Greg
A. King
Tanto o Antigo quanto o
Novo Testamento revelam que Deus é amor.
“Deus é amor”, declara
o apóstolo (1 João 4:8). Por muitos séculos, os cristãos têm atribuído grande
importância a essa breve declaração, entendendo ser essa a principal
característica definidora de Deus. Eles tomaram essa pequena frase para
destacar quem é Deus no âmago de Seu ser e definir sua principal qualidade. Já
que a Bíblia afirma a natureza imutável de Deus (Malaquias 3:6), os cristãos em
geral proclamam que o amor de Deus está exposto em toda a Escritura: no Antigo
bem como no Novo Testamento.
O
problema
No entanto, nem todas
as pessoas concordam que a Bíblia inteira retrata um Deus amoroso. Em seu
recente best-seller, o ateu militante Richard Dawkins não faz rodeios quando
afirma: “O Deus do Antigo Testamento é talvez o personagem mais desagradável da
ficção: ciumento, e com orgulho; controlador mesquinho, injusto e
intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor
misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento,
megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo.”1 Para dizer o mínimo (e muito mais
poderia ser dito sobre Dawkins e seu livro), ele não vê o Antigo Testamento
como a descrição de um Deus de amor.
Não apenas os ateus são
desafiados pela descrição de Deus no Antigo Testamento. Muitos leitores casuais
da Bíblia, e até mesmo um número considerável de cristãos, lutam com o Deus do
Antigo Testamento. Para eles parece, pelo menos superficialmente, que a
descrição de Deus no Antigo Testamento apresenta um contraste marcante e
dramático com a que é encontrada no Novo. A impressão é que o Deus do Antigo
Testamento é duro, vingativo e punitivo, enquanto que o Deus do Novo Testamento
– como mostrado em Jesus Cristo – Se revela amoroso, compassivo e
misericordioso.
Como essa questão deve
ser considerada? Há algumas respostas que apoiam a posição cristã ortodoxa de
que a descrição bíblica de Deus é unificada e consistente, que Deus é um Deus
de amor, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento? Ou é o abismo entre as
descrições de Deus no Antigo e no Novo Testamento tão grande e profundo que não
pode ser transposto?
Vamos discutir, em uma
perspectiva positiva, alguns pontos dessa questão desafiadora, de modo a
fornecer alguma ajuda para compreendê-la. No entanto, primeiramente é
necessário rever várias soluções que têm sido defendidas e popularmente
apoiadas, mas são insuficientes ou errôneas, tendo em vista as Escrituras,
mesmo que elas tenham tido ampla aceitação.
Soluções
inaceitáveis
Uma solução, defendida
por Marcião no segundo século d.C., é simplesmente afirmar que o Deus do Antigo
Testamento é diferente do Deus do Novo Testamento. De acordo com Marcião, o
Deus do Novo Testamento, o Pai celeste que enviou Jesus e sobre o qual Jesus
pregou, é bondoso, misericordioso e clemente. Em contraste, o Deus do Antigo
Testamento, o Criador do Universo material, é uma ciumenta divindade tribal,
cuja lei exige justiça. Um Deus que pune as pessoas por seus pecados. À luz
dessa visão, não é de estranhar que Marcião rejeitou todo o Antigo Testamento e
aceitou alguns livros do Novo Testamento, os quais ele editou, de modo a
favorecer sua perspectiva.
No entanto, Marcião foi
corretamente considerado um herege e excluído pela igreja primitiva. Há razões
convincentes para que sua perspectiva seja rejeitada. Primeiramente, todo o
Novo Testamento presume que o Deus que “tanto amou o mundo” (João 3:16 NVI), o
qual deu Seu Filho para morrer, é o mesmo Deus do Antigo Testamento. Além
disso, o próprio Jesus é identificado como o agente ativo na criação, Aquele
que trouxe todas as coisas à existência (João 1:3,14), e não uma divindade má
como sustentou Marcião. É notável que Jesus nunca se distancia do Deus do
Antigo Testamento, ou das Escrituras do Antigo Testamento. Ao contrário, Ele
viu a Sua vida em continuidade com o Antigo Testamento e relacionada com seu
cumprimento (Lucas 24:27, 44).
Outra sugestão que não
vai tão longe como a heresia de Marcião é a afirmação de que o Deus do Antigo e
do Novo Testamento é o mesmo, mas que tem uma personalidade dividida. Assim,
Deus teria lidado com as pessoas de forma diferente no Antigo e no Novo
Testamento. Os defensores dessa posição afirmam que Deus, por algum motivo,
escolheu agir de forma dura e punitiva com os israelitas e outras nações no
período retratado no Antigo Testamento, mas com bondade e doçura, no período do
Novo Testamento.
Essa posição de Marcião
foi desenvolvida de forma bastante elaborada e recebeu um verniz de
sofisticação no sistema teológico conhecido como dispensacionalismo. Enraizado
nos escritos de John Darby, no século XIX, e popularizado nas notas de rodapé
da Bíblia de Referência Scofield, o dispensacionalismo continua a ser uma visão
muito generalizada entre muitos cristãos. Ele sustenta que Deus tem Se
relacionado com as pessoas, de diferentes maneiras, por meio de uma série de
diferentes dispensações ou períodos de tempo ao longo da história. Por exemplo,
o tempo de Adão e Eva no Éden foi a dispensação da inocência, o mundo
pré-diluviano foi a dispensação da consciência, e a maior parte da época do
Antigo Testamento foi a dispensação da lei. Os dispensacionalistas sustentam
ainda que essas dispensações são baseadas em diferentes alianças bíblicas.
No entanto, o
dispensacionalismo, como a visão de Marcião, fica enfraquecido em razão da
continuidade óbvia que é vista entre Deus e Seu trato em ambos os Testamentos.
De fato, Deus declara a respeito de Si mesmo: “Eu, o Senhor, não mudo”
(Malaquias 3:6, NVI).
Soluções
úteis
Quais são alguns pontos
que podem nos ajudar a compreender a descrição de Deus no Antigo Testamento e
vencer as diferenças que, às vezes, pensamos existir entre a imagem divina no
Antigo Testamento e no Novo Testamento, como revelado por Jesus?
Em primeiro lugar,
Jesus nunca se distanciou do Deus do Antigo Testamento. Ele nunca afirma ou
insinua que o Seu caráter ou ensinamentos sejam distintos e separados da
revelação do Deus do Antigo Testamento. Ele certamente distinguiu o Seu ponto
de vista e ensinamentos dos tradicionais entendimentos judeus em uma variedade
de tópicos (Mateus 5:21, 22, 27, 28, 31, 32, 15:1-11), mas Ele nunca Se afastou
do que o Antigo Testamento revela sobre Deus. Ao contrário, foi o Deus do
Antigo Testamento que O deu ao mundo por amor (João 3:16), e Ele veio como
Emanuel, “Deus conosco” (Mateus 1:23, NVI; citando Isaías 7:14), como a encarnação
viva do Deus do Antigo Testamento. Uma vez que, para os Seus seguidores, Jesus
apresenta a revelação divina em Sua vida em conexão com o Deus do Antigo
Testamento, também devemos fazê-lo.
Em segundo lugar, se
levamos a sério as Escrituras, notamos que Deus não é uma divindade
unidimensional, sendo o amor o Seu único atributo. Em vez disso, uma série de
características são atribuídas à pessoa divina. Ele é santo, íntegro, justo,
fiel, ciumento, misericordioso, compassivo, e assim por diante. Uma lista
bastante longa de atributos bíblicos divinos poderia ser fornecida. Mas para
eliminarmos descrições bíblicas divinas que não se encaixam com o nosso
conceito de um Deus de amor, praticamos o reducionismo. Tal exercício nos deixa
com uma imagem diminuída de Deus, um retrato infiel à Escritura. Devemos deixar
a Bíblia definir o caráter e as formas de Deus, em vez de decidir o que Deus
deve ser, e então impor nosso ponto de vista às Escrituras.
Em terceiro lugar, o
Novo Testamento, como o Antigo, contém algumas passagens difíceis quando se
trata de compreender o caráter de Deus. Em outras palavras, o Deus do Novo
Testamento, como visto em Jesus Cristo, não é sempre um Deus aconchegante,
suave, que é gentil em todas as circunstâncias. Várias passagens bíblicas
servem para ilustrar esse ponto. O julgamento divino que tirou a vida de
Ananias e Safira por mentir para o Espírito Santo é, certamente, uma punição
grave (Atos 5:1-11). Alguns podem até ver isso como um vestígio da crueldade do
Deus do Antigo Testamento apesar do ocorrido ser encontrado no Novo Testamento.
O último livro do Novo Testamento fala de um julgamento de Deus que contém ira
concentrada, uma ira divina que não é misturada com misericórdia (Apocalipse
14:9-11). Além disso, com um chicote de cordas (João 2:13-17), o próprio Jesus
expulsou os mercadores do templo. Inicialmente, rejeitou o apelo de uma mulher
cananeia para a cura de sua filha, o que alguns consideram ser um comentário pejorativo
(Mateus 15 :21-28). Tudo isso não é para negar que o Deus do Novo Testamento é
infinitamente bondoso e amoroso. Simplesmente precisamos notar que tanto o
Antigo quanto o Novo Testamento, por vezes, apresentam desafios à medida que
buscamos compreender as formas do amor de Deus.
Em quarto lugar, está o
conceito ao qual os cristãos, às vezes, se referem como revelação progressiva.
A revelação progressiva diz respeito ao gradual desenrolar da verdade. Ao fato
de que, à medida que avançamos nas Escrituras, Deus Se revela e revela o Seu
caráter cada vez mais claramente até chegar ao ápice de Sua autorrevelação na
pessoa de Seu Filho, Jesus Cristo. Isso não quer dizer que a revelação de Deus
encontrada no Antigo Testamento seja errônea e equivocada. Essa afirmação se
aplica a Davi, Isaías, Daniel e outros escritores do Antigo Testamento que
receberam conhecimentos sobre Deus e os comunicaram nas páginas das Escrituras.
No entanto, é uma revelação incompleta.
Como a Bíblia indica, a
mais completa revelação de Deus é encontrada na vida de Seu Filho, Jesus
Cristo. Nenhum profeta do Antigo Testamento jamais poderia dizer, como fez
Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” (João 14:9, NVI).
Jesus é O único de quem
se pode dizer: “Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da
divindade” (Colossenses 2:9, NVI). Por essa razão, devemos nos lembrar de que,
enquanto estamos nesta Terra, mesmo com a revelação maravilhosa de Deus feita
por Jesus, nós ainda, para usar as palavras de Paulo, “vemos apenas um reflexo
obscuro” (1 Coríntios 13:12, NVI). Somente na eternidade teremos condições de
compreender o significado de certas passagens das Escrituras sobre o caráter de
Deus.
O último aspecto a ser
considerado é que nossas inquietações e dúvidas sobre o retrato de Deus no
Antigo Testamento podem nos dizer mais sobre o mundo em que vivemos e sobre nós
do que sobre Deus. Talvez a nossa geração prefira uma divindade indulgente e
permissiva em vez de um Deus cujo amor seja santo e zeloso (Êxodo 20:5; 34:14).
Talvez desejemos um Senhor afetuoso e acolhedor em vez de um “fogo consumidor”,
como descrito no Novo Testamento (Hebreus 12:29, NVI).
Esta declaração de CS
Lewis é uma acusação marcante dirigida à atual geração: “O que realmente nos
satisfaria seria um Deus que dissesse a respeito de qualquer coisa que
gostássemos de fazer: ‘Se isso os deixa contentes, pouco importa.’ Queremos, na
verdade, não tanto um Pai Celestial, mas um avô celestial – uma benevolência
senil que, como dizem, ‘gostasse de ver os jovens se divertindo’ e cujo plano
para o Universo fosse simplesmente que se pudesse afirmar no fim de cada dia:
‘todos aproveitaram muito.’”2
Em vez de nos
limitarmos a algumas passagens bíblicas para alcançar a revelação de Deus nas
Escrituras, vamos seguir o exemplo de muitos fiéis cristãos, dos apóstolos do
Novo Testamento e do próprio Jesus. Ao considerar a Palavra de Deus em sua
integridade e buscar uma compreensão profunda da Bíblia como um todo, poderemos
entender tão completa e amplamente quanto possível Aquele que conhece a vida
eterna (João 17:3).
Greg
A. King (Ph.D., Union Theological Seminary) é diretor da
Faculdade de Teologia e professor de estudos bíblicos da Universidade
Adventista Southern, Collegedale, Tennessee, EUA.
REFERÊNCIAS
1.
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 43.
2.
LEWIS, C.S. O problema do sofrimento. 2ª
ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1996. p. 27.
FONTE: Diálogo Universitário
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