Teologia

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O DOM DE LÍNGUAS: UMA CUIDADOSA EXEGESE BÍBLICA

William H. Albach

“A respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes” – 1 Cor. 12:1.

A prática das assim chamadas manifestações de “línguas estranhas” no cristianismo, não só está em aumento, mas expande-se à partir dos círculos dos outrora humildes pentecostais no rumo do seio dos luteranos, episcopais, católicos e outras denominações mais. O movimento do século XX está se infiltrando por toda parte e trazendo consigo confusão, dúvidas, contendas e discórdia.  Grande parte da cristandade aguarda perdida, no que se refere a que medidas tomar com respeito ao movimento, esperando, junto com Gamaliel (Atos 5: 38,  39), que não seja de Deus e que, por isso, fracasse ao final. Em minha opinião, essa não é a solução do problema. O que se necessita é um esforço diligente para instruir os cristãos sobre o assunto a fim de que estejam capacitados a enfrentá-lo com sabedoria e entendimento.

Há mais de trinta anos, quando era um seminarista, passei um feriado em Chicago. Estando aborrecido, saí a caminhar naquela tarde em busca de algo excitante. Encontrei-o a menos de dois quarteirões de onde me hospedava—numa antiga sinagoga judaica, usada então por um grupo de pentecostais. Havia um culto em andamento e a curiosidade me fez entrar. O auditório de tamanho considerável abrigava um grupo disperso. Sobre a plataforma estava o pregador sentado. Tomei posição de observador junto ao balcão. Não havia ordem no culto. O pregador pregava ou orava num tom de voz alto e monótono. Outro começava a cantar um hino bem ritmado e o restante da congregação o acompanhava. Aplaudiam e batiam com os pés no chão. Os períodos ruidosos eram interrompidos às vezes por absoluto silêncio. Já estava ali por uma meia hora quando, interrompendo um dos períodos de silêncio, levantou-se uma mulher falando com sons ininteligíveis.  Aquela foi minha introdução ao dom de línguas. Embora nesse tempo eu fosse bastante jovem, pareceu-me que todo o culto havia sido manipulado para ressaltar as emoções e o que eu havia testemunhado não era um dom do Espírito de Deus, mas uma intoxicação emocional ou de histeria.

John L. Sherrill, em seu livro They Speak in Other Languages [Falam em outras línguas], relata a sua investigação do movimento de línguas. Como jornalista, conduz uma investigação bem minuciosa do movimento, aparentemente livre de preconceitos. Descreve sua primeira experiência num culto pentecostal, e, apesar do fato de que sua experiência se deu em Nova York, não era difícil convencer-me de que ele teria assistido ao mesmo culto que eu. Contudo, experiências  posteriores com os pentecostais e outros grupos reavivalistas me convenceram  de que todos empregam as mesmas técnicas; jogando com as emoções até que a pessoa débil, ou espontaneamente, se rende às manifestações de intoxicação emocional ou de histeria. Não quero parecer desrespeitoso para com a mulher cristã ou o feminismo em geral quando digo que outra evidência disso se acha  também no fato de que as mulheres têm um papel destacado nesse movimento, e são mais prontas a responderem a essas técnicas do que os homens. As mulheres simplesmente se inclinam mais do que os homens às emoções.

Histórico do Fenômeno Em Sua Versão Moderna

O movimento de falar em línguas do século XX teve seu começo no princípio do século, quando no ano de 1900 Charles F. Parham, um jovem ministro metodista, sentiu que havia algo mau em sua vida espiritual e se dispôs a buscar uma solução para o seu problema espiritual. Reuniu uma comunidade de cerca de quarenta “estudantes da Bíblia”—homens, mulheres e crianças—numa mansão abandonada em Topeka, estado de Kansas, EUA. Ele sabia que direção os seus estudos deviam tomar e finalmente o grupo chegou à conclusão de que necessitavam do “batismo do Espírito”, manifestado no dom de línguas. Na véspera do ano novo, para  1900, o grupo de reuniu e orou desde o crepúsculo até a tarde pedindo o dom de línguas, mas em vão. No final, uma jovem mulher se lembrou que no livro de Atos, em duas ocasiões (e Sherrill diz “freqüentemente”), o dom de línguas seguia-se à imposição de mãos. Segundo Sherrill, ele pediu a Parham que lhe impusesse as mãos sobre ela enquanto orava pedindo pelo dom. E enquanto ele o fazia, imediatamente ela começou a falar numa língua desconhecida.

Sempre que Sherrill informa em detalhes o que sucede no momento em que  a pessoa recebe o dom surgem características comuns: (1) A pessoa não está satisfeita com sua vida espiritual, (2) sua busca de satisfação espiritual a leva ao livro de Atos, (3) convence-se de que a solução para o seu problema é o batismo do Espírito, manifestado através do dom de línguas, (4) ora durante horas intermináveis pelo dom, (5) fala com articulações extáticas, ininteligíveis, mesmo para si própria. Muito mais se pode dizer acerca disso, mas notemos simplesmente em outros termos só os denominadores comuns: o dom parece ser de mais fácil acesso aos que se acham perturbados espiritualmente, emocionalmente abalados, esgotados física e emocionalmente, ou que são especialmente espontâneos à sugestão, auto-sugestão ou auto-hipnose. Notemos, além disso, que eles diagnosticam invariavelmente sua própria enfermidade espiritual, prescrevem o remédio para sua cura e bombardeiam o trono de Deus com orações até que Ele se dê por vencido e lhes conceda o que insistem em obter.

Concede realmente o Espírito Santo a habilidade de falar em línguas  desconhecidas às pessoas? Não podemos negar que a princípio o Espírito concedeu tal dom aos discípulos no primeiro Pentecoste cristão, levando-os a falar em línguas desconhecidas para si próprios, contudo inteligíveis aos estrangeiros reunidos na cidade de Jerusalém. Não podemos negar que mesmo hoje seja possível que o Espírito conceda esse mesmo dom. Mas não li nem ouvi prova convincente alguma de que hoje em dia o Espírito conceda o dom de línguas. Oh, sim, ouvi e li muitos relatos estranhos de pessoas que contam de suas experiências pessoais, ou de pessoas que relatam de segunda mão a história das experiências  que outros reivindicam ter vivenciado. Por exemplo, John Sherrill narra o  caso de certo homem que tendo recebido o dom, se apressou à rua e falou numa língua desconhecida a um estrangeiro. O estrangeiro respondeu em uma língua desconhecida—desconhecida para o homem do dom—e finalmente perguntou ao que lhe falava como conseguia falar em polonês de modo tão perfeito, sem poder entendê-lo por si mesmo.

Também se registra outra história de outro homem que, recebendo o aludido dom, fala em língua desconhecida a uma menina num parque e recebe a informação de que se acha falando em árabe antigo. Mas, invariavelmente, os dois ou três testemunhos pelos quais se pode estabelecer a veracidade de tais histórias não estão disponíveis; a identidade do polonês e da garota no parque não são dadas a conhecer. Os esforços de Sherrill por registrar a ação de falar em línguas e a reprodução dessas gravações perante especialistas em linguística não revelaram língua conhecida alguma m muitas horas de gravação.

O Pentecoste Original

O acontecimento escriturístico da manifestação de falar em línguas de maior documentação detalhada é a dos discípulos no primeiro Pentecoste cristão. Eles testificaram de Jesus Cristo, nosso Salvador, em línguas desconhecidas  a fim de que as pessoas de idioma estrangeiro na cidade pudessem conhecer  as obras maravilhosas de Deus em Jesus para a salvação do mundo. Hoje em dia, não se fala mais o dom de línguas como um veículo de comunicação do evangelho para os que não podem entender nossa própria língua, mas como de um dom especial divino que dá ao orador a segurança espiritual e emocional de que recebeu o dom do Espírito—uma experiência puramente subjetiva e emocional. Pelo menos em sua história original, os pentecostais insistiam em que, quando usado em público, o dom de línguas era acompanhado do dom de interpretação—dom especial que algum outro recebia capacitando-o a interpretar o que era dito na língua desconhecida. Sherrill anota em sua investigação que viu isso suceder, mas observa ao mesmo tempo  que não existia relação entre a quantidade de palavras faladas pelo orador e a quantidade de palavras pronunciadas pelo intérprete em sua tradução. Além disso, assinala, a interpretação vem sempre envolvida em palavras e fraseologia da versão bíblica “King James”.

Os que falam em línguas afirmam que a Bíblia menciona frequentemente o dom de línguas, especialmente no livro de Atos. No que toca ao livro de Atos, isso não é mencionado com frequência. Adicionalmente ao relato do primeiro Pentecoste cristão, é mencionado especificamente duas vezes: (1) Na história da conversão de Cornélio; e os que haviam vindo com Pedro estavam surpresos porque, segundo Atos 10:46, “os ouviam falando em línguas e engrandecendo  a Deus”. (2) Por ocasião da chegada de Paulo a Éfeso, onde encontrou discípulos que não sabiam nada sobre o Espírito Santo, tendo sido batizados apenas no batismo de João. Ali Paulo lhes falou de Jesus, e a seguir nos é dito em Atos 19:5, 6: “Eles, tendo ouvido isto, foram batizados em o nome do Senhor Jesus. E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e tanto falavam em línguas como profetizavam”. Notamos que em ambas as passagens  a implicação é de que as línguas faladas não eram alocuções extáticas, mas, à semelhança do primeiro Pentecoste cristão, línguas conhecidas; porque nos é dito que naquele momento os que falavam estavam “engrandecendo a Deus”; no outro texto se diz que “profetizavam”.

O Problema em Corinto

Para obter luz a respeito do movimento de línguas, devemos volver-nos  à mais pormenorizada declaração que há na Bíblia no que tange a esse tema, a saber—1 Coríntios 12, 13 e 14. Esta é a seção que mais citam os pentecostais em favor do movimento; contudo, estranhamente esses trechos não foram escritos  para apoiar o dom de línguas, mas para colocar o dom de línguas, como empregado naquele tempo, em seu devido lugar e perspectiva propícios. Paulo estava escrevendo a uma congregação com problemas, respondendo-lhes uma carta na qual haviam indagado a respeito de alguns problemas, entre os quais se achava o dom de línguas. Está bastante claro que naquela ocasião, tal como hoje, o dom de línguas se havia transformado num elemento que causava muita divisão na igreja de Corinto. Os que o possuíam, não só se sentiam superiores, como ainda pretendiam assim ser aos que não possuíam tal dom. Naquela época, como hoje, havia disputa, dissensão e aparente desamor quando se tratava do assunto—desamor de ambos os lados, mas que afetava especialmente os que supunham haver recebido o Espírito Santo em seus corações e vidas. É ao responder a uma pergunta específica sobre o tema que Paulo escreve: “não quero, irmãos, que sejais ignorantes sobre os dons espirituais”. Agora, destaquemos somente aqueles pontos salientes dessa seção.

Quem recebeu o Espírito Santo? Paulo declara: “. . . ninguém pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo” (12:3). Noutras palavras, todo o que crê em Jesus como Senhor e Salvador pode estar seguro de que foi batizado no Espírito. Não necessita de qualquer manifestação especial da presença do Espírito em sua vida. E esta é uma das coisas tristes do movimento pentecostal.  Não só fomenta uma comunidade cristã dividida em duas classes (os que têm o dom, e os que não o têm), como ainda levanta a dúvida de ser ou não cristão verdadeiro, na mente de muitos dos que não possuem o dom.

Paulo depois assinala que há uma variedade de dons do Espírito, todos dados pelo mesmo Espírito (12:4-11) e que estes são concedidos para o bem comum (12:7). Ele enumera esses dons do Espírito, como segue: (1) a palavra da sabedoria, (2) a palavra da ciência, (3) a fé, (4) os dons de cura, (5) a operação de milagres, (6) a profecia, (7) o discernimento de espíritos, (8) a variedade de línguas e  (9) a interpretação de línguas. Note-se que entre os nove dons, o falar em línguas e a interpretação de línguas são enumeradas ao final e como os menores dentre todos. Não posso crer que essa haja sido uma enumeração acidental por parte de Paulo, porque mais adiante, em outra declaração sua, no capítulo 12, verso 28, Paulo começa a lista de dons em outra fraseologia: “A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro lugar mestres, depois operadores de milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas. Porventura são todos apóstolos? Ou todos profetas? São todos mestres? ou operadores de milagres? Têm todos dons de curar? Falam todos em outras línguas? Interpretam-nas todos?” Em resumo, creio que Paulo trata de diminuir com muito tato o dom de línguas entre todos os dons que o Espírito concede. Ele o diminui mediante o uso de débil louvor.

Na próxima seção de 1 Coríntios 12 Paulo emprega sua ilustração da igreja como corpo de Cristo, no qual cada membro, com seu dom particular dado pelo Espírito, contribui para o bem-estar de todo o corpo. Sendo tratado geralmente fora de seu contexto, meramente como uma descrição dos membros da igreja que trabalham juntos em Cristo, esta passagem, quando utilizada em seu contexto, revela algo do problema que os coríntios experimentaram e, além do problema que se experimenta em congregações modernas ao entrar nelas o movimento das línguas. Sintetizando esta seção, Paulo diz que é propósito do olho ver, do ouvido ouvir, da língua falar, etc. Se todos os membros do corpo tivessem a mesma função, então o próprio corpo não poderia funcionar. Portanto, o olho não pode menosprezar o pé por este não poder ver, nem deve a língua gloriar-se sobre o nariz, por este não poder falar. Deus, declara Paulo, construiu o corpo sabiamente “. . . para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros” (12:25). Contudo, achamos no movimento de falar línguas uma tendência por parte do elemento pentecostal de menosprezar como cristãos incompletos os que não possuem o dom, se pensam serem superiores a todos os demais, e que o seu dom é o mais importante do corpo de Cristo. Essa atitude, talvez mais do que qualquer outra coisa no movimento de línguas, é responsável pela oposição emocional e rejeição do movimento por parte dos que não têm o dom. Paulo não tem essa elevada opinião do dom de línguas. Após enumerar pela segunda vez os dons do Espírito com o dom de línguas ao final da lista, conclui o capítulo dizendo: “Entretanto, procurai, com zelo, os melhores dons” (12:31).

Com isto Paulo embarca em seu maravilhoso capítulo sobre o amor—amor  tão aparentemente ausente na situação de Corinto—um dos três dons maiores de Deus (fé, esperança e amor), o maior dos três. Aqui devemos comentar que não podemos fazer outra coisa senão orar para que todos os cristãos possam inquietar-se com a condição espiritual e que procurem uma melhoria da mesma.  Não podemos omitir o comentário de que a cura do problema espiritual é conhecida e que não é o dom de línguas, mas o amor. Também não podemos evitar ter que dizer que não são os inquietos espirituais os que prescrevem obter de Deus o dom de línguas como remédio, mas que se deve buscar de Deus um aumento de amor para com Ele e com o semelhante mediante o poder interior do Espírito de Deus.

Edificando a Igreja

É em 1 Coríntios que Paulo faz sua declaração mais significativa a respeito do tema do dom de línguas: “Segui o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente que profetizeis” (verso 1),--não que tenhais o dom de línguas, mas que profetizeis—que tenhais a habilidade de ensinar, exortar, admoestar, consolar e edificar uns aos outros em vosso amor e fé cristãos. “Pois quem fala em outra língua, não fala a homens, senão a Deus, visto que ninguém o entende, e em espírito fala em mistérios. Mas o que profetiza, fala aos homens, edificando, exortando e consolando. O que fala em outra língua a si mesmo se edifica, mas o que profetiza edifica a igreja. Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que profetizásseis; pois quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas, salvo se as interpretar para que a igreja receba edificação”.  Os pentecostais encontram aqui uma motivação para falar em línguas, mas ignoram o fato de que Paulo considera superior o dom de profetizar. Encontro aqui o apóstolo Paulo falando sutilmente para diminuir uma prática da congregação coríntia que não é comum à igreja cristã, mas adotada em Corinto à partir das misteriosas religiões helenistas.

Em que contribui o dom de línguas para o reino de Cristo? Os que têm o dom lhes dirão quão maravilhosamente os faz sentir-se; como aumentou as dimensões de sua vida espiritual. Sim, lhes concede zelo evangelístico—para propagar sua forma pentecostal de religião. Conduze-os a esquadrinhar as Escrituras—para delas filtrar o que, segundo seus pressupostos, lhes apoia o seu interesse pelo dom de línguas. O zelo evangelístico e o amor pelo estudo  bíblico, de forma adequada e bem empregados, são coisas que deveríamos desejar ver mais e mais entre os cristãos. Então estariam menos propensos a se deixarem levar por todo erro passageiro e névoa religiosa, como se dá com o movimento de línguas.

Em que contribui o falar em línguas para a igreja? Paulo declara:

Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em outras línguas, em que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou de ciência, ou de profecia, ou de doutrina? É assim que instrumentos inanimados, como a flauta, ou a cítara, quando emitem sons, se não os derem bem distintos, como se reconhecerá que se toca na flauta, ou cítara? Pois também se a trombeta der som incerto, quem se preparará para a batalha? Assim vós, se, com a língua, não disserdes palavra compreensível, como se entenderá o que dizeis? Porque  estareis como se falásseis no ar. Há sem dúvida, muitos tipos de vozes no mundo, nenhum deles, contudo, sem sentido. Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro para mim. Assim também vós, visto que desejais dons espirituais, procurai progredir, para a edificação da igreja (versos 6-12).

Dificilmente se faz necessário comentar mais do que isto, exceto para assinalar que Paulo estabelece que nosso propósito em tudo o que façamos no corpo de Cristo, ou na igreja, deve ser para a sua edificação, a salvação daqueles que ainda não receberam o evangelho, a edificação da fé, do conhecimento,  do amor e das vidas dos que foram trazidos à comunhão da igreja mediante o poder do Espírito e a pregação do evangelho.

Crescei!

A próxima seção de 1 Coríntios 14 contém palavras citadas frequentemente pelos pentecostais. Paulo diz: “Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós”. Percebe-se que Paulo falava em línguas. Contudo, ele não diz que pronunciava alocuções extáticas, como se dá com os pentecostais. Como homem educado e grande viajante, não duvido que Paulo pudesse dizer isso literalmente referindo-se a línguas conhecidas do mundo nos quais estava versado. Mas concedamos que ele falava línguas no sentido pentecostal. Então atentemos às palavras do contexto:

Pelo que, o que fala em outra língua, ore para que a possa interpretar.  Porque se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei como espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente. E se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? Visto que não entende o que dizes; porque tu de fato dás bem as graças, mas o outro não é edificado. Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós. Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra língua (versos 13-19).

Os pentecostais pensam ter alcançado a maturidade espiritual ao adquirirem o dom de línguas. Isso os torna superiores às crianças espirituais que ainda não receberam o dom. Como avalia Paulo o dom com relação à maturidade espiritual? Ele prossegue dizendo: “Irmãos,  não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos” (v. 20). Isto é uma repreensão! Ele se dirige aos que falam em línguas de Corinto: Estão se comportando como crianças! Cresçam! E deixou a mesma coisa implícita em 1 Cor.13:11: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas de próprias de menino”.

Paulo prossegue explicando o propósito do dom de línguas na igreja cristã primitiva, assim como no primeiro Pentecoste cristão:

Na lei está escrito: Falarei a este povo por homens de outras línguas e por lábios de outros povos, e nem assim me ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas constituem um sinal, não para os crentes, mas  para os incrédulos; mas a profecia não é para os incrédulos, e, sim, para os que creem. Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem a falar em outras línguas, no caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão porventura, que estais loucos? Porém, se todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido, e por todos julgado; tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está de fato no meio de vós (versos 21-25).

Os defensores do falar em línguas empregam a profecia de Isaías 28:11 como uma antecipação da prática da glossolalia—o que, porém, não corresponde aos fatos. A ênfase nessa passagem recai sobre o pensamento de que todo o falar em língua ininteligível não converterá a ninguém: “. . . mas não quiseram ouvir”. Como foram escritas originalmente, as palavras não são outra coisa senão um pronunciamento de juízo sobre  Israel. O povo de Israel não dava ouvidos aos profetas enviados por Deus. E Deus trouxe invasões e opressores estrangeiros sobre a nação. Contudo, nem mesmo esses que falavam em línguas estranhas persuadiram Israel a que ouvisse os preceitos de Deus.

No primeiro Pentecoste cristão, os que falavam em línguas desconhecidas para eles próprios converteram 3.000 à fé no Senhor Jesus. Mas as línguas faladas eram conhecidas para os estrangeiros reunidos em Jerusalém. E o poder convertedor não residia no fato de que os discípulos falavam em línguas estranhas para eles próprios, mas no fato de que proclamavam a obra maravilhosa de  Deus mediante o Senhor Jesus Cristo para a redenção do mundo do pecado e da maldição eterna. Falar numa enunciação ininteligível só pode antagonizar o incrédulo e em nada contribui para o crescimento espiritual do crente. Os crentes se beneficiam, e os incrédulos se convertem, mediante o dom da profecia, que proclama o Senhor Jesus Cristo como a única esperança do mundo para a salvação.

Do modo como praticado em Corinto, o dom de línguas era uma prática  confusa e perturbadora, porque os que reivindicavam possuir o dom, aparentemente  competiam entre si mostrando o seu dom em público. Aqueles que reivindicavam  os dons “inferiores” também se encontravam aparentemente envolvidos nesta questão de demonstrá-los. É por isso que Paulo continua declarando:

Que fazer, pois, irmãos? Quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina, este traz revelação, aquele outro língua, e ainda outro interpretação. Seja tudo feito para edificação. No caso de alguém falar em outra língua, que não sejam mais do que dois ou quando muito três, e isto sucessivamente, e haja quem interprete. Mas, não havendo intérprete, fique calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus. Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem. Se, porém, vier revelação a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, um após outro, para todos aprenderem e serem consolados. Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; porque Deus  não é de confusão; e, sim, de paz (versos 26-33).

Notamos anteriormente que as mulheres haviam desempenhado um papel destacado no movimento de línguas; que elas deixam levar-se mais facilmente por suas emoções, sendo mais prontas a responder às técnicas dos que promovem o dom de línguas. Em todo caso que conheço pessoalmente, é a mulher que levou o esposo e/ou seu lar ao movimento de línguas, e ela tem sido a primeira em receber o dom. Também este era aparentemente o caso em Corinto. É no contexto da declaração da questão das línguas que Paulo fala as palavras que durante muito tempo têm sido usadas fora do contexto para opor-se ao direito da mulher desempenhar um ofício na igreja. Numa sociedade menos liberal que a nossa, quando as mulheres eram pouco mais do que bens e serviçais dos varões da espécie, as mulheres de Corinto aparentemente encontraram no dom de línguas  uma oportunidade para impor-se e mostrar que podiam sobrepujar os homens—pelo  menos em questões religiosas e espirituais. E Paulo diz nesse contexto: “Como em todas as igrejas dos santos, conservem-se as mulheres caladas nas igrejas” (versos 33, 34).

Observações Finais

 As observações finais do capítulo e da seção incluem estas palavras: “Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar, e não proibais o falar em outras línguas. Tudo, porém, seja feito com decência e ordem” (vs. 39, 40). Posso entender o conselho de Paulo na situação dos coríntios.  A objeção implacável e proibição de falar em línguas sob as circunstâncias de Corinto poderiam ter agravado a situação e endurecido a atitude dos que falavam em línguas.

Recordo-me daqueles dias antigos quando o sul dos Estados Unidos estava  repleto de pequenos grupos de “santidade”, conhecidos como os santos rodopiantes, os santos choradores, os santos risonhos e os santos aplaudidores. Qualquer coisa que o grupo particular considerasse como evidência do batismo do Espírito Santo ou de “obter maior religiosidade” era a manifestação que se via em seu reavivamento. Conseguir maior religiosidade ou receber o Espírito Santo fazia com que os santos rodopiantes girassem sobre o solo, que os santos choradores chorassem, que os santos risonhos rissem e que os santos aplaudidores aplaudissem. E onde quer que o falar em línguas fosse considerado uma manifestação  do Espírito Santo e evidência necessária de que uma pessoa é cristã integral, haverá quem fale em línguas.

Quisera que todos aprendêssemos com os que se desviaram pela tangente  nisso. Muitos começaram preocupando-se com sua apatia espiritual, indiferença e frieza—e esta é uma preocupação de que todos deveríamos compartilhar; porque certamente não estamos acesos no Espírito, nossas vidas não irradiam o amor,  o interesse e a dedicação a Deus e a nosso próximo no grau que deveriam. Os pentecostais buscam erroneamente a solução de seus problemas no dom de línguas. Oram pelo dom de línguas para sua segurança pessoal de salvação. Devíamos orar para que essa segurança de salvação—que possuímos só e exclusivamente pela fé que Deus nos concede no Senhor Jesus Cristo—nos possua de tal forma mediante o poder do Espírito, que produza em nós todos os maravilhosos frutos do Espírito: “Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade,  benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gál. 5:22, 23). O interesse deles é promover,  fazer proselitismo e infiltrar em todas as partes o seu erro pentecostal. Nosso interesse, porém, deve ser o de propagar, fazer proselitismo e infiltrar no mundo inteiro o precioso evangelho de salvação mediante o sangue expiatório de nosso Senhor. Amém.

[Transcrito de Pregonero de Justicia, Vol. 4, no. 5, pp. 4-23.]

Comentários adicionais:

Além da excelente análise contextual e dos aspectos exegéticos muito precisos abordados pelos autores acima, há outras considerações adicionais que podem enriquecer o exame da matéria.

Fica claro de uma leitura cuidadosa dos capítulos 12 a 14 de 1 Coríntios que o problema abordado por Paulo tinha que ver com comunicação eficaz. O uso de língua estranha, se não comunicasse devidamente, não seria de nenhum valor, como o apóstolo deixa claro, especialmente nos versos 6-11, 21-24.

Contudo, os pentecostais têm por base um texto, realmente fundamental  para o seu entendimento da prática de “falar em línguas”, o qual merece uma exegese mais profunda. É o velho problema do “texto fora do contexto que vira um pretexto”: 1 Cor. 14:2 –“Pois quem fala em outra língua não fala a homens, senão a Deus, visto que ninguém o entende, e em espírito fala mistérios”.

Inicialmente é bom esclarecer que a maioria dos pentecostais entende que a experiência dos apóstolos em Atos 2, quando falaram em línguas que foram entendidas pelas várias pessoas de diferentes etnias no dia de Pentecoste, foi algo único, inigualável, irrepetível, e que a experiência de “falar em línguas” que adotam é a de 1 Coríntios 14, especialmente o vs. 2, que se trataria de “língua dos anjos” (numa referência um tanto forçada de 1 Coríntios 13:1)—uma língua espiritual, misteriosa, manifesta como dom especial de Deus e prova de que o que a pronuncia foi “batizado no Espírito”. É mais provável  neste texto que ele indique que não a falaria (“ainda que eu fale. . .).

Como dissemos no artigo “Para Entender Justificação Pela Fé” (no. 42 de nosso “Catálogo” de temas):

O dom do Espírito é o selo, o juramento e a garantia de que fomos justificados  (Efé. 1:13, 14;   Rom. 8:14-16).  Isto contradiz  a  noção  de  que  o Espírito é concedido como uma “segunda bênção” posterior e superior à  justificação, que produz manifestações sobrenaturais como garantia de que o indivíduo não só confirma,  mas  aprimora  sua  aceitação diante de Deus. O evento glorioso da imputação da justiça, baseada na experiência de Cristo, jamais pode ser superado por quaisquer experiências que o homem desfrute, mesmo as de caráter religioso.

Estaria Paulo em 1 Cor. 14:2 falando de alguém que “em espírito fala em mistérios”, ou seja, fala numa língua incompreensível aos ouvidos humanos, mas essencialmente espiritual, elevada, que revela uma ligação especial e muito espiritual com Deus por parte de quem a emite? Noutras palavras, esta passagem é tida como por si só justificando toda a contradição evidente da prática pentecostal com as claras instruções no restante do capitulo de como NÃO se deve empregar o dom de falar em línguas estranhas no culto congregacional, como nos vs. 23-28.

Há várias posições a respeito deste texto de interpretação aparentemente difícil. Alguns entendem que Paulo está realmente dizendo que os que falam em línguas, sem que haja intérprete (fato comum no meio carismático), se edificam sozinhos pela simples dotação individual de um poder espiritual que o fenômeno de origem divina lhes propicia. Todavia, tudo indica que Paulo está falando em termos hipotéticos, sendo até irônico. Ele quer dizer que de nada valeria a pessoa falar numa língua misteriosa se não for entendida, pois estaria falando consigo mesma ou com Deus, por Ele entender certamente todos os idiomas do mundo (o que também significaria uma sugestão para essa pessoa ficar calada, orando e/ou meditando, cf. vs. 28).

Ou Paulo poderia estar recorrendo a fina ironia no vs. 2, como fez ao  tratar do problema dos judaizantes que requeriam a circuncisão de todos, chegando a dizer, segundo alguns especialistas em grego, que os que insistiam no rito da circuncisão para os conversos cristãos, fariam melhor se, em lugar de somente terem removida uma pequena parcela de tecido do órgão genital masculino (o prepúcio), cortassem tudo de uma vez (ver Gál. 5:12—“se mutilassem”, do grego ’apocópsontai,  palavra derivativa do verbo com o sentido de “emascular-se”, “castrar-se”). O apóstolo Paulo caracteriza-se às vezes como bastante irônico.

Por fim, se o fenômeno carismático moderno é manifestação do Espírito Santo, como ficam os textos de 1 Cor. 12:4, Efés. 4:4, 12, 13 que falam que o Espírito é concedido para união, fraternidade, edificação da igreja como um todo? Já se viu grupo mais desunido do que as várias corporações pentecostais protestantes, acrescida nestas últimas décadas do segmento católico para dividir ainda mais os vários grupos que reivindicam posse especial do Espírito de Deus? Disse Jesus: “Por seus frutos. . .”

E se tal fenômeno é evidência do derramamento da “chuva serôdia” (Atos 2:17ss), por que, após tantas décadas, ainda não se superou a “vergonha da tarefa inacabada”—a evangelização mundial prevista em Mat. 24:14 pelas várias corporações que teriam esse poder espiritual superior? Ademais, em Efésios 4 Paulo não estabelece como regra que as línguas deveriam ser dom único ou necessariamente atribuído a todos, pois os dons são vários, e variadamente concedidos: ver Efés. 4: 11, 1 Cor. 12:8-11. – Prof. Azenilto G. Brito.

FONTE: http://www.azenilto.com

 





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