Teologia

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

“NADA QUE RECEAR... A MENOS QUE...” COMPREENDENDO O PASSADO E APLICANDO-O AO FUTURO


David J. B. Trim*

Uma das mais fortes declarações já feita por um líder cristão sobre o valor da história da igreja é esta bem conhecida citação de Ellen G. White: “Nada temos que recear quanto ao futuro, a menos que esqueçamos a maneira que o Senhor nos tem guiado, e os ensinos que nos ministrou no passado.”1 Embora esse provavelmente seja um dos textos mais citados de todos os escritos de Ellen White, é também um dos menos praticados. Os adventistas do sétimo dia esquecem, em grande medida, “a maneira que o Senhor nos tem guiado” e não estão aprendendo as lições que Ele nos ministrou no “passado”, pois poucos as estudam e, muitas vezes, as fontes que permitiriam seu estudo não são preservadas. De fato, se a conhecida metáfora “o passado é um país estrangeiro” estiver correta, então grande parte do passado adventista será para sempre uma terra incógnita (marcação que exploradores europeus utilizavam para descrever os lugares ainda não explorados ou mapeados no mundo), pois suas fontes estão perdidas.

Por essa razão, a igreja mundial está atualmente envolvida em um projeto ousado para criar uma nova Enciclopédia dos Adventistas do Sétimo Dia. Nove mil artigos estão sendo redigidos: eles reunirão dados atuais que, por natureza, serão amplamente históricos. Um dos objetivos é assegurar que grande parte da história adventista seja explorada e precisamente “mapeada”. Para que esse projeto tenha sucesso, precisamos mobilizar cada estudioso adventista e alunos adventistas de graduação e pós-graduação (inclusive muitos de vocês que estão lendo este artigo!).

RAZÕES PARA CONHECER A HISTÓRIA ADVENTISTA

Existem quatro razões pelas quais o conhecimento da história adventista é importante para cada membro da igreja, de forma individual, para a igreja local e para a igreja adventista mundial. Ao conhecermos a história da igreja, poderemos obter:

·  Autoconhecimento e autocompreensão; o que nos ajuda a reconhecer a identidade adventista;
·       Inspiração e encorajamento;
·       Reflexão sobre as falhas e arrependimentos e
·       Aperfeiçoamento dos métodos e das práticas missiológicas.

Portanto, conhecer e aplicar a história são práticas essenciais, se a igreja adventista deseja ser bem-sucedida na missão de pregar o evangelho e as três mensagens angélicas a todo o mundo.

A IMPORTÂNCIA DE RECONHECER A IDENTIDADE ADVENTISTA

Os elementos fundamentais da identidade adventista incluem a ênfase apocalíptica e a crença de que os adventistas do sétimo dia são o povo “remanescente” mencionado em Apocalipse 12:17. Já se passaram mais de 170 anos desde 1844 e mais de 150 anos desde a organização da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em 1863. Com a transformação de um simples e pequeno grupo religioso norte-americano em um movimento de abrangência global, com mais de 20 milhões de membros provenientes de diferentes culturas e idiomas, tem se tornado cada vez mais difícil manter essa identidade tradicional adventista. Como resultado, há uma crescente inquietação sobre quem e o que nós somos.

Reconhecer quem e o que somos é relevante para a missão, pois um movimento acometido pela incerteza não será bem-sucedido em formar discípulos. Devemos preservar uma forte identidade adventista do sétimo dia em nosso meio e ao mesmo tempo estar abertos às pessoas de outras crenças ou que não possuem nenhuma religião. Como fazer isso? Sem dúvida, a educação é crucial. No entanto, o que deve ser ensinado? É aí que a nossa história pode nos ajudar.

Alguns adventistas defendem que modificar nossa identidade significa inevitavelmente perdê-la. Mas esse seria o caso se todos os aspectos da nossa identidade estivessem de acordo com a vontade de Deus e fossem divinamente ordenados. No entanto, esse não é o caso. Sabemos, por exemplo, pela história, que, no século 19 e início do século 20, o racismo distorceu a missão e o ministério da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Além disso, sabemos também que alguns aspectos da nossa identidade, considerados importantes em algumas partes do mundo, são específicos para aquele momento e para aquela cultura. Sua existência ou ausência por vezes surpreendem os adventistas de outras regiões. Então, qual é o ponto central – e qual é o ponto periférico?

Pesquisas históricas podem nos ajudar a identificar os valores e as crenças essenciais que sempre fizeram parte do adventismo do sétimo dia em todo o mundo. O que somos hoje é a soma da nossa história. Compreender quem fomos é essencial para entender quem somos. No entanto, não é somente a pesquisa histórica que deve ser conduzida; suas descobertas precisam ser publicadas – disseminadas amplamente aos membros da igreja, educando-os formal e informalmente por meio de publicações denominacionais e pela mídia, incluindo a nova Enciclopédia que será uma publicação online. Compreender como o adventismo chegou até aqui, portanto, é fundamental, se quisermos continuar dando forte testemunho de nosso Criador e Salvador no futuro.

INSPIRAÇÃO E ENCORAJAMENTO

Em sua grande narrativa sobre a história sagrada e os heróis da fé, o autor de Hebreus deixou para as gerações vindouras um registro histórico (Hebreus 11:1–12:2) da marcha do povo de Deus através do tempo. Ele descreveu como “foram torturados e recusaram ser libertados [...], outros enfrentaram zombaria e açoites; outros ainda foram acorrentados e colocados na prisão, apedrejados, serrados ao meio, [...] mortos ao fio da espada.

Andaram errantes, vestidos de pele de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos e maltratados. O mundo não era digno deles” (Hebreus 11: 35-38).2,

Na história adventista encontramos igualmente relatos de destemido compromisso e intrépida dedicação na vida de homens e mulheres dos quais “o mundo [nós] não era digno”. Embora tenham sido seres humanos comuns e falhos, foram transformados pelo poder do Espírito Santo e seu exemplo nos inspira. Existem inúmeras histórias de heroísmo e triunfo, mas, infelizmente, muitas foram esquecidas e jamais recuperadas.

Recordo-me de Dores A. Robinson e sua esposa, Edna, que em 1887 deixaram sua terra natal, nos Estados Unidos, e nunca mais retornaram. Eles serviram como missionários na África do Sul por um ano, depois na Inglaterra por oito anos e, por fim, na Índia por quatro anos. Eles não tiveram filhos, porém, no período em que trabalharam em Kolkata, Índia, apaixonaram-se tanto pelo lugar e pela população que adotaram duas meninas hindus. Dores morreu em 1899, vítima de uma epidemia de varíola, e foi sepultado na Índia, longe de sua terra natal, na Nova Inglaterra.

Lembro-me também de Norman e Alma Wiles: Norman, um australiano e Alma, filha de missionários americanos adventistas que serviram em Tonga. Em 1916, viajaram para o país insular de Vanuatu para trabalhar como missionários em meio a uma população de práticas canibais. Cinco anos depois, Norman faleceu, aos 26 anos, após contrair a febre da água negra. Alma continuou ser- vindo como missionária em Vanuatu por mais dez anos e em seguida partiu para uma nova missão em Papua-Nova Guiné. Dores e Norman dedicaram a vida para proclamar as três mensagens angélicas – duas vidas entre muitas.

Histórias de centenas de missionários adventistas que serviram por anos em terras estrangeiras nos encorajam e inspiram. Eles “deram a vida”, abandonando sua terra natal e empregando grande parte dela, nas palavras do autor de Hebreus, como “estrangeiros e peregrinos na Terra [...].” Pois, “se estivessem pensando naquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Em vez disso, esperavam eles uma pátria melhor, isto é, a pátria celestial” (Hebreus 11:13, 15, 16).

Da mesma forma, e com o mesmo espírito do autor de Hebreus, eu também concluo: “Que mais direi? Não tenho tempo para falar” (11:32, NVI) todas as histórias dos heróis da fé adventista. O exemplo que nos deixaram podem nos encorajar e nos inspirar a rededicar a nossa vida para a missão de levar o evangelho e a verdade profética ao mundo.

UM CHAMADO PARA REFLEXÃO E O ARREPENDIMENTO

Ao estudarmos nossa história, é bem possível que um sentimento de repreensão surja em nosso coração – e nos leve ao arrependimento, ao reavivamento e à reforma.

A Bíblia, repetidamente, chama a atenção dos leitores não apenas para exemplos de fidelidade heroica e intervenção celestial, mas também para a abominável falta de fé e punição divina. Ellen White argumenta que “uma das melhores provas da autenticidade das Escrituras” é que em sua narrativa, “a verdade não é apresentada com paliativos, nem os pecados de seus principais personagens suprimidos.”3 Ela ainda observa: “Somente aí podemos encontrar a história [...] não contaminada pelo preconceito ou o orgulho humano.”4 Ellen White também contrasta os escritos humanos com as narrativas bíblicas: “Quantas biografias se têm escrito de cristãos corretos, que, em sua vida comum, no lar, em suas relações com a igreja brilharam como exemplos de imaculada piedade [...] Todavia, houvesse-lhes a pena da inspiração escrito a história, quão diversos pareceriam eles.”5

As narrativas bíblicas detalham a vida de seus personagens. Elas registram “as lutas, as derrotas e as vitórias dos maiores homens que este mundo já conheceu”6, com todas as suas falhas e loucuras. No entanto, essa honestidade não é desanimadora; em vez disso ao “ver onde eles lutaram e caíram, onde se animaram outra vez e venceram mediante a graça de Deus, somos animados”.7

Ao pesquisarem sua história, assim como ao estudarem a Bíblia, os adventistas vão descobrir os erros de pecadores humanos – e as vitórias concedidas por Deus, a despeito do que cometeram. Não devemos nos envergonhar de reconhecer a incompetência e a corrupção. É fundamental que tenhamos uma revelação completa e transparente do passado: em primeiro lugar, ela deve nos levar a uma reflexão das fragilidades humanas e a renovar nossa determinação em agir de acordo com os princípios bíblicos; em segundo, deve nos ajudar a aprender com os erros cometidos, de modo que eles não sejam repetidos.

Por exemplo, tenho profunda admiração pelo primeiro missionário da igreja, John N. Andrews, que passou fome até morrer de inanição para que os recursos que a igreja na América do Norte lhe enviava pudessem ser utilizados para a publicação da revista adventista, Les Signes des Temps [Sinais dos Tempos], por ele fundada.

Minha admiração não é menor devido à revista não ter dado certo, por ter sido uma estratégia que falhou. Os adventistas hoje podem e devem admirar e se inspirar com o sacrifício desse missionário na Europa, enquanto também identificam – e aprendem – com os passos missiológicos equivocados dados por ele.

APERFEIÇOANDO A PRÁTICA MISSIOLÓGICA

Um dos principais motivos pelos quais os que estudam e escrevem a história adventista não devem recuar ao se depararem com os erros e falhas ocorridos em nosso passado é exatamente para assegurar que erros semelhantes não se repitam. Nossas tentativas de aprimorar e aperfeiçoar a prática da missão podem ser frustradas, se no estudo de nossa história não identificarmos as metodologias que fracassaram e as que foram bem-sucedidas. A exatidão ao registrar a história – seus fracassos e sucessos – é essencial para aprendermos as lições certas, sabendo assim o que evitar, o que absorver e como avançar, ao nos esforçamos para dar continuidade ao progresso futuro da nossa igreja.

Como os registros institucionais não são preservados de modo regular e apropriado, as boas práticas de evangelismo e de ministério pastoral não são documentadas com frequência em nível institucional. Consequentemente, essas boas práticas são muitas vezes associadas a indivíduos e acabam se perdendo quando eles se aposentam ou morrem.

No Egito, na década de 1910, e na Jordânia e Palestina, na década de 1920, o missionário britânico George D. Keough desenvolveu métodos pioneiros de missão encarnacional contextualizados, que foram inovadores para os padrões de toda a igreja cristã. Como resultado, ele construiu uma pequena, porém, crescente igreja indígena no Oriente Médio. Keough passou mais de 30 anos trabalhando em grande parte da região, onde permaneceu até bem depois de sua aposentadoria. Entretanto, seus métodos foram esquecidos e tiveram que ser redescobertos pelos missiologistas da igreja na década de 80 (depois que os conceitos de “contextualização” e “encarnacional” se tornaram parte do vocabulário evangélico). Se na época tivesse sido dada maior atenção às inovações de Keough e à preservação da história, suas práticas provavelmente não teriam se perdido, ou teriam sido recuperadas muito antes.

CONCLUSÃO

A declaração mais famosa de Ellen White de que “nada temos que recear quanto ao futuro, a menos que esqueçamos a maneira que o Senhor nos tem guiado, e os ensinos que nos ministrou no passado” não foi a única que ela escreveu sobre a importância da história adventista. Em 1903, ela afirmou: “Repetidas vezes me foi mostrado que as experiências passadas do povo de Deus não devem ser contadas como fatos mortos.”8 Em outras palavras, os eventos históricos possuem relevância viva para o povo de Deus. Ela também salientou que o próprio Deus “declarou que a história do passado se repetirá ao começarmos a obra finalizadora”,9 sendo extremamente importante a consciência de nossa história na proclamação da “verdade presente”. Como consequência, ela instruiu: “A história passada desta Causa deve ser repetida muitas vezes ao povo, tanto aos velhos como aos moços”.10

Ainda há muito a se descobrir a respeito da história da Igreja Adventista do Sétimo Dia. No entanto, é vital que os membros da igreja reconheçam a importância da nossa história e os grandes benefícios de ver que “as experiências passadas do povo de Deus não são [...] fatos mortos.” Os membros da igreja, “tanto velhos como moços”, têm um papel a desempenhar na recuperação da maravilhosa “história da Causa de Deus”, assegurando que, como povo, não nos esqueçamos de como “o Senhor guiou” a Sua igreja; e que, de fato, aprendamos as lições encontradas “em nossa história passada.”

*David J. B. Trim PhD pela Universidade de Londres; membro da Royal Historical Society, é o Diretor de Arquivos, Estatísticas e Pesquisas da Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, em Silver Spring, Maryland, EUA.

NOTAS E REFERÊNCIAS

1. Ellen G. White, Life Sketches (Mountain View, Calif.: Pacific Press, 1943), p. 196.

2. A não ser que de outra forma indicado, todas as referências bíblicas neste artigo foram extraídas da Nova Versão Internacional.

3. Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003), v. 4, p. 9.

4. _________,Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1995), p. 596.

5. _________,Testemunhos Para a Igreja, v. 4, p. 10.

6. _________,Patriarcas e Profetas, p. 596.

7. _________,Testemunhos Para a Igreja, v. 4, p. 12.

8. _________,Carta a A. G. Daniells, 1 de Novembro de 1903, no 238, publicada em Manuscript Releases, v. 5, p. 455.

9. _________,Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1986), v. 2, p. 390.

10. _________,Testemunhos Para a Igreja, v. 6, p. 365.



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