Dr.
José Carlos Ramos
Jesus aceitou a
humanidade quando a raça havia sido enfraquecida por quatro mil anos de pecado.
Que tipo de natureza
humana foi assumida por Deus o Filho ao encarnar e viver entre nós?
Pré-lapsariana, isto é, idêntica à de Adão antes da queda, ou pós-lapsariana,
isto é, idêntica à nossa? Ambas as hipóteses parecem contar com o apoio das
Escrituras. Hebreus 7:26, por exemplo, refere-se a Cristo como "santo,
inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, e feito mais alto do que os
Céus". Estas palavras descrevem adequadamente uma condição pré-lapsariana
de humanidade. Por outro lado, esta mesma epístola, no capítulo 2:14 e 17,
afirma que Ele Se tornou semelhante aos demais homens na "participação
comum da carne e sangue", o que sugere uma condição pós-lapsariana (ver também
Rom. 8:3).
Igualmente o Espírito
de Profecia parece favorecer uma e outra hipótese. Eis algumas citações com
sabor pré-lapsariano (grifos nossos):
"Cristo veio à
Terra assumindo a humanidade e colocando-Se como representante do homem para
mostrar na controvérsia com Satanás que o homem, como Deus o criou em comunhão
com o Pai e o Filho, poderia obedecer a cada requerimento divino." — Signs
of the Times, 9 de junho, 1898.
"Cristo é chamado
o segundo Adão. Em pureza e santidade, unido com Deus e amado por Deus, Ele
começou onde o primeiro Adão começou. Ele cruzou o chão onde Adão caiu, e
redimiu o fracasso de Adão." — Youth's Instructor, 2 de junho, 1898.
"Ele venceu a
Satanás na mesma natureza sobre a qual no Éden Satanás obteve a vitória."
— Idem, 25 de abril, 1901.
"Ele devia tomar
Sua posição como cabeça da humanidade ao tomar a natureza mas não a pecaminosidade
do homem." — Signs of the Times, 29 de maio, 1901.
"Sede cuidadosos,
extremamente cuidadosos quanto a como vos ocupais com a natureza humana de
Cristo. Não O coloqueis diante do povo como um homem com as propensões do pecado. Ele é o segundo
Adão. O primeiro Adão foi criado puro, impecável, sem uma mancha de pecado
sobre si; ele era a imagem de Deus. ... Jesus Cristo... poderia ter caído, mas nem por um momento existiu nEle uma
propensão má... Nunca, de forma alguma, deixe a mais leve impressão sobre as
mentes humanas que uma mancha de corrupção, ou inclinação para corrupção
apegou-se a Cristo, ou que Ele de alguma forma cedeu à corrupção. ... Que
cada ser humano seja advertido contra a ideia de tornar Cristo totalmente humano tal como um de nós; isto
não pode ser." — Comentário Adventista (inglês), vol. 5, págs. 1128 e
1129.
Destas citações podemos
inferir que Cristo é o segundo Adão e como tal era diferente de nós no sentido
de não possuir a mácula do pecado, que possuímos desde o momento em que somos
gerados (ver Sal. 51:5). Ele era isento das tendências carnais e pecaminosas
que marcam a nossa vida. Para Eilen White, expressões como "pecaminosidade
do homem", "propensão para corrupção", "mancha de
corrupção", "propensão má" e "propensões do pecado", são,
neste contexto, mais ou menos equivalentes. Nenhuma destas coisas se fez
presente em Jesus.
Outro grupo de citações
parece implicar um sentido pós-lapsariano. Damos alguns exemplos novamente
grifando expressões por motivo de ênfase:
"A natureza de
Deus, cuja lei tinha sido transgredida, e a natureza de Adão, o transgressor,
se reuniram em Jesus — o Filho de Deus e o Filho do homem." — Idem, vol.
7, pág. 926.
"Cristo, que não
conhecia o mínimo vestígio de pecado ou contaminação, tomou nossa natureza em
seu estado deteriorado." — Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 253.
"Ele tomou sobre
Sua natureza impecável, nossa natureza pecaminosa." — Medicai Ministry,
pág. 181. "Estava no plano de Deus que Cristo tomasse sobre Si a forma e
natureza do homem caído." — Spirit of Prophecy, vol. 2, pág. 39.
Estas citações deixam
claro que Cristo assumiu uma natureza humana desfigurada pelo pecado; portanto,
idêntica à nossa. Como harmonizar os dois grupos de citações?
Bem, Cristo não pode
ter tido duas naturezas humanas, uma imaculada e outra maculada pelo pecado. Se
é isto o que E. G. White está afirmando, então ela se contradiz. Mas
seguramente não é este o caso. A questão é se entendemos corretamente o que está
sendo declarado. Na verdade os conceitos pré e pós-lapsarianos, no contexto da
Bíblia e do Espírito de Profecia, não se contradizem, não se excluem, mas se
complementam. Caso contrário, não possuiriam ambos o aval da inspiração.
Tomemos como exemplo a
declaração acima, extraída de Medicai Ministry, pág. 181. Eilen White não pode
estar afirmando que Jesus tomou nossa natureza pecaminosa sobre Sua natureza
impecável, no sentido de que Ele passou a possuir duas naturezas humanas, uma
que já era Sua e outra que tomou de nós. Aliás, o sentido do verbo inglês to
take (tomar) seguido da preposição upon (sobre), como aparece no original, é, segundo o Webster Dictionary, "aceitar
a responsabilidade por, aceitar como uma responsabilidade ou dever". A
ideia é que Cristo submeteu-Se à situação do homem no pecado, para conhecer por
experiência as lutas do pecador, e, por esse meio, gabaritarSe a prestar-lhe
uma ajuda autêntica, eficaz. A citação, em seu contexto, favorece esse
pensamento. "Ele tomou sobre Sua natureza impecável, nossa natureza pecaminosa,
para que pudesse saber como socorrer aqueles que são tentados." O mesmo se
verifica em relação à citação seguinte, extraída de Spirit of Prophecy, vol. 2,
pág. 39: "Ao tomar a natureza humana Cristo habilitou-Se a entender a
natureza das provações humanas, e todas as tentações que assediam o homem. Os
anjos, que não estavam familiarizados com o pecado, não poderiam simpatizar com
o homem em suas provações peculiares Estava no plano de Deus que Cristo tomasse
sobre Si a forma e natureza do homem caído, para que pudesse Se aperfeiçoar
através do sofrimento [o que não poderia ocorrer com Adão antes da queda], e
Ele mesmo suportasse a força das ardentes tentações de Satanás, a fim de que
pudesse entender como socorrer aqueles que seriam tentados." Cristo assim
participou das conseqüências do pecado, às quais todos estamos sujeitos, mas
não do próprio pecado. (Ver Heb. 2:18; 4:15.)
Outro ponto a ser
considerado tem a ver com a terminologia usada na exposição do assunto. É
sabido que há ocasiões em que faltam a um escritor termos que denotem com mais
precisão o significado daquilo que deve ser exposto. Recursos literários se
mostram inexpressivos, às vezes, na abordagem de temas transcendentais.
Certamente escritores bíblicos depararam esse problema, e com E. G. White não
foi diferente. Este simples fato deve nos alertar quanto à necessidade de cuidado
ao nos propormos à difícil tarefa da interpretação. Quando, por exemplo, a
Bíblia diz que Deus "Se arrependeu", cumpre-nos procurar saber o que
realmente está sendo aí enunciado. Seja o que for, não poderá contrariar o
significado de outras informações que a mesma Bíblia presta sobre Deus, como
por exemplo o atributo da imutabilidade. Neste caso, temos de convir que o que Deus
é dará o significado dos termos usados em referência a Ele, e não vice-versa.
No caso da natureza
humana de Jesus, a exemplo de qualquer outro tema, cumpre-nos procurar saber
por que E. G. White fez tais e tais declarações, por que utilizou determinada
terminologia, e o que realmente estava querendo comunicar. Uma forma através da
qual é possível descobrir o que um escritor está querendo dizer quando emprega
determinados termos, é observar o sentido que ele mesmo deu àqueles termos em
outras ocasiões em que assuntos mais óbvios foram abordados. Isto, todavia, nem
sempre funciona, porque podem estar os referidos termos sendo agora empregados
em declarações não plenamente elaboradas. Exemplos disso ocorrem em declarações
do Espírito de Profecia, as quais devem ser consideradas como citações livres
que E. G. White faz de suas fontes de pesquisa.
A propósito, a revista
The Ministry publicou há algum tempo um curto mas excelente artigo da autoria
de Tim Poirier, secretário assistente do White Estate, que toca exatamente este
ponto. Devemos compreender que a Sra. White não se acomodou com as visões que
Deus lhe deu. Ela foi uma incansável pesquisadora, examinando autores cujos
escritos poderiam não somente ajudá-la a entender certos assuntos, mas igualmente
suprir-lhe certas expressões através das quais poderia melhor comunicar a
revelação divina.
Segundo o articulista,
um número de afirmações de E. G. White sobre a natureza humana de Jesus parece
refletir o pensamento do pregador anglicano Henry Melvill (1798-1891), cujos
sermões foram publicados em vários volumes. Para esse autor, a queda do homem acarretou
duas consequências primárias: (1) debilidades inocentes, coisas como fome, dor,
fraqueza, sofrimento e morte; e (2) propensões pecaminosas, isto é, inclinações
ou tendências para o pecado. Cristo assumiu as primeiras sem assumir as
segundas. Ainda de acordo com o articulista, termos como propensão, tendência,
predisposição, foram entendidos e empregados por E. G. White numa perspectiva
idêntica à de um outro autor, Octavius Winslow, o qual seguiu a mesma linha de
argumentação de Melvill. Recomendamos a leitura de todo o artigo, publicado em
The Ministry, dezembro de 1989, págs. 7-9.
Este fato confirma o
que concluímos anteriormente. Que para a serva do Senhor a imaculabilidade e
impecabilidade de Cristo não significam incolumidade às consequências do
pecado. Portanto, dois importantes aspectos da natureza humana de Jesus são abordados
pelo Espírito de Profecia, ambos imprescindíveis à nossa salvação. Por um lado
Cristo é referido como o segundo Adão, o homem representativo da nova
humanidade, o pai da raça redimida, Aquele que significa a nossa segunda
oportunidade, o Filho de Deus. Por outro lado Ele é o Filho de Maria, Aquele
que não somente Se identifica conosco em nossas dores, conflitos e misérias,
tornando-Se o nosso grande ajudador, mas antes de tudo Aquele que tomou as
nossas dores, que Se colocou em nosso lugar para arrostar a pena que nos estava
reservada, tornando-Se assim o nosso Substituto e Redentor. "Vindo, porém,
a plenitude do tempo, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a
lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção
de filhos." (Gál. 4:4 e 5, grifos acrescentados.) O quadro, pois, se
completa, e Jesus é colocado em Seu devido pedestal. Ele é tudo o de que o
homem carece, o Alfa e o ômega, o Autor e Consumador da redenção, o grande
Ideal e o grande Recurso deparado pelo Céu para que esse ideal seja alcançado. Temos
então os dois lados de uma única moeda que se chama a natureza humana de
Cristo. Observemos um terceiro grupo de citações que nos ajudam a estabelecer
definitivamente o assunto. Grifamos novamente um ou outro ponto digno de
destaque:
"Jesus aceitou a
humanidade quando a raça havia sido enfraquecida por quatro mil anos de
pecado." — O
Desejado de Todas as Nações, pág. 41. No mesmo parágrafo ela afirma que Cristo
Se subordinou à lei da hereditariedade. O termo chave dessa citação é
humanidade enfraquecida. Quanto às doenças, Cristo não as teve porque cumpriu à
risca as leis de saúde. (Ver O Desejado de Todas as Nações, pág. 35.)
"Separada da presença
de Deus, a família humana, a cada geração sucessiva, estivera se afastando mais
e mais, da pureza, sabedoria e conhecimentos originais, que Adão possuía
no Éden. Cristo suportou os pecados e
fraquezas da raça humana tais como existiam quando Ele veio à Terra para ajudar
o homem. Em favor da raça, tendo sobre Si as fraquezas do homem caído, devia Ele
resistir às tentações de Satanás em todos os pontos em que o homem seria
tentado." — Mensagens Escolhidas, vol. 1, págs. 267 e 268. Aqui é afirmado
que Jesus não veio no vigor de Adão antes da queda. Ele assumiu uma natureza
humana enfraquecida física, mental e espiritualmente pelo pecado, e venceu o
inimigo nesta condição.
"É um irmão em
nossas fraquezas, mas não em possuir idênticas paixões. Sendo sem pecado, Sua natureza
recuava do mal." — Testemunhos Seletos, vol. 1, pág. 220. Aqui são
apresentados os dois lados da moeda. "... em nossas fraquezas"
implica condição pós-
lapsariana,
enquanto "sem pecado" implica condição pré-lapsariana. Cristo arcou
com uma humanidade enfraquecida pelo pecado, mas moralmente era imaculado. João
14:30 afirma que o diabo não encontrou em Jesus qualquer correspondência às
suas tentações. Mais algumas citações realçam o devido equilíbrio entre esses
dois aspectos:
"Ele era incontaminado pela corrupção, um
estranho ao pecado [condição pré-lapsariana]; contudo, orava, e frequentemente com
grande clamor e lágrimas. Orava por Seus discípulos e por Si mesmo,
identificando-Se assim com nossas falhas, que são tão comuns à humanidade
[condição pós-lapsariana]. Era um poderoso intercessor, não possuindo as paixões
de nossa natureza humana caída [condição pré-lapsariana], mas rodeado das mesmas
fraquezas [condição póslapsariana], tentado em tudo como nós. Jesus suportou a
agonia que requeria ajuda e apoio de Seu Pai." — Testimonies, vol. 2,
págs. 508 e 509.
"Vestido nas
vestimentas da humanidade, o Filho de Deus desceu ao nível daqueles a quem Ele
desejava salvar. NEle
não havia qualquer mancha ou pecaminosidade; Ele foi sempre puro e imaculado
[condição pré-lapsariana]; entretanto tomou sobre Si nossa natureza pecaminosa
[condição pós-lapsariana]." — Review and Herald, 15 de dezembro, 1898. É evidente
nesta citação que "tomar nossa natureza pecaminosa" não significa que
Ele adquiriu pecaminosidade.
"Ele nasceu sem
uma mancha de pecado [condição pré-lapsariana], mas veio ao mundo em maneira
igual à da família humana" [condição pós-lapsariana]. — Carta 97, 1898,
cit. Em Questions on Doctrine, pág. 657.
É óbvio que E. G. White
afirma que Jesus Se subordinou às limitações impostas pelos efeitos do pecado
na raça humana desde a queda, a partir da qual a natureza humana foi se
tornando mais e mais enfraquecida. Tal natureza humana, assim afetada pelo
pecado, foi assumida por Ele.
Mas ao mesmo tempo Ele
não herdou a mancha do pecado, a inclinação para o mal que afeta a cada ser
humano, e que costumamos chamar natureza carnal ou pecaminosa. Santidade plena
e fragilidade do homem caído se fizeram presentes em Jesus Cristo. Esses dois
aspectos de uma única natureza foram nEle combinados numa forma singular para capacitá-Lo
a ser nosso Salvador. Fosse apenas imaculado e não participasse de nossa
experiência como vítimas do pecado, e não poderia ser nosso substituto e ajudador.
Participasse de nossas dores e não da imaculabilidade de Adão antes da queda, e
não poderia ser o nosso Salvador. Teria de padecer por Si mesmo. "Não
houve uma só gota de nossa amarga miséria que Ele não provasse, parte alguma de
nossa maldição que não sofresse, a fim de que pudesse levar a Deus muitos filhos
e filhas." — Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 25.
FONTE:
Revista Adventista, Janeiro de 1992, p. 13-15
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