JESUS E O ESPÍRITO SANTO: SÃO ELES UMA ÚNICA PESSOA, ATUANDO DE FORMAS DIFERENTES?
Milton
L. Torres*
Em nossa época de
pluralidade de crenças e completa liberdade de expressão, têm se tornado cada
vez mais comuns os ataques às doutrinas cristãs, conforme explicitadas nas
Escrituras e tradicionalmente compreendidas pelos teólogos e fiéis. Essa
situação adquire contornos de crise uma vez que a postura pós-moderna parece
exigir certa passividade diante das diferenças, ao mesmo tempo em que o
bombardeio dos meios de comunicação contra as Escrituras se torna mais e mais
inclemente. Se levantamos a voz para denunciar os equívocos de tais posturas
excessivamente permissivas, somos chamados de intolerantes. Por outro lado, se
nos calamos, somos rotulados como pessoas incultas, destituídas de argumentação
e credibilidade, indignas de atenção, escravas da fé cega.
Diante dessa situação
até certo ponto melindrosa, nos propomos a desenvolver uma reflexão sobre a
possibilidade de que Jesus e o Espírito Santo sejam uma única Pessoa. Esse
argumento tem sido recentemente proposto por movimentos dissidentes que tentam
negar a pessoalidade e a personalidade do Espírito Santo, bem como minar a
crença na doutrina das três Pessoas que compõem a Divindade. Ao defender essa
posição, seus propositores procuram mostrar que, quando se referem ao “outro
Consolador”, à intercessão em favor dos crentes e à distribuição de dons à
igreja, as Escrituras estão, de fato, descrevendo a obra de Jesus, codificada
sob a forma de enigmáticas referências ao Espírito Santo.
“Outro
Consolador”
Jesus Cristo disse: “Eu
pedirei ao Pai, e Ele lhes dará outro Conselheiro para estar com vocês para
sempre, o Espírito da verdade. O mundo não pode recebê-Lo, porque não O vê nem
O conhece. Mas vocês O conhecem, pois Ele vive com vocês e estará em vocês. Não
os deixarei órfãos; voltarei para vocês. Dentro de pouco tempo o mundo não Me
verá mais; vocês, porém, Me verão. Porque Eu vivo, vocês também viverão” (Jo
14:16-19, NVI).
Infelizmente, uma
compreensão inadequada dessa passagem tem levado alguns a concluir que a
promessa nela contida, de que Jesus não deixaria órfãos os discípulos, e de que
Ele voltaria para eles, aponta para a vinda de Jesus à Terra para realizar a
obra do Espírito Santo.
A maioria dos teólogos
crê que Jesus aqui Se referiu à Sua vinda por ocasião da ressurreição.
Obviamente, a vinda do Conselheiro é condicionada pela morte e ressurreição de
Jesus. Devemos nos lembrar de que, nesse contexto, a promessa de Jesus foi
motivada por uma declaração de Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais” (Jo
14:5). Diante disso, o Mestre explicou que rogaria ao Pai por outro Consolador
e que este ficaria para sempre com os discípulos. Até aqui, a afirmativa de
Jesus respondia somente em parte à inquietação dos discípulos, seu temor de ser
abandonados. Contudo, Tomé havia feito referência específica à curiosidade dos
discípulos quanto ao que aconteceria com o Mestre e, por essa razão, Jesus
acrescentou que voltaria para eles, mas o mundo não mais O veria. De fato,
imediatamente após a ressurreição, Jesus não mais Se manifestou para as pessoas
do mundo (a não ser para aqueles que, por Sua autorrevelação, vêm a se
converter).
Para defender o ponto
de vista de que Jesus estava falando de Si mesmo, ao Se referir a outro
Consolador, os que pensam assim primeiramente argumentam que nem o mundo nem os
discípulos conheciam o Espírito Santo e que, já que os discípulos conheciam
Jesus muito bem, o Espírito e Jesus tinham que ser a mesma pessoa. Segundo esse
modo de pensar, a declaração de Jesus, de que os discípulos não O veriam ainda,
seria cumprida por ocasião de Sua vinda como o “outro Consolador”. Essa posição
não considera, porém, que o Espírito Santo já havia sido derramado sobre os
discípulos, segundo a promessa de João Batista (Mc 1:8; 6:13), ainda que não de
forma plena (Lc 24:49; Jo 20:21, 22; At 1:5). Ninguém vai a Cristo senão pela
atuação do Espírito Santo. A própria condição de discípulos lhes garantia um
conhecimento (ainda que parcial) do Espírito Santo.
O segundo argumento
empregado para provar uma suposta identificação de Jesus como o “outro
Consolador” é o da comparação das expressões “outro Consolador” e “outro
discípulo”: “Pedro e o outro discípulo saíram e foram para o sepulcro. Os dois
corriam, mas o outro discípulo foi mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao
sepulcro” (Jo 20:3, 4). Argumentam que, se João podia se chamar de “outro
discípulo”, o Salvador podia Se referir a Si mesmo como “outro Consolador”. É
verdade que, ocasionalmente, Jesus Se referia a Si mesmo na terceira pessoa (Mt
12:40; 17:9; Lc 24:15, 16, 26, 27). No entanto, nunca o fez por meio da palavra
“outro”. De fato, todas as vezes em que Ele empregou essa palavra, estava
falando de outra pessoa. Por exemplo: “Eu vim em nome de Meu Pai, e vocês não
Me aceitaram; mas, se outro vier em seu próprio nome, vocês o aceitarão” (Jo
5:43). Ele também usou essa palavra referindo-Se a João Batista (Jo 5:32).
João podia se referir a
si mesmo como “o outro discípulo” porque havia mais discípulos; mas, se Jesus é
o Consolador único, como querem os dissidentes, seria ilógico que Ele Se
referisse a Si mesmo como sendo outro Consolador. Aliás, para que tenha sentido
o argumento de que Jesus poderia usar a palavra “outro” em relação a Si mesmo
porque João a usava, seria necessário que, no texto empregado para defender
essa ideia (Jo 20:3, 4), João e Pedro fossem uma única pessoa. Ao contrário
disso, ele afirmou que eram duas pessoas diferentes. Semelhantemente, quando
Jesus chamou o Espírito Santo de “outro Consolador”, estava afirmando que Ele e
o Espírito Santo são duas pessoas diferentes.
Ellen G. White
esclarece a exposição de Jesus: “Limitado pela humanidade, Cristo não poderia
estar em toda parte em Pessoa. Era, portanto, do interesse deles [os
discípulos] que Ele fosse para o Pai e enviasse o Espírito como Seu sucessor na
Terra.” 1 Evidentemente, não podemos conceber que ela estivesse falando de um
sucessor de Jesus, se o Espírito Santo fosse apenas um nome diferente para o
Senhor Jesus Cristo.
Espírito
Santo: impessoal?
O texto de Atos 2:33
tem sido usado, em tempos recentes, como suposta prova de que o Espírito Santo
não é uma Pessoa. Os argumentos correm em duas linhas principais: (1) o verso
especificamente se refere ao Espírito Santo por meio do pronome demonstrativo
“isto”, de valor neutro, e que (2) o verbo “derramar” deixa claro que Ele não é
uma pessoa, mas uma espécie de força, coisa ou objeto. Diz o texto: “Exaltado,
pois à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo,
derramou isto que vedes e ouvis.” O primeiro argumento que considera
desrespeitoso o emprego da palavra “isto” (touto, em grego) em relação a uma
Pessoa divina, esbarra em uma ificuldade intransponível. O uso de “isto” se
deve ao fato de que a expressão “Espírito Santo” (pneuma hagion) é neutra em
grego.
Diferentemente do
português, idioma que conta com apenas dois gêneros, o grego (assim como o
latim) possui três. No idioma português, definimos como masculinos ou femininos
mesmo os objetos assexuados. Assim, “mar” é masculino e “mensagem” é feminino.
Mas em grego, é comum o emprego do gênero neutro quando não queremos fazer
referência explícita ao sexo. Dessa forma, a palavra “bebê” (brephos) ou a
expressão “filhinhos” (teknia), muito empregada pelo apóstolo João em suas
epístolas, são expressões neutras, sem nenhuma referência ao sexo das pessoas
envolvidas. A mesma coisa acontece em inglês, quando se refere ao Espírito
Santo, a um bebê ou a uma criança como it (isso).
A tradução de Atos 2:33
para o português deixa claro que a língua grega trata a expressão “Espírito
Santo” como neutra. Se os que defendem a impessoalidade do Espírito Santo
pesquisassem cuidadosamente o grego, descobririam que esse não é o único caso.
A mesma coisa ocorre em João 14:16, 17, embora, ali, a tradução não o deixe
explícito. Em outras passagens (Jo 14:26; 16:7, 8, 13, 14), João emprega o
pronome masculino ekeinos (“este” ou “ele”) para se referir ao Espírito Santo,
mostrando que os gêneros masculino e neutro não são atribuídos, de forma
consistente, à terceira Pessoa da Divindade. De fato, Deus não é homem nem
mulher, pois “é espírito, e importa que os que O adoram O adorem em espírito e
em verdade” (Jo 4:24). Em todo caso, percebe-se que tanto bíblica quanto
linguisticamente, o gênero de uma palavra não determina a pessoalidade do ser
que ela representa.
Em relação ao segundo
argumento, acaso pode-se dizer que o verbo “derramar” nunca possa ter seres
pessoais como seu objeto? Não! Por exemplo, em Portugal, um jornal esportivo
noticiou o seguinte: “O jogo foi desfigurado como espetáculo, mas ainda
atraente. O Liverpool derramou homens em frente… estilo italiano defendendo.”2
Nesse caso, percebe-se que o time inglês adotou estilo defensivo das equipes
italianas, “derramando” jogadores à frente da defesa. Pode-se derramar uma
pessoa? Aparentemente, sim, desde que estejamos falando em linguagem figurada.
Um poema de Gustavo Bicalho mostra isso:
“Segunda-feira.
Perde-se a hora. O relógio evaporou. ‘Moço, me vê um copo d’água?’ ‘Acabou.’ A
avenida derrama gente. Sublimo.”
O poeta descreve como
seu eu lírico despertou atrasado na segunda-feira, entrou em um estabelecimento
em busca de água, não a encontrou, voltou à avenida repleta de pessoas e,
finalmente, relevou as dificuldades.
Quando a Bíblia fala
que o Espírito é derramado sobre toda a carne (Jl 2:28), está usando linguagem
figurada, assim como quando o faz ao dizer que a cólera de Deus se derrama como
fogo (Na 1:6; Ap 16:1), ou que o amor divino é derramado em nosso coração (Rm
5:5). De acordo com Ellen G. White, “nenhum princípio intangível, nenhuma
essência impessoal ou simples abstração poderia satisfazer às necessidades e
anelos dos seres humanos nesta vida de lutas com o pecado, tristeza e dor. Não
basta crermos na lei e na força, em coisas que não têm piedade ou nunca ouvem o
brado por auxílio. Precisamos saber acerca de um braço Todo-poderoso que nos
manterá, e de um Amigo infinito que tem piedade de nós”.3
Espírito,
mente, vida
Usando o mesmo
raciocínio, perguntamos: Pode-se defender a ideia de que a expressão “Espírito
Santo” seja empregada na Bíblia simplesmente com o significado de “mente” e
“vida”? Não! Em todas as ocasiões em que a palavra “espírito” tem esse sentido
figurado (1Rs 21:4, 5;
Dn 2:1-3; 1Co 14:14;
2Co 7:13), ela nunca vem seguida do adjetivo “santo”. Além disso, é-nos dito
que “Cristo labutou por Sua vide. Príncipe do Céu, Ele era ainda o intercessor
pelo homem, e tinha poder com Deus, e prevalecia em favor de Si mesmo e de Seu
povo. Manhã após manhã, Ele comungava com o Pai celestial, recebendo dEle um
batismo diário do Espírito Santo”.4 Na Terra, Jesus recebia o batismo diário do
Espírito Santo. Portanto, Ele não podia ser batizado com Sua própria mente!
Pela mesma razão, não
devemos entender a seguinte declaração de Paulo como significando que somente
Deus entende as coisas de Deus: “Quem conhece os pensamentos do homem, a não
ser o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, ninguém conhece os
pensamentos de Deus, a não ser o Espírito de Deus” (1Co 2:11). Ellen G. White
explica muito bem esse texto: “O Espírito Santo tem personalidade, do contrário
não poderia testificar ao nosso espírito e com nosso espírito que somos filhos
de Deus. Deve ser também uma Pessoa divina, do contrário não poderia perscrutar
os segredos que jazem ocultos na mente de Deus.”5
Também não devemos
interpretar de modo figurado Romanos 8:26, como se o apóstolo sugerisse que é a
“mente” de Cristo que realiza intercessão em favor do homens: “Da mesma forma o
Espírito nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos como orar, mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis.”
Os defensores da ideia
de que as referências à intercessão do Espírito Santo representam figuradamente
a intercessão de Jesus o fazem motivados por uma compreensão inadequada de 1
Timóteo 2:5, que diz haver apenas “um só Deus e um só mediador entre Deus e os
homens: o homem Cristo Jesus”. Tais pessoas passam por alto a compreensão
teológica que se convencionou chamar de “a economia da Divindade”. Ou seja,
embora Jesus tenha participado da criação de modo tão efetivo quanto o Pai,
apenas este geralmente recebe o epíteto de Criador. Assim, embora o Pai tenha
participado de modo tão efetivo quanto Jesus, é a este que geralmente
designamos Redentor. As Pessoas divinas têm unidade de propósito e ação, mas
cada uma delas, em certo sentido, Se destaca em relação a algum aspecto
específico de atuação. Por isso, afirmar que Jesus é o único Mediador não
contradiz o ensinamento bíblico de que o Espírito intercede pelo homem.
Em vez de
contraditórias, as atuações de Jesus e do Espírito Santo como intercessores
são, de fato, complementares. “Quando Cristo cessar Sua obra como mediador em
favor do homem, então começará esse tempo de angústia. Então, estará decidido o
caso de toda pessoa, e não haverá sangue expiatório para purificar do pecado.
Ao deixar Jesus Sua posição como Intercessor do homem junto a Deus, faz-se o
solene anúncio: ‘Quem é injusto, faça injustiça ainda… e quem é justo, faça
justiça ainda; e quem é santo, seja santificado ainda.’”6 “Enquanto Jesus
permanecer como Intercessor pelo homem no santuário celestial, a influência
restritiva do Espírito Santo é sentida pelos governantes e pelo povo.”7 “Enquanto
Jesus, nosso Intercessor, suplica por nós no Céu, o Espírito Santo atua em nós,
para que queiramos e efetuemos a Sua vontade. O Céu todo se interessa pela
salvação da pessoa.”8
Como se percebe, após
Sua morte, Jesus passou a ser Intercessor no Céu, no santuário celestial. O
Espírito Santo intercede a partir da Terra, convencendo-nos “do pecado, da
justiça e do juízo” (Jo 16:8). De acordo com a economia da Divindade, nada
impede que tanto Jesus como o Espírito Santo sejam identificados como
intercessores. O Espírito intercede e Cristo também intercede. De fato, segundo
Romanos 8:34, “quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu; e mais, que
ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por nós”.
Na
distribuição dos dons
No capítulo 2 do livro
de Atos, Lucas descreve a maneira pela qual o Espírito Santo concedeu o dom de
línguas à igreja primitiva. No entanto, em Efésios 4:8, temos a declaração
paulina de que foi Jesus quem distribuiu os dons espirituais à igreja: “Quando
Ele subiu em triunfo às alturas, levou cativos muitos prisioneiros, e deu dons
aos homens.” Provam essas declarações que Jesus e o Espírito Santo são a mesma
pessoa? De modo nenhum! Outras passagens das Escrituras revelam que Jesus e o
Espírito Santo participaram, conjuntamente, da distribuição de dons. Ao sugerir
temas de pregação aos pastores evangelistas, Ellen G. White afirmou o seguinte:
“São estes os nossos temas: Cristo crucificado pelos nossos pecados, Cristo
ressuscitado dentre os mortos, Cristo nosso Intercessor perante Deus; e
intimamente relacionada com estes assuntos acha-se a obra do Espírito Santo,
Representante de Cristo, enviado com poder divino e com dons para os homens.”9
O Espírito Santo distribui os dons como representante de Cristo.
Jesus é a fonte dos dons,
o Espírito Santo os entrega a nós. No entanto, a terceira Pessoa da Divindade
conta com o consentimento dos demais membros da Divindade para fazê-lo segundo
Seu próprio beneplácito: “Todas essas coisas, porém, são realizadas pelo mesmo
e único Espírito, e Ele as distribui individualmente, a cada um, como quer.”
Além disso, a seguinte
afirmação de Ellen White esclarece que Jesus está com o Espírito Santo quando
este realiza Sua obra: “Quando as provações obscurecem a alma, lembre-se das
palavras de Cristo, lembre-se de que Ele é uma presença invisível na pessoa do
Espírito Santo, e Ele será a paz e o conforto que lhe são dados,
manifestando-lhe que Ele está com você, o Sol da Justiça, expulsando suas
trevas.”10
*Milton
L. Torres – Professor na Faculdade Adventista de Teologia do
Unasp, Engenheiro Coelho, SP.
Referências:
1 Ellen G. White, Fé
Pela Qual Eu Vivo (MM, 1959), p. 56.
2 Desporto Notícias,
20/02/2008.
3 Ellen G. White,
Ibid., p. 54.
4 ___________, Signs of
the Times, 21/11/1895.
5 ___________,
Evangelismo, p. 617.
6 ___________,
Patriarcas e Profetas, p. 201.
7 ___________, Spirit
of Prophecy, v. 4, p. 429.
8 ___________, Signs of
the Times, 03/10/1892.
9 ___________,
Evangelismo, p. 187.
FONTE:
Publicado na Revista Ministério Mar/Abr 2012.
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