PAULO
E A LEI
Samuel
Bacchiocchi*
A
ideia de que as declarações negativas de Paulo se referem à lei cerimonial, ao
passo que as afirmativas se referem à lei moral, não pode ser encontrada em
seus escritos.
No debate pertinente ao
sábado e o domingo, apelam para Paulo os defensores da ideia de que a lei do
Velho Testamento em geral e o sábado em particular foram anulados. Mas qual foi
a atitude do apóstolo para com a lei e o sábado?
Paulo usa o termo lei pelo menos 110 vezes em suas
epístolas, mas não de modo uniforme. Lei refere-se à lei mosaica (Gál. 4:21;
Rom. 7:22, 25; I Cor.9:9); todo o Velho Testamento (I Cor. 14:21; Rom. 3:19,
21); a vontade de Deus escrita no coração dos gentios (Rom. 2:14 e 15); o
princípio dirigente de conduta (obras ou fé — cap. 3:27); inclinações más (cap.
7:21); a direção do Espírito (cap. 8:2). Às vezes, o termo é empregado de
maneira pessoal, com o se fosse o próprio Deus: "Ora, sabemos que tudo o
que a lei [Deus] diz aos que vivem na lei o diz " (3:19). Neste verso a
palavra Deus pode ser substituída pela palavra lei (conforme cap. 4:15; I Cor.
9:8).
Ensinou Paulo que
Cristo aboliu a lei mosaica ou a lei do Velho Testamento (particularmente os
Dez Mandamentos) e que, portanto, os cristãos não estão obrigados a observá-la?
Este ponto de vista tem predominado através da história cristã e ainda é
defendido tenazmente por numerosas igrejas antinomistas.
Esta interpretação
tradicional tem sido desafiada por vários estudos recentes, os quais assinalam,
por exemplo, que Paulo tem um conceito duplo a respeito da lei, "às vezes
dizendo que ela é boa, tendo sido cumprida por Cristo, e às vezes dizendo que
ela é má, tendo sido abolida em Cristo". 1 Por exemplo, em
Efésios 2:15 Paulo fala da lei com o tendo sido "abolida"
por Cristo, enquanto em Romanos 3:31 ele explica que a justificação pela fé
em Jesus Cristo não anula a lei, mas a confirma. Em Romano s
7:6 Paul o diz: "Agora, porém, libertados da lei", ao passo que,
alguns versos adiante, ele escreve que "a lei é santa; e o
mandamento, santo e justo e bom" (verso 12).
Em Romanos 10:4 Paulo
escreve que "o fim da lei é Cristo", enquanto no cap. 8:3 e 4 explica
que Cristo veio "em semelhança de carne pecaminosa ... a fim de que o
preceito da lei se cumprisse em nós". No cap. 3:28 ele afirma que "o
homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei, ao passo que
em I Cor. 7:19 ele diz que "a circuncisão em si não é nada; a
incircuncisão também nada é, mas o que vale é guardar as ordenanças de
Deus".
Em II Cor. 3:7 Paul o
designa a lei com o "o ministério da morte", enquanto em Romanos 3:2
ele a vê como parte dos "oráculos de Deus "confiados aos judeus.
Resolvendo
o Problema
Seria possível
reconciliar estes conceitos aparentemente contraditórios? Com o pode Paulo ver
a lei "abolida " (Efés. 2:15), por um lado, e confirmada (Rom .
3:21), desnecessária (ver verso 28) e necessária (ver I Cor. 7:19; Efés. 6:2 e
3; I Tim. 1:8-10)? Um a explicação popular admite que as declarações negativas
de Paulo se referem à lei cerimonial mosaica, ao passo que as afirmativas se
referem à lei moral dos Dez Mandamentos. Tal explicação, porém, baseia-se num a
distinção arbitrária entre leis morais e cerimoniais, um a distinção que não se
acha nos escritos paulinos.
Segundo entendo, a
explicação correta decorre dos diversos contextos nos quais Paulo fala sobre a
lei. Quando se refere à lei no contexto de salvação (justificação — justo
perante Deus), ele afirma claramente que a observância da lei não tem nenhum
valor (Rom. 3:20). Por outro lado, quando Paulo menciona a lei no contexto de
conduta cristã (santificação — vida justa perante Deus), então ele defende a
validade da lei de Deu s (caps. 7:7-12; 13:8-10; I Cor. 7:19). Por exemplo,
quando Paulo fala em I Timóteo 1:8-10 sobre as diversas formas de impiedade
humana, ele afirma explicitamente: "Sabemos, porém, que a lei é boa"
(verso 8).
A cruz de Cristo é a chave
para a compreensão da lei, nos escritos paulinos. Dentro desta perspectiva, ele
ora nega a lei ora a defende. Negativamente, o apóstolo rejeita a lei com o
base da justificação: "Pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que
morreu Cristo em vão" (Gál. 2:21). Em sentido positivo, Paulo ensina que a
lei é "santa", "justa", "boa" e "espiritual
" (Rom. 7:12, 14, 16; I Tim . 1:8) porque ela expõe o pecado e revela as
normas éticas de Deus. Assim, ele afirma que Cristo veio "par a que a
justiça da lei se cumprisse em nós" por meio do poder dinâmico de Seu
Espírito (Rom. 8:4).
Três vezes diz Paulo:
"A circuncisão é nada e a incircuncisão nada é", e cada vez conclui
esta afirmação com uma frase diferente: "mas sim a observância dos
mandamentos de Deus"; "mas sim a fé que opera por amor";
"mas sim o ser uma nova criatura " (I Cor. 7:19; Gál. 5:6; 6:15). O
paralelismo sugere que Paul o equipara a observância dos mandamentos de Deus
com um a fé que opera e com uma nova vida em Cristo. O cristão, deste modo, não
está sob a lei como um meio de aceitação da parte de Deus, mas sob a lei como
uma revelação das normas éticas de Deus par a sua vida. Paulo rejeita a lei com
o um método de salvação mas a exalta com o uma norma de conduta cristã.
A
Lei e os Gentios
A fim de podermos ver a
análise paulina da lei, devemos compreender que ele escreveu suas epístolas a
congregações compostas predominantemente por conversos gentios, a maioria dos
quais eram "tementes a Deus" (ver I Tess. 1:9; I Cor. 12:2; Gál. 4:8;
Rom. 11:13; 1:13; Col . 1:21; Efés. 2:11). Os cristãos gentios enfrentaram o
problema quanto a se podiam unir-se ao povo de Deus sem primeiro tornar-se
"judeus" por meio da circuncisão.
Um problema judaico. Alguns judeus
sustentavam que os gentios tinham que observar apenas um número limitado de
mandamentos. Outros insistiam que os gentios deviam observar toda a lei,
incluindo a circuncisão.
Lloyd Gaston observa
que "foi por causa desta falta de clareza — o fazer certas obras para
obter o favor de Deus e ser considerado justo — que surgiu um problema
gentílico, e não judaico". 2 A salvação era para os
membros da comunidade do concerto; mas, desde que os tementes a Deus
não estavam sob o concerto, tinham de estabelecer sua própria
justiça para obter a salvação. M. Barth mostra que a
frase "obras da lei" não aparece nos textos judaicos; ele
designa a adoção de práticas judaicas escolhidas pelos gentios par a
assegurar seu lugar entre o povo do concerto, que pertence
a Deus. 3 O reconhecimento desta atitude legalista da parte dos
gentios, provê uma base para as observações paulinas com
relação à lei.
Um problema cristão.
A questão judaica quanto a se os gentios foram salvos dentro ou fora do
concerto, tornou-se logo um problema cristão. Após sua conversão e a comissão
divina para pregar o evangelho aos gentios, Paulo entendeu que os gentios
partilhavam a salvação sem terem se tornado parte da comunidade do concerto por
meio da circuncisão. Par a defender esta convicção, Paulo apela em Romanos 4 e
Gálatas 3 para o exemplo de Abraão, que, antes de ser circuncidado, se tornou o
pai de todos os que creem pela fé.
Ao proclamar o
evangelho da não circuncisão, Paulo enfrentou um desafio duplo. Por um lado,
ele encontrou oposição da parte dos judeus e cristãos judeus que não entenderam
que, através de Cristo, Deus tinha cumprido Suas promessas a Abraão com relação
aos gentios. Por outro lado, Paulo tinha que tratar com gentios que foram
tentados a adotar a circuncisão e outras práticas para assegurar a salvação
(Gál. 5:2-4).
Análise
Paulina da Lei
Para reagir contra
essas tendências, Paulo tinha que falar da lei como um documento de eleição. O
conceito do concerto — tão central no Velho Testamento — passou a ser
gradativamente expresso pelo termo lei (tôrah, nomos).* O status de alguém perante Deus passou a ser determinado por sua
atitude para com a lei como um documento de eleição e não pela obediência a
mandamentos específicos. Em outras palavras, tôrah-lei veio a significar uma
revelação do poder de escolha de Deus manifestado em Seu concerto com Israel.
Obviamente, esta ideia criou um problema para os gentios não circuncidados,
porque eles se sentiam excluídos da certeza da salvação provida pelo concerto.
Tal insegurança
naturalmente levou os gentios a desejarem "estar sob a lei" (Gál.
4:21), isto é, tornar-se membros do concerto mediante a circuncisão (ver cap.
5:2). Paulo sentiu-se impelido a reagir vigorosamente contra tal tendência
porque ela minava a universalidade do evangelho. A fim de pôr de lado a vontade
dos gentios de desejarem "estar sob a lei", Paulo apela à lei
(Pentateuco), especificamente a Abraão, argumentando que seus dois filhos,
Ismael e Isaque, representavam dois concertos, o primeiro baseado em obras e o
segundo, na fé (ver cap. 4:22-31); o primeiro oferecendo escravidão e o
segundo, liberdade. O primeiro, que produz "filhos para a servidão",
é identificado com o concerto do Monte Sinai (verso 24).
Por que Paulo ataca o
concerto do Sinai que, de fato, fora estabelecido pelo mesmo Deus que fez um
concerto com Abraão? Não tinha o concerto do Sinai provisões de graça e perdão
(através do tabernáculo — Êxodo 25-30) além de princípios de conduta (capítulos
20-23)? A resposta pode ser encontrada na preocupação de Paulo em estabelecer a
legitimidade da salvação dos gentios como gentios.
Dois evangelhos. Para
levar isto a cabo, Paulo ataca a compreensão da lei (concerto) como um documento
exclusivo de eleição. Ele não nega a salvação aos judeus que aceitaram a Cristo
como cumprimento do concerto do Sinai. Ao contrário, ele reconhece que assim
como a ele fora confiado" o evangelho da incircuncisão", assim
"a Pedro o da circuncisão" (Gál. 2:7).
Paulo não explica a
diferença entre os dois evangelhos. Podemos presumir que, desde que a
circuncisão tinha sido equiparada ao concerto, "o evangelho da circuncisão"
(tradução literal) salientava que Cristo era o cumprimento do concerto do
Sinai. Isto tornaria possível aos judeus serem salvos como judeus, isto é,
enquanto mantivessem sua identidade como povo do concerto. Paulo não nega o
valor da circuncisão para os judeus. Pelo contrário, afirma: "Porque a
circuncisão tem valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a
tua circuncisão já se tornou incircuncisão" (Rom. 2:25). Outra vez em
Romanos 9 a 11, Paulo não repreende os judeus por serem "judeus" em
seu estilo de vida (ver cap. 11:1), mas por não entenderem que os gentios em
Cristo têm igual acesso ao reino (ver cap. 10:19).
Ausência do termo
"perdão". Para defender o evangelho para os
incircuncisos, Paulo salienta que a justificação vem "pela fé
independentemente das obras da lei" (cap. 3:28; ver também Gál. 3:8).
Enquanto justificação e palavras correlatas ocorrem nos escritos
paulinos mais de 80 vezes, perdão e arrependimento estão sensivelmente
ausentes. Em primeiro lugar, talvez, porque
arrependimento implica em dar as costas ao Deus do concerto, e Paulo estava
apelando aos gentios para se dedicarem a Ele pela primeira vez.
Em segundo lugar, porque
perdão — um conceito predominante na maior parte das Escrituras — tem que ver
com a dimensão pessoal da salvação. A preocupação de Paulo, entretanto, não foi
sua dimensão pessoal mas universal. Ele dá ênfase a isto ao ensinar a justificação
"pela fé independentemente das obras da lei" (Rom. 3:28), a qual o
habilita a defender a salvação tanto para os judeus como para os gentios, como
o verso seguinte indica: "É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é
também dos gentios? Sim, também dos gentios." (Ver também cap. 1:16 e 17).
Conclusão
Este quadro nos ajuda a
entender que o que Paulo ataca não é o valor da lei como um guia para a conduta
cristã. Pelo contrário, ele afirma enfaticamente que Cristo veio "a fim de
que o preceito da lei se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne, mas
segundo o Espírito" (Rom. 8:4). Paulo critica, não a moral mas a
compreensão soteriológica da lei, isto é, a lei vista com o um documento de
eleição que inclui os judeus e exclui os gentios.
A crescente pressão dos
judaizantes, que exigiam a circuncisão para os gentios, levou Paulo a sentir a
necessidade de atacar o conceito de concerto exclusivo da lei. A incapacidade
de discernir nos escritos de Paulo entre seu uso moral e o uso soteriológico da
lei, e a incapacidade de reconhecer que sua crítica da lei é dirigida não aos
cristãos judeus mas aos judaizantes gentios, tem levado muitos a concluir erroneamente
que Paulo era um antinomista que rejeitava a validade da lei como um todo. Tal
visão é inteiramente injustificada, porque, como já mostramos, Paulo rejeita a
lei como um método de salvação mas a exalta como norma moral de conduta cristã.
*Samuel
Bacchiocchi – Foi Professor de Religião e História
da Igreja na Andrews University, Berrien Springs, Michigan, EUA.
Referências
1. Lloyd Gaston, "Paul and the Torah". em
Alan T. Davis, ed., Anti-Semitism and lhe Foundations of Christianity (1979),
pág., 62.
2. Idem, pág. 58.
3. Ver Marcus Barth, The Anchor Bible: Ephesiuns
(1974), págs. 244-248.
4. Ver D. Rossler,
Geselz und Geschichle (1960): E. P. Saunders, pág. 41, conclui: "A salvação
resulta do fato de se pertencer ao concerto, enquanto a obediência aos
mandamentos assegura o lugar no concerto."
FONTE: Revista
Adventista, Julho de 1985, p. 9-11.
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