QUANDO A MEMÓRIA VIRA VIOLÊNCIA: OS EQUÍVOCOS DA COMEMORAÇÃO DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO COLÉGIO ADVENTISTA DE ALAGOINHA
Ricardo André
A forma como o Colégio
Adventista de Alagoinha, no interior da Bahia, escolheu “celebrar” o Dia
Nacional da Consciência Negra neste 26 de novembro expõe um profundo equívoco
pedagógico, histórico e ético. As imagens divulgadas pela própria escola em
suas redes sociais — um aluno negro amarrado a um tronco enquanto um aluno
branco o “castiga” com um chicote, e uma aluna branca representando a princesa
Isabel assinando a Lei Áurea — não representam uma homenagem ou reflexão sobre
a luta do povo negro. Ao contrário: reproduzem a dor, reforçam estereótipos
racistas e reinstalam, em pleno ambiente escolar, a lógica opressora que esse
dia busca combater.
O Dia Nacional da Consciência Negra não é um espetáculo de sofrimento. Não se celebra a resistência negra reencenando tortura. Não se combate o racismo reproduzindo imagens que desumanizam estudantes negros. Não se eleva autoestima de crianças e adolescentes colocando-os na posição de vítimas em um palco que repete a violência escravocrata. Muito menos se promove consciência ao reafirmar o protagonismo branco na história da abolição, como se a liberdade tivesse sido um presente gracioso da princesa Isabel.
A abolição não foi
dádiva — foi conquista. Negros e negras escravizados foram sujeitos ativos na
luta contra o sistema escravocrata. Suas resistências foram diversas e
profundas: fugas organizadas, estratégia de sabotagem, destruição de lavouras,
incêndios em engenhos, suicídios como último ato de recusa, manutenção teimosa
de suas culturas, religiosidades e línguas, e, sobretudo, a formação dos
quilombos — a expressão mais poderosa de autonomia, coragem e rebeldia. A
história negra é uma história de resistência, não de submissão.
Uma celebração da
Consciência Negra deveria, portanto, valorizar a cultura afro-brasileira,
inspirar orgulho, fortalecer identidades, promover dignidade e estimular o
respeito. Deveria fazer com que estudantes negros se reconhecessem como
herdeiros de uma trajetória de luta e grandeza, e que estudantes brancos
compreendessem seu papel na construção de uma sociedade justa, sem racismo e
sem hierarquias baseadas na cor da pele.
O que ocorreu no
Colégio Adventista de Alagoinha não produz consciência — produz
constrangimento, humilhação, revolta e mais desinformação. Não gera empatia nos
alunos brancos, não eleva a autoestima dos alunos negros e não contribui para
um ambiente escolar saudável, seguro e verdadeiramente inclusivo.
Representar pessoas
negras em posição de submissão, especialmente em ambiente escolar, não educa:
fere, expõe, e perpetua uma narrativa que deveria ser denunciada — nunca
teatralizada dessa forma. A escola, especialmente uma instituição confessional,
precisa ser espaço de cuidado, sensibilidade e compromisso com a dignidade
humana.
A Bíblia nos lembra que
todos são criados à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:27). Isso significa
que qualquer prática que humilhe, diminua ou coloque alguém em posição de inferioridade
viola diretamente o propósito divino para a humanidade. Jesus também nos
ensinou que “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes
façam” (Mt 7:12, NVI).
Diante disso, somos
chamados a agir com empatia, responsabilidade e amor — especialmente ao tratar
temas sensíveis como a história do povo negro.
Que este episódio nos
leve à reflexão e ao compromisso de educar com mais consciência, respeito e
justiça, porque Cristo nos chama a honrar a dignidade de todos os seus filhos e
filhas.
Diante do ocorrido, é
imprescindível que a escola revise urgentemente suas práticas pedagógicas. A
primeira medida é clara: implementar um curso de Letramento Racial para todo o
corpo docente, alunos e funcionários. Sem formação adequada, erros como esse se
repetem, e o ambiente escolar continua reproduzindo o racismo estrutural que
deveria combater. Letramento racial não é acessório — é ferramenta essencial
para que a escola cumpra seu papel de formar cidadãos críticos, sensíveis e
comprometidos com a justiça social.
Somente por meio de
formação séria, compromisso institucional e práticas fundamentadas na
perspectiva da Educação Antirracista será possível evitar novos
constrangimentos e construir um espaço escolar que respeite, valorize e celebre
verdadeiramente a história e a cultura negra no Brasil.
Este episódio deve
servir de alerta — e de ponto de partida — para que a escola caminhe, de fato,
em direção a uma educação que liberta, e não que aprisiona à memória da
violência.


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