David
J. B. Trim*
Uma das mais fortes
declarações já feita por um líder cristão sobre o valor da história da igreja é
esta bem conhecida citação de Ellen G. White: “Nada temos que recear quanto ao
futuro, a menos que esqueçamos a maneira que o Senhor nos tem guiado, e os ensinos
que nos ministrou no passado.”1 Embora esse provavelmente seja um dos textos
mais citados de todos os escritos de Ellen White, é também um dos menos
praticados. Os adventistas do sétimo dia esquecem, em grande medida, “a maneira
que o Senhor nos tem guiado” e não estão aprendendo as lições que Ele nos
ministrou no “passado”, pois poucos as estudam e, muitas vezes, as fontes que
permitiriam seu estudo não são preservadas. De fato, se a conhecida metáfora “o
passado é um país estrangeiro” estiver correta, então grande parte do passado
adventista será para sempre uma terra incógnita (marcação que exploradores
europeus utilizavam para descrever os lugares ainda não explorados ou mapeados
no mundo), pois suas fontes estão perdidas.
Por essa razão, a
igreja mundial está atualmente envolvida em um projeto ousado para criar uma
nova Enciclopédia dos Adventistas do Sétimo Dia. Nove mil artigos estão sendo
redigidos: eles reunirão dados atuais que, por natureza, serão amplamente
históricos. Um dos objetivos é assegurar que grande parte da história
adventista seja explorada e precisamente “mapeada”. Para que esse projeto tenha
sucesso, precisamos mobilizar cada estudioso adventista e alunos adventistas de
graduação e pós-graduação (inclusive muitos de vocês que estão lendo este
artigo!).
RAZÕES
PARA CONHECER A HISTÓRIA ADVENTISTA
Existem quatro razões
pelas quais o conhecimento da história adventista é importante para cada membro
da igreja, de forma individual, para a igreja local e para a igreja adventista
mundial. Ao conhecermos a história da igreja, poderemos obter:
· Autoconhecimento e autocompreensão; o
que nos ajuda a reconhecer a identidade adventista;
·
Inspiração e encorajamento;
·
Reflexão sobre as falhas e
arrependimentos e
·
Aperfeiçoamento dos métodos e das práticas
missiológicas.
Portanto, conhecer e
aplicar a história são práticas essenciais, se a igreja adventista deseja ser
bem-sucedida na missão de pregar o evangelho e as três mensagens angélicas a
todo o mundo.
A
IMPORTÂNCIA DE RECONHECER A IDENTIDADE ADVENTISTA
Os elementos
fundamentais da identidade adventista incluem a ênfase apocalíptica e a crença
de que os adventistas do sétimo dia são o povo “remanescente” mencionado em
Apocalipse 12:17. Já se passaram mais de 170 anos desde 1844 e mais de 150 anos
desde a organização da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em 1863. Com a
transformação de um simples e pequeno grupo religioso norte-americano em um
movimento de abrangência global, com mais de 20 milhões de membros provenientes
de diferentes culturas e idiomas, tem se tornado cada vez mais difícil manter
essa identidade tradicional adventista. Como resultado, há uma crescente
inquietação sobre quem e o que nós somos.
Reconhecer quem e o que
somos é relevante para a missão, pois um movimento acometido pela incerteza não
será bem-sucedido em formar discípulos. Devemos preservar uma forte identidade
adventista do sétimo dia em nosso meio e ao mesmo tempo estar abertos às
pessoas de outras crenças ou que não possuem nenhuma religião. Como fazer isso?
Sem dúvida, a educação é crucial. No entanto, o que deve ser ensinado? É aí que
a nossa história pode nos ajudar.
Alguns adventistas
defendem que modificar nossa identidade significa inevitavelmente perdê-la. Mas
esse seria o caso se todos os aspectos da nossa identidade estivessem de acordo
com a vontade de Deus e fossem divinamente ordenados. No entanto, esse não é o
caso. Sabemos, por exemplo, pela história, que, no século 19 e início do século
20, o racismo distorceu a missão e o ministério da Igreja Adventista do Sétimo
Dia. Além disso, sabemos também que alguns aspectos da nossa identidade,
considerados importantes em algumas partes do mundo, são específicos para
aquele momento e para aquela cultura. Sua existência ou ausência por vezes
surpreendem os adventistas de outras regiões. Então, qual é o ponto central – e
qual é o ponto periférico?
Pesquisas históricas
podem nos ajudar a identificar os valores e as crenças essenciais que sempre
fizeram parte do adventismo do sétimo dia em todo o mundo. O que somos hoje é a
soma da nossa história. Compreender quem fomos é essencial para entender quem
somos. No entanto, não é somente a pesquisa histórica que deve ser conduzida;
suas descobertas precisam ser publicadas – disseminadas amplamente aos membros
da igreja, educando-os formal e informalmente por meio de publicações
denominacionais e pela mídia, incluindo a nova Enciclopédia que será uma
publicação online. Compreender como o adventismo chegou até aqui, portanto, é
fundamental, se quisermos continuar dando forte testemunho de nosso Criador e
Salvador no futuro.
INSPIRAÇÃO
E ENCORAJAMENTO
Em sua grande narrativa
sobre a história sagrada e os heróis da fé, o autor de Hebreus deixou para as
gerações vindouras um registro histórico (Hebreus 11:1–12:2) da marcha do povo
de Deus através do tempo. Ele descreveu como “foram torturados e recusaram ser
libertados [...], outros enfrentaram zombaria e açoites; outros ainda foram
acorrentados e colocados na prisão, apedrejados, serrados ao meio, [...] mortos
ao fio da espada.
Andaram errantes,
vestidos de pele de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos e maltratados.
O mundo não era digno deles” (Hebreus 11: 35-38).2,
Na história adventista
encontramos igualmente relatos de destemido compromisso e intrépida dedicação
na vida de homens e mulheres dos quais “o mundo [nós] não era digno”. Embora
tenham sido seres humanos comuns e falhos, foram transformados pelo poder do
Espírito Santo e seu exemplo nos inspira. Existem inúmeras histórias de
heroísmo e triunfo, mas, infelizmente, muitas foram esquecidas e jamais
recuperadas.
Recordo-me de Dores A.
Robinson e sua esposa, Edna, que em 1887 deixaram sua terra natal, nos Estados
Unidos, e nunca mais retornaram. Eles serviram como missionários na África do
Sul por um ano, depois na Inglaterra por oito anos e, por fim, na Índia por
quatro anos. Eles não tiveram filhos, porém, no período em que trabalharam em
Kolkata, Índia, apaixonaram-se tanto pelo lugar e pela população que adotaram
duas meninas hindus. Dores morreu em 1899, vítima de uma epidemia de varíola, e
foi sepultado na Índia, longe de sua terra natal, na Nova Inglaterra.
Lembro-me também de
Norman e Alma Wiles: Norman, um australiano e Alma, filha de missionários
americanos adventistas que serviram em Tonga. Em 1916, viajaram para o país
insular de Vanuatu para trabalhar como missionários em meio a uma população de
práticas canibais. Cinco anos depois, Norman faleceu, aos 26 anos, após
contrair a febre da água negra. Alma continuou ser- vindo como missionária em
Vanuatu por mais dez anos e em seguida partiu para uma nova missão em
Papua-Nova Guiné. Dores e Norman dedicaram a vida para proclamar as três
mensagens angélicas – duas vidas entre muitas.
Histórias de centenas
de missionários adventistas que serviram por anos em terras estrangeiras nos
encorajam e inspiram. Eles “deram a vida”, abandonando sua terra natal e
empregando grande parte dela, nas palavras do autor de Hebreus, como
“estrangeiros e peregrinos na Terra [...].” Pois, “se estivessem pensando
naquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Em vez disso, esperavam
eles uma pátria melhor, isto é, a pátria celestial” (Hebreus 11:13, 15, 16).
Da mesma forma, e com o
mesmo espírito do autor de Hebreus, eu também concluo: “Que mais direi? Não
tenho tempo para falar” (11:32, NVI) todas as histórias dos heróis da fé
adventista. O exemplo que nos deixaram podem nos encorajar e nos inspirar a
rededicar a nossa vida para a missão de levar o evangelho e a verdade profética
ao mundo.
UM
CHAMADO PARA REFLEXÃO E O ARREPENDIMENTO
Ao estudarmos nossa
história, é bem possível que um sentimento de repreensão surja em nosso coração
– e nos leve ao arrependimento, ao reavivamento e à reforma.
A Bíblia,
repetidamente, chama a atenção dos leitores não apenas para exemplos de
fidelidade heroica e intervenção celestial, mas também para a abominável falta
de fé e punição divina. Ellen White argumenta que “uma das melhores provas da
autenticidade das Escrituras” é que em sua narrativa, “a verdade não é
apresentada com paliativos, nem os pecados de seus principais personagens
suprimidos.”3 Ela ainda observa: “Somente aí podemos encontrar a história [...]
não contaminada pelo preconceito ou o orgulho humano.”4 Ellen White também
contrasta os escritos humanos com as narrativas bíblicas: “Quantas biografias
se têm escrito de cristãos corretos, que, em sua vida comum, no lar, em suas
relações com a igreja brilharam como exemplos de imaculada piedade [...]
Todavia, houvesse-lhes a pena da inspiração escrito a história, quão diversos
pareceriam eles.”5
As narrativas bíblicas
detalham a vida de seus personagens. Elas registram “as lutas, as derrotas e as
vitórias dos maiores homens que este mundo já conheceu”6, com todas as suas
falhas e loucuras. No entanto, essa honestidade não é desanimadora; em vez
disso ao “ver onde eles lutaram e caíram, onde se animaram outra vez e venceram
mediante a graça de Deus, somos animados”.7
Ao pesquisarem sua
história, assim como ao estudarem a Bíblia, os adventistas vão descobrir os
erros de pecadores humanos – e as vitórias concedidas por Deus, a despeito do
que cometeram. Não devemos nos envergonhar de reconhecer a incompetência e a
corrupção. É fundamental que tenhamos uma revelação completa e transparente do
passado: em primeiro lugar, ela deve nos levar a uma reflexão das fragilidades
humanas e a renovar nossa determinação em agir de acordo com os princípios
bíblicos; em segundo, deve nos ajudar a aprender com os erros cometidos, de
modo que eles não sejam repetidos.
Por exemplo, tenho
profunda admiração pelo primeiro missionário da igreja, John N. Andrews, que
passou fome até morrer de inanição para que os recursos que a igreja na América
do Norte lhe enviava pudessem ser utilizados para a publicação da revista
adventista, Les Signes des Temps [Sinais dos Tempos], por ele fundada.
Minha admiração não é
menor devido à revista não ter dado certo, por ter sido uma estratégia que
falhou. Os adventistas hoje podem e devem admirar e se inspirar com o
sacrifício desse missionário na Europa, enquanto também identificam – e
aprendem – com os passos missiológicos equivocados dados por ele.
APERFEIÇOANDO
A PRÁTICA MISSIOLÓGICA
Um dos principais motivos
pelos quais os que estudam e escrevem a história adventista não devem recuar ao
se depararem com os erros e falhas ocorridos em nosso passado é exatamente para
assegurar que erros semelhantes não se repitam. Nossas tentativas de aprimorar
e aperfeiçoar a prática da missão podem ser frustradas, se no estudo de nossa
história não identificarmos as metodologias que fracassaram e as que foram
bem-sucedidas. A exatidão ao registrar a história – seus fracassos e sucessos –
é essencial para aprendermos as lições certas, sabendo assim o que evitar, o
que absorver e como avançar, ao nos esforçamos para dar continuidade ao
progresso futuro da nossa igreja.
Como os registros
institucionais não são preservados de modo regular e apropriado, as boas
práticas de evangelismo e de ministério pastoral não são documentadas com frequência
em nível institucional. Consequentemente, essas boas práticas são muitas vezes
associadas a indivíduos e acabam se perdendo quando eles se aposentam ou
morrem.
No Egito, na década de
1910, e na Jordânia e Palestina, na década de 1920, o missionário britânico
George D. Keough desenvolveu métodos pioneiros de missão encarnacional
contextualizados, que foram inovadores para os padrões de toda a igreja cristã.
Como resultado, ele construiu uma pequena, porém, crescente igreja indígena no
Oriente Médio. Keough passou mais de 30 anos trabalhando em grande parte da
região, onde permaneceu até bem depois de sua aposentadoria. Entretanto, seus
métodos foram esquecidos e tiveram que ser redescobertos pelos missiologistas
da igreja na década de 80 (depois que os conceitos de “contextualização” e
“encarnacional” se tornaram parte do vocabulário evangélico). Se na época
tivesse sido dada maior atenção às inovações de Keough e à preservação da
história, suas práticas provavelmente não teriam se perdido, ou teriam sido
recuperadas muito antes.
CONCLUSÃO
A declaração mais
famosa de Ellen White de que “nada temos que recear quanto ao futuro, a menos
que esqueçamos a maneira que o Senhor nos tem guiado, e os ensinos que nos
ministrou no passado” não foi a única que ela escreveu sobre a importância da
história adventista. Em 1903, ela afirmou: “Repetidas vezes me foi mostrado que
as experiências passadas do povo de Deus não devem ser contadas como fatos mortos.”8
Em outras palavras, os eventos históricos possuem relevância viva para o povo
de Deus. Ela também salientou que o próprio Deus “declarou que a história do
passado se repetirá ao começarmos a obra finalizadora”,9 sendo extremamente
importante a consciência de nossa história na proclamação da “verdade
presente”. Como consequência, ela instruiu: “A história passada desta Causa
deve ser repetida muitas vezes ao povo, tanto aos velhos como aos moços”.10
Ainda há muito a se
descobrir a respeito da história da Igreja Adventista do Sétimo Dia. No
entanto, é vital que os membros da igreja reconheçam a importância da nossa
história e os grandes benefícios de ver que “as experiências passadas do povo
de Deus não são [...] fatos mortos.” Os membros da igreja, “tanto velhos como
moços”, têm um papel a desempenhar na recuperação da maravilhosa “história da
Causa de Deus”, assegurando que, como povo, não nos esqueçamos de como “o
Senhor guiou” a Sua igreja; e que, de fato, aprendamos as lições encontradas
“em nossa história passada.”
*David
J. B. Trim PhD pela Universidade de Londres; membro da Royal
Historical Society, é o Diretor de Arquivos, Estatísticas e Pesquisas da
Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, em Silver Spring, Maryland,
EUA.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. Ellen G. White, Life Sketches (Mountain View,
Calif.: Pacific Press, 1943), p. 196.
2. A não ser que de
outra forma indicado, todas as referências bíblicas neste artigo foram
extraídas da Nova Versão Internacional.
3. Ellen G. White,
Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003), v. 4,
p. 9.
4. _________,Patriarcas
e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1995), p. 596.
5. _________,Testemunhos
Para a Igreja, v. 4, p. 10.
6. _________,Patriarcas
e Profetas, p. 596.
7. _________,Testemunhos
Para a Igreja, v. 4, p. 12.
8. _________,Carta a A.
G. Daniells, 1 de Novembro de 1903, no 238, publicada em Manuscript Releases,
v. 5, p. 455.
9. _________,Mensagens
Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1986), v. 2, p. 390.
10. _________,Testemunhos
Para a Igreja, v. 6, p. 365.
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