Teologia

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

HAGAR E O DEUS QUE EXALTA OS VULNERÁVEIS

 Ricardo André

Certa vez vi um post no Facebook a respeito de Hagar que dizia, entre outras coisas interessantes, que “Deus tem um jeito de exaltar os vulneráveis”, o que me fez pensar e escrever este texto. A história dela é quase ignorada pelos pregadores e escritores religiosos. Sua história, porém, é repleta de lições para nós. Então queremos fazer uma reflexão a respeito da sua experiência a partir de uma abordagem completamente diferente do que comumente os pregadores e comentaristas bíblicos fazem. Frequentemente, as pregações e os comentários bíblicos a colocam na posição de inimiga e destruidora de lares; como uma escrava insubordinada e insolente que desafiou sua senhora. Entretanto, não vamos seguir essa mesma trilha da abordagem tradicional acerca da vida dela. Essa abordagem existem aos montes. Vamos estudar sua história com um outro olhar e resgatar a figura de Hagar, essa mulher que passou por uma história dolorosa de abuso e solidão. Mais do que isso, queremos aprender com o choro dela que deu nome a Deus e reconheceu-O como o “Deus que ouve e que vê”.

Quem foi Hagar?

Com base nas evidências da pesquisa do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986) de que os antigos egípcios eram negros do mesmo tipo que todos os nativos da África, há quem diga que Hagar era uma mulher negra africana, mais precisamente do Egito. Mas, a narrativa da negritude egípcia não é compartilhada por todos os historiadores. Muitos deles dizem que pensar num Antigo Egito Negro é “tudo confusão com os núbios’’ - uma civilização negra também próxima ao Nilo – “não eram negros, mas brancos de pele morena”. A raça ou a cor da pele dos egípcios antigos ainda hoje é objeto de muita discussão entre os historiadores. Polêmica à parte, o que sabemos ao certo é que Hagar era escrava-concubina de Abraão, adquirida durante sua permanência temporária no Egito (Gn 16:1; cf. Gn 12:10, 16). 

Segundo o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, Hagar não é um nome egípcio. Então, provavelmente “Hagar” não seja seu nome de nascimento. Todavia, seu nome original não é revelado no texto sacro. “O nome Agar, que significa “fuga” em árabe, talvez lhe tenha dado após ela ter fugido de sua senhora” (v. 1, p. 315). "Por insistência de Sara, Abraão tomou Agar como segunda esposa, segundo o costume da época, após ter passado dez anos em Canaã” (Dicionário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, p. 30). Portanto, em sua condição de escrava não escolheu ter relações sexuais com Abraão, ela foi obrigada. O desejo de Sara era ter descendência, porém era estéril, não podia ter filho (Gn 16:2). Naqueles dias e naquela cultura oriental a esterilidade trazia consigo verdadeiro estigma e desonra (Gn 30:1, 23; Lv 202:20). Quando Hagar soube que estava grávida do patriarca, começou a “desprezar” sua senhora, o que provocou a ira dela. A rebeldia da escrava denuncia o sistema que a oprimia. Sara foi queixar-se do seu marido, o qual respondeu: “Sua serva está em suas mãos. Faça com ela o que achar melhor". Então Sarai tanto maltratou Hagar que esta acabou fugindo” (Gn 16:6, NVI). Sara ficou tão tensa com a questão que começou a abusar psicologicamente sua escrava, que finalmente Hagar fugiu em direção ao sul para o deserto.

Ela havia quase alcançado a fronteira egípcia, quando um anjo em forma humana a encontrou junto à fonte próxima de Sur. Ele ordenou a Hagar que voltasse e se submetesse a Sara (v. 9). Isto seria assaz difícil. Mas com o encorajamento de que Deus também lhe daria uma grande nação, ela regressou. Sabemos que ela decidiu voltar em face de visíveis dificuldades porque confiou em Deus. Teve um filho a quem Abraão chamou Ismael.

Hagar pensou que morreria depois de ter visto o mensageiro de Deus, e chamou-O “o Deus que me vê” (v. 13), “pois Ele não apenas a tinha visto e vindo até ela em sua aflição, mas havia permitido também que ela O visse e vivesse” (Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 1, p. 318).

Puxa! Amigo(a), percebeu quão libertador é essa experiência, considerando a situação de extrema exclusão de sua vida (mulher, possivelmente negra, escrava e estrangeira)? O que esse encontro nos ensina sobre Deus? Que Ele é Deus cheio de ternura, bondade e misericórdia. Note que Ele não chama Hagar de escrava, mas sim, pelo seu nome. Em resposta Hagar dá nome a Deus. Ela dá um nome a quem lhe dá um nome. É a única mulher na Bíblia que fala diretamente com Deus e a única que lhe dá um nome: “O Deus que Vê”. Isso porque Ele havia falado com ela, e ela havia perguntado a si mesma: “Teria eu visto Aquele que me vê" (Gn 16:13). Ela também deu a seu filho o nome de Ismael, que significa “Deus ouve”. A amarga experiência enfrentada por ela em Canaã (hoje Palestina) a tornou uma gigante. Ela tornou-se uma matriarca de um grande povo, sua descendência é grande, era uma mulher negra em movimento. Ela é exemplo de alguém que resiste e luta por dignidade e emancipação.

Anos mais tarde, houve conflitos entre Isaque, filho de sara, e Ismael, filho da escrava, o que levou Sara a exigir ao seu marido que os expulsassem da casa. Hagar e seu filho foram expulsos pelas mesmas pessoas que abusaram dela, indo peregrinar sem direção no deserto. Eles se perderam no deserto de Berseba e estavam a ponto de morrerem de sede. No deserto Hagar ainda clamou a Deus, quando bondosamente envia novamente Seu anjo para cuidar deles. O anjo conduziu-os até um poço e lembrou Hagar da promessa feita a ela com relação a Ismael (Gn 21:9-19). Eles nunca foram desamparados.

“Hagares” de hoje

À semelhança de Hagar, milhares de pessoas sofrem a exclusão, a opressão e a solidão nos dias atuais. Centenas de mulheres sofrem a opressão da sociedade machista manifestada na desigualdade de direitos entre homens e mulheres, altos índices de violência, assédio e estupro, objetificação da mulher, diferença salarial e muitos outras formas de opressão. Muitas são violentadas e assassinadas por seus maridos ou ex-maridos; outras são abusadas por outras mulheres, as patroas, quando elas são empregadas domésticas. Quantas dessas trabalhadoras são exploradas por suas patroas, sendo submetidas a longa jornada de trabalho e sem direitos trabalhistas.

Hagar é a mulher negra e parda excluída, abandonada pela família e pela sociedade, muitas vezes com filhos, sem direitos ao trabalho, moradia e a saúde, que sofre diariamente com o racismo estrutural, e as questões diretamente relacionadas por ser mulher – acaba sofrendo dupla, ou triplamente. De acordo com Atlas da Violência de 2019, 4.936 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2017, maior índice dos últimos 10 anos. Isso representa 13 vítimas por dia – 66% delas eram negras. E nos últimos anos, os assassinatos de brasileiras pretas e pardas só vêm crescendo.

As mulheres negras foram sempre relegadas a postos de submissão, não sendo tratadas com o devido respeito, mencionadas como seres humanos inferiores, e geralmente, representadas por sua sexualidade sempre em posições hierárquicas inferiores. A violência perpetrada contra elas certamente remete ao passado colonial, em que se instituiu o poder sobre a sociedade com base na ideia de raça, que passou a ser, com esse propósito, o estabelecimento de valores distintos entre as pessoas.

Sabemos que as mulheres negras sempre sofreram todo o tipo de preconceito, ao ponto de terem sido tratadas como uma coisa, um objeto, pertencente ao senhor dos escravos. Após a abolição da escravatura, percebe-se que, tristemente, não houve mudanças significativas. A escravidão foi abolida, porém, não foram criados instrumentos, estímulos ou políticas públicas para auxiliar essas mulheres, que supostamente passaram a ser “livres”.

Hagar são as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, que são diariamente abusadas e violentadas sexualmente, abandonadas, em situação de rua, e vítimas de agressões e toda forma de violência.

Hagar são os jovens negros das periferias que são assassinados diariamente. Segundo o site da Anistia Internacional Brasil, mais de 58 mil pessoas morrem assassinadas por ano no Brasil. A maioria são jovens entre 15 e 29 anos. 77% dessas vítimas destas mortes são “jovens, negros, do sexo masculino, moradores de periferias”.

Hagar são os pobres explorados e oprimidos pelo sistema do capital, que vivem na miséria, sem empregos, sem moradia, sem educação e sem saúde.

Para além de tudo isso, a história de Hagar tem muito a nos ensinar sobre Yahweh Deus. Ela conheceu de perto o Deus que vê e ouve, que se relaciona com nossas dores, nos protege e promete coisas maravilhosas, mesmo quando não conseguimos nos mover. Portanto, o Deus das Sagradas Escrituras é o Deus que acolhe e cuida dos vulneráveis da nossa sociedade.

Quando a relação entre Hagar e seus senhores tornou-se tensa, Deus viu o que era melhor para todos e deixou que Hagar fosse para o deserto. À primeira vista parece injusto com ela, porém, Ele se mostra presente durante seus problemas. Deus sempre sabe e nos guia – se deixarmos – para um plano de vida melhor, ainda que pareça a pior solução no início. Ele vê o futuro, vê o que podemos aprender com as falhas e com as situações difíceis e quer moldar o nosso caráter onde nós mais temos dificuldade de aceitar e mudar pelas nossas próprias forças.

Deus viu e falou com Agar, uma negra em condição de exclusão, uma invisível. Desafio você a pensar sobre sua vida, seu cotidiano e relações: quem são as pessoas invisíveis perto de você? Quem elas são, que cor elas têm? Deus sabe o nome delas.

Ao sabermos da existência desses invisíveis em nossa comunidade, em nossa cidade e em nosso país, devemos atuar em cooperação com Deus para aliviar  e remediar a opressão e aflição deles. Sob inspiração divina, Ellen G. White escreveu: “O Senhor requer que reconheçamos os direitos de todos os homens. Os direitos sociais dos homens, e seus direitos como cristãos, devem ser tomados em consideração. Todos têm de ser tratados fina e delicadamente, como filhos e filhas de Deus” (Obreiros Evangélicos, p. 123).

Ela ainda enfatizou que, como igreja devemos lutar contra os males da opressão: “A escravidão, o sistema de castas, os preconceitos raciais, a opressão dos pobres, a negligência dos desventurados – isso tudo é estabelecido como anticristão e uma séria ameaça ao bem-estar da humanidade, e com males apontados por Cristo que a Sua igreja tem o dever de vencer” (Life Sketches of Ellen G. White, p. 473).

Quando Hagar foi aconselhada pelo anjo a regressar para a casa dos seus senhores, confiando na promessa de Deus que Ismael viria a constituir uma grande nação, ela decidiu voltar. Sua expressão de fé deveria encorajar-nos em tempos de grande angústia, quando devemos fazer uma escolha difícil. Deveria lembrar-nos que Deus nunca permite que fiquemos além de Sua vista, mas cuida de nós e nos conforta, assim cuidou dessa escrava africana há muito tempo.

Caro(a) amigo(a) leitor(a), não sei qual é a sua situação socioeconômica tampouco sua condição espiritual, mas se estás sofrendo algum tipo de opressão, preconceito e exclusão, seja um guerreiro ou guerreira! Junte-se a outros igualmente vulneráveis, confiando no poder de Deus lute! Seja um gigante! Reconheça a força histórica dos oprimidos para mudar a situação de opressão! Mesmo que tudo pareça perdido, não temas! Confie! Deus é contigo. Ele ofereceu a razão pela qual não precisamos sucumbir ao desespero e desânimo. O incomensurável amor de Deus, que alcançou a escrava Hagar e tantos outros no passado, não nos ignora hoje. Direcionar a mente para esse amor é o caminho infalível para superarmos quaisquer sofrimento. Clame a Deus e Ele enviará o socorro na hora certa.

Há uma bela canção do Hinário Adventista do Sétimo Dia que enfatiza a sublime verdade de que Deus vê nosso sofrimento e nos ouve, é o hino “Deus Sabe, Deus Ouve, Deus Vê” (nº 500). Ele diz:

Você que se sente pequeno,

Dirija seus olhos a Deus;

Não deixe que sombras o envolvam,

Entregue sua vida a Deus

 

Deus sabe o que vai dentro d'alma,

Deus ouve a oração suplicante,

Deus vê sua angústia e o acalma,

Deus faz de você um gigante.

Deus sabe o que vai dentro d'alma,

Deus ouve a oração suplicante,

Deus vê sua angústia e o acalma;

Deus sabe, Deus ouve, Deus vê.

 

Se a vida levou os castelos,

Que em sonhos você construiu,

Não dê por vencidos seus planos,

Entregue seus planos a Deus.

Lembre-se que Deus é poderoso para trazer luz em meio às trevas! (Sl 112:4). Ele fez assim com a escrava Hagar e, certamente, fará com você.

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