tinha uma mente
muito afiada e inquisitiva para concluir o Alcorão dentro das limitações de seu
ambiente. Como Bell supôs, Katsh também relata que:
“Nosso estudo revela
que Maomé (570–632 C.E.) bebeu consideravelmente de fontes judaicas. Ele tinha
plena consciência da importância da religião judaica, e se baseava fortemente
nela. Ele usou todas as fontes, a Bíblia, o Talmude, bem como os apócrifos. A
tradição cristã também foi um material valioso para o desenvolvimento de sua
nova estrutura” (1980, Intro p.4).
Revisando as questões
desta pesquisa, Maomé foi influenciado pela tradição e textos judaicos ou
cristãos? Em caso afirmativo, algum desses temas foi adotado no Alcorão? A
evidência apresentada neste artigo sugere que Maomé esteve amplamente exposto a
detalhes profundos da antiga mente judaica, e se tornou muito familiarizado com
a prosa e o raciocínio talmúdicos, como é evidenciado por seu uso no Alcorão.
Além disso, essa pesquisa também mostra que ele tinha, com certeza, não apenas
um conhecimento, mas uma compreensão profunda de grande parte do compêndio
heterodoxo de escritos dos primeiros apócrifos cristãos. O leitor astuto
comparará detalhes entre o Alcorão e os escritos apócrifos anteriores, e
encontrar adoções de narrativas quase literais no Alcorão.
Concluindo, o exercício
de pesquisar as questões deste tópico; “Maomé foi influenciado pela tradição
judaica e cristã?” tem sido uma tarefa extremamente gratificante. Revisar as
obras de muitos estudiosos e expor-se à rica história e caráter de cada uma dessas
religiões representadas deixou este autor com muito mais respeito e apreço por
todas as partes. Este exercício apresentou Maomé sob uma nova luz: um estudante
prestigioso e fervoroso em busca sincera por Deus, que admiravelmente
encontrou, apesar das duras condições de sua educação, ambiente, cultura,
tradição, e, presumivelmente, incapacitante falta de códices canônicos. Para
alguém ler e se familiarizar com os métodos hermenêuticos tanto judaicos
talmúdicos quanto cristãos, e amalgamar tamanho testemunho inspirador da
unidade e zelo transformador para o único Deus verdadeiro é muito louvável. É
com esse conhecimento que se pode atravessar pontes de entendimento para se
relacionar com aqueles que compartilham de uma busca ardente pelo divino.
Este autor entende que
a natureza e os detalhes da pesquisa e exposição apresentados neste artigo são
totalmente subestimados e acenam para uma exposição inter-religiosa adicional.
Estudos em andamento devem ter como objetivo abordar questões mais complexas
como: Por que essas adoções específicas? E o que fazer com o resultado desses
detalhes? Como as pontes de entendimento entre as religiões monoteístas podem
ser reconciliadas ainda mais?
Referências
Bell, R. (1968). The
Origin of Islam in its Christian Environment. (2ª e.). Londres. Frank Cass
& Co. Ltd.
Jomier, J. (1964). The
Bible and the Koran. New York, Desclee CO Inc.
Katsh A. I. (1980).
Judaism in Islam: Biblical and Talmudic Backgrounds of the Koran and its
Commentaries. (3ª e.). New York, Sepher-Herman Press.
McAuliffe, J. D.
(1991). Quranic Christians: an analysis of classical and modern exegesis.
Cambridge. Cambridge
University Press.
Yusuf Ali, A. (2001).
The Holy Qur’an. (5ª e.). Hertfordshire. Wordsworth Editions Ltd.
FONTE: Estudos Adventistas
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